sexta-feira, 6 de maio de 2011

Quero a TRIP de abril pra mim


Não leio a revista TRIP com regularidade. Não leio um monte de coisas com regularidade. Aliás, não leio porra nenhuma com regularidade. Só por isso, só agora, pude ler uma das melhores edições da TRIP, ao meu ver, por mim, porque li ali uma entrevista com o rapper Emicida.

Genial. Meu espírito tem essa mistura, a mesma dele. Também sou negro (mestiço, mulato, que seja). Também sou pobre. Só não sou tão talentoso que nem ele. Mas, caramba, sei apreciar a inteligência alheia. Gosto disso.

A revista em questão é a TRIP do mês de abril. A última edição que eu havia lido foi uma em que Lobão e Caetano Veloso travavam um debate pra lá de engraçado (encarei assim), em 2001, acho. Talvez tenha sido o único número da TRIP que li. Mas esta, quero pra mim.

A entrevista, com respostas engraçadas, brilhantes, conscientes, feita por Pedro Alexandre Sanches, é boa demais para ficar só no esquadro da revista. Mas eles é que fizeram o troço. É justo que fique lá, no site e no físico dela mesma. Reproduzo aqui só alguma parte do pingue-pongue, e deixo de lado o incrível e delicioso texto de abertura de Sanches.

Deixo como isca para quem, ainda não leu, claro, quiser procurar a fonte (clique aqui).

Você sofria bullying na infância?

Sempre. Me zoavam porque eu não tinha pai, porque eu não tinha meias, porque eu era preto. Mesmo em escola de quebrada, tive o azar de ser o único negro. Até tinha outros, mas que não se comportavam como pretos, meninas que alisavam o cabelo. Era “cabelo de bombril”, “macaco”, até a professora dava risada.

Você conta que aprendeu a fazer rap com um pastor, quando era pequeno e frequentava a igreja.

É, eu venho dessa linhagem aí. Eu achava a macumba mais divertida, ficava ligado no batuque, mas o texto dos pastores influenciou meu freestyle, esse lance de persuadir as pessoas.

Jacira [mãe do rapper]: Nós éramos integrantes da Igreja católica e do Movimento Sem-Terra. Já dormi muito em acampamento sem-terra com esses meninos. Eu era católica porque minha mãe era, toda a vida achei um saco. Um dia chutei o pau da barraca. Fazia parte do grupo Filhas de Maria, mandei todo mundo pra casa do caralho, tinha umas saias compridas, cortei e de cada saia fiz três. Aí fomos pra Universal.

Emicida: Assim que meu pai morreu a gente colava nesse bagulho, mais porque depois do culto sempre rolava um rango.

Jacira: O pai dele era disc jockey. Ele não conseguia baile pra fazer, começou a trabalhar como metalúrgico, depois a pegar ferro-velho na rua. Aí começou a beber.

Emicida: Colou nos espíritos sem luz.

Qual é a história do Seu Eduardo [padrasto do rapper] com funerária?

Ele dava flores pra minha mãe, chegava todo dia com um maço de rosas, que homem romântico. Aí descobrimos que ele trabalhava na funerária, começamos a falar que ele arrancava flor do caixão... Minha escola musical foi essa aí, minha mãe escutava essas músicas de MPB, de dor de cotovelo. E as modas de viola do seu Eduardo eram sofridas pra caralho, mas tem a maior semelhança com o rap.

Você acha? Nunca imaginei.

Porra, os caras da moda de viola gostavam de dar umas ideias firmeza: “Mundo velho não tem jeito, já não endireita mais/ os filhos de hoje em dia já não obedecem os pais/ é o começo do fim, já estou vendo sinais/ metade da mocidade estão virando marginais” [versos de “A vaca foi pro brejo”, de Tião Carreiro & Pardinho]. Era uma coisa de alertar a sociedade, o rap também tinha essa postura.

Por que você gravou uma música com o NX Zero?

Porque eu gosto de NX Zero. Podem achar que traí o rap, mas eu gosto do NX Zero, eles me convidaram, qual o problema? Gravar com eles ampliou meu público, eu quero ser conhecido. Eu penso estrategicamente, não tenho culpa se os caras do rap não fazem isso. A gente tem três músicas de periferia hoje no Brasil: o rap, o funk e o tecnobrega do Pará. Um dia vai ter que unificar tudo isso, porque é tudo a mesma coisa, música de periferia.

Você faria um rap misturado com funk?

Faria. Nem toda letra de funk presta, mas o som do funk é bom, é cheio de batida, de batuque. Eu não acho ruim pensar minha carreira estrategicamente. O rap nacional nunca teve um boom comercial porque não tem um grupo de rap que seja autêntico e ao mesmo tempo seja comercialmente viável pras gravadoras. O único cara que foi longe foi o Marcelo D2. São Paulo é a terra do rap no Brasil, mas tirando Racionais não tem um grupo de expressão monstruosa. Os rappers que têm uma disseminação maior são todos do Rio, D2, Gabriel o Pensador, MV Bill. Um amigo da minha mãe falou: “O que eu gosto do seu rap é que ele foge desses racionaisismos”. Ele fala como se fosse uma religião, o “racionaisismo”. Os Racionais têm um peso ideológico foda pra nós, é a nossa história, mas até hoje o argumento mais forte deles é que não vão na mídia. E eu, cada vez que vou, sou apedrejado, como se eu fosse o Mano Brown, como se eu tivesse dito as coisas que ele diz. Nas favelas a regra é essa, os caras me cobravam: “Mas não tem o pacto dos rappers de não ir na mídia?”. Que pacto, mano?

Você fica à vontade tocando em clubes de playboy?

Eu vejo cara na internet dizendo que eu canto pros caras que me discriminaram a vida inteira. Isso é um argumento muito vazio. Sou filho adotivo dum branco. Minha mãe trampava de empregada, eu ia com ela lá nas mansões. Eu achava do caralho. Era favelado só durante a noite, durante o dia eu morava em casa de rico [risos]. Minha mãe trampou pra patrão cuzão, mas também pra arquiteto que deixava eu ficar desenhando. Via escultura, tinha livro pra caralho, podia ficar vendo TV a cabo.

Mas como é tocar para esse público?

Tem uns momentos que entro num conflito, mas sinto que esse conflito é por causa do rap, não por eu estar num lugar estranho. Não posso escolher quem compra meus CDs e vai no meu show. Se eu for tocar no Japão o que eu vou fazer? Vou mandar importar uns pretos? (...) Na cabeça de vários caras do rap, o rap que eu faço é de boy porque é inteligente.

O rap brasileiro nasceu lutando contra o racismo, mas era também misógino, homofóbico. Emicida é rapper, logo...

... Emicida é a contramão de várias dessas coisas aí. Mas, vou te falar uma parada, o rap não nasceu combatendo o racismo. O primeiro rap era de festa: “Fiquei sabendo, tem um tal de Pepeu/ que canta rap bem melhor do que eu”. Mas aí sabe o que aconteceu? Chegou NWA, Public Enemy, o rap gringo de protesto. Levou-se pra um lado consciente e daí foi pra um lado gangsta. Em 2000 veio o boom comercial com Jay-Z, rapper milionário. A gente tá sendo tão ridículo quanto os gringos, pegando o que há de pior no rap lá de fora, a casca. Rihanna apanha do namorado, quer processar, mas ela mesma se porta como puta. Do jeito que elas admitem ser tratadas, elas tão sendo agredidas de outra forma. Você cria uma sociedade doente.

Você vai matar o rap?

O que os caras vão fazer da música deles eu não sei, mas eu vou cantar com [a sambista] Fabiana Cozza e me sinto pequeno. Não quero me sentir pequeno. Por isso falo que não sei se o que vou fazer vai ser chamado de rap ou se vai ser rap. Falam que Gabriel o Pensador não é rap. Pra mim é, e um dos mais fodas que tem. A favela adora ele, sabe por quê? Porque ele é sincero na música dele, não tá de patifaria.

Frase avulsa retirada do turbilhão

“A polícia não registra BO de racismo. Não registra porque é inafiançável, se registrar tem que prender e, se prender, tem que trabalhar.”

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