Definitivamente o lado mais cultivado da música sertaneja não é a apreciação do verso bem torneado. Isso existe, mas o que sustenta o mercado e faz a galera se entusiasmar nas noites de baladas quentes e de botecos lotados são as músicas que falam do cotidiano de forma engraçada, debochada, como quem ri de si mesmo.
Um dos temas preferidos das últimas temporadas é o consumo de álcool. A bebida sempre esteve na batida do cancioneiro popular, que aqui se mistura com música raiz e sertanejo moderno, tanto faz. O álcool é o mesmo.
Desde a genial “Marvada pinga”, composição anônima cuja autoria todos querem assumir, principalmente depois que virou hit na voz de Inezita Barroso, até o recente fenômeno “Beber, cair e levantar”, muitos sucessos e fracassos sobre bebida alcoólica já foram despejados na cabeça latejante dos apreciadores do gênero.
São inúmeras as referências, quase todas aproximando a imagem da mulher como causa da perdição do bebum. Muitas das letras não direcionam o álcool ao epicentro do tema, fazem apenas citações ligeiras, como no sucesso de Leandro e Leonardo, no começo da década de 1990, em que o sujeito começa a beber por causa da amada e chega a encontrá-la “num gole de cerveja.”
Não é o caso de Marvada pinga. Ali, a paixão é etílica. O sujeito até se conscientiza do perigo do álcool e parece querer se abster, no primeiro momento. “Com a marvada pinga/ É que eu me atrapaio”. Mas não adianta. “Eu entro na venda e já dou meu taio/ Pego no copo e dali nun saio/ Ali memo eu bebo/ Ali memo eu caio.” Não fala de outro amor, se não esse. Não faz como Reginaldo Rossi, não aborrece ninguém com lamúrias de paixão. “Só pra carregar é que eu dô trabaio.”
De acordo com a cantora Kamilla Abrão, falar de pinga não é proibido. Afinal, há uma massiva campanha publicitária nos meios de comunicação para convencer todos a beberem. Para ela, seria hipocrisia ver essa brincadeira como um monstro. “Acho que bebida é legal, bebida é bacana. O que não se podem aceitar são as situações constrangedoras”, diz.
Segundo a cantora sertaneja, a música tem de falar do cotidiano para conquistar o ouvinte. “Se não é real para a pessoa, ela não vai querer ouvir. Temos de encarar a realidade. E a realidade é que boa parte das pessoas gosta de beber”, comenta.
Nessa realidade da qual fala Kamilla também incluem as canções que servem de cavalo de sela das grandes companhias de bebida. A música “Cerveja”, de César Augusto e César Rossini, gravada por Leandro e Leonardo em 1997, é um exemplo.
Virou jingle de campanha de uma marca que queria conquistar mais mercado na época. Os versos ainda são facilmente repetidos por qualquer aventureiro de boteco: “Hoje é sexta-feira/ Chega de canseira/ Nada de tristeza/ Pega uma cerveja/ Põe na minha mesa/ Cerveja, cerveja/ Cerveja, cerveja/ Cerveja.” Na campanha, a palavra ‘cerveja’ era substituída pela marca.
Não era a única. Até mesmo o universo dito cult da música popular brasileira entrou nessa jogada de marketing. O cantor, compositor e ator Seu Jorge, famoso pela atuação em filmes como Cidade de Deus e A vida marinha, e pelas canções cool, também fez música que se tornaria mote de uma nova marca de pinga.
Mas a canção de Seu Jorge, “Eterna Busca”, ficou pelo caminho, e a cachaça anda escondidinha, sendo vendida como produto só para bacanas, tipo exportação. Quem não importa com isso são os caipiras antenados com o gosto popular. Continuam investindo na cerveja e na caninha encontrada até nas piores casas do ramo.
In canna veritas
Apesar de o tema estar batido pela enxurrada de canções sertanejas sobre bebida alcoólica, o que se pode perceber nas composições mais recentes é o caráter confessional das letras, levando o cantor, que é quem dá a cara para bater, a confessar que “bebe pra carai.”
Na história desse tipo de música, sempre houve aquelas mais avançadas, como a própria “Marvada pinga”, criada provavelmente na primeira metade do século XX, que até hoje é uma composição moderna sobre o consumo de álcool, justamente por ser aberta, confessional e bem humorada. “Eu bebo da pinga porque gosto dela/ Eu bebo da branca, bebo da amarela”, diz a canção.
Esse tom confessional traz uma atitude nova para a trupe sertaneja. De cabeça erguida o cantor assume: “E se eu bebo é problema meu/ Se eu vivo na noite é problema meu”, como na música de Sandro Coelho. Mas há quem ponha a culpa em alguém. “Se eu tô bebendo a culpa é sua”, canta a dupla Guilherme e Santiago, música de Diego e Mariosan.
A inserção no cotidiano de quem bebe dá certo. O resultado é ouvido nas baladas sertanejas e nas rádios que tocam o gênero. Para conquistar o público, o humor é indispensável. E nesse caso, a confissão pode vir quase velada, num sutil negaceio bem-humorado, como na canção de Eduardo Costa: “Dizem que eu sou cachaceiro/ cachaceiro eu não sou/ cachaceiro é quem fabrica pinga/ eu sou só consumidor.”
Às vezes, ao criar uma música desse naipe, o compositor quer que sua canção se conserve no tempo como o vinho. Quer atingir a longevidade de uma obra como “O ébrio”, de Vicente Celestino, composta em 1937, que virou filme em 1946 e que ainda é cantarolada pelos bebuns da velha guarda. “Tornei-me um ébrio e na bebida busco esquecer/ Aquela ingrata que eu amava e que me abandonou.”
“O ébrio”, no entanto, traz uma mensagem moralista que as letras de hoje não suportam mais. Ao contrário do hedonismo atual, a letra de Celestino queria mostrar o estrago que a bebida é capaz de fazer. Atualmente a tarefa de mostrar os males do álcool está basicamente a cargo dos pais e dos médicos.
O estilo etílico dos outros
Não são apenas os sertanejos que correm à procura da batida imperfeita. Eles insistem mais. No entanto, a galeria de pingunços vai do bolero ao jazz, do forró pé-de-serra ao piano de Tom Jobim, que junto com Vinicius de Moraes compuseram algumas canções sem desprezar o álcool. No caso deles era o uísque.
Vinicius chegou a fazer uma comparação canina com sua bebida preferida. “O uísque é o melhor amigo do homem, é o cachorro engarrafado”, disse uma vez. Além de Jobim, compôs com diversos parceiros e com cada um deles deixou uma cançãozinha que se refere à bebida alcoólica. Com Chico Buarque fez “Desalento”: “Sim, vai e diz/ Diz assim/ Que eu rodei/ Que eu bebi/ Que eu caí.”
Também falou de álcool na parceria com Edu Lobo, Carlinhos Vergueiro, Antônio Maria. Mas foi Toquinho o seu parceiro mais etílico, em termos de composição. Vinicus deu um jeito de sugerir bebida até numa canção supostamente infantil, “Aquarela”, cuja letra ele compôs para Toquinho, que diz: “Numa folha qualquer eu desenho um navio de partida/ Com alguns bons amigos, bebendo de bem com a vida.”
Menos infantil e mais bêbada é a cantora inglesa Amy Winehouse, talento do do blues e do soul, de bela voz, mas que entorna um caldo de fazer cair Zeca Pagodinho. Garota problema, antes mesmo de ganhar cinco Grammy Awards, o Oscar da música, com seu segundo CD, em 2006, ela invernava numa destilaria. Mas Amy, sensível e inteligente, tem o seu próprio jingle.
Quando tentaram convencê-la de ir se tratar numa clínica de recuperação de alcoólicos, ela compôs “Rehab”, uma baladinha interessante que diz: “They tried to make me go to rehab/ But I said 'no, no, no." ("Tentaram me mandar para uma clínica, mas disse não").
Na mesma letra, Winehouse, que só pelo nome já merecia um prêmio Limpa-Goela de Música, escreve no estilo do bom e velho sertanejo: "I'm gonna, I'm gonna lose my baby,/ So I always keep a bottle near", algo do tipo “sei que vou perder meu amor/ e por isso mantenho sempre uma garrafa do lado.”
Até Maria Rita, que ainda não conseguiu desvincular seu nome do da mãe Elis Regina, já apareceu cantando a bebida, junto com o pessoal do Rappa, numa música de Zeca Pagodinho, “Maneiras”: “Se eu quiser fumar eu fumo/ Se eu quiser beber eu bebo.” E muito antes de tudo isso, Elizeth Cardoso já cantava “Eu bebo sim!/ Eu tô vivendo/ Tem gente que não bebe/ E tá morrendo.”
Aliás, esta composição de Luiz Antonio e Luiz Vieira é sutilmente relida na música de D'Lucas e Lucian, cantada pela divertida dupla sertaneja César e Paulinho, “Aí nóis bebe”, que mostra o cotidiano de quem não consegue parar de beber.
“Se a coisa está feia e melhorar nóis não consegue/ Aí nóis bebe, Aí nóis bebe”, diz a canção. De qualquer jeito eles bebem, por paixão ou por despeito, “Nóis mete pinga no peito, bebe mesmo é pra valer/ E se a bebida mata bem devagarim/ Então nóis bebe o dia ínterim/ Nóis não tem pressa de morrer.”
Moderação recomendada
A consciência de todos esses compositores e cantores que versam sobre o consumo de álcool já está treinada para saber as consequências desse ato. Mas, de acordo com o médico especialista em dependência química, Luis Gonzalo G. Barreto, da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), é sempre bom repetir: por onde a bebida alcoólica passa ao ser ingerida, as repercussões podem ser catastróficas ao longo dos anos.
Câncer na boca, na língua, na gengiva, semelhante ao que provoca o cigarro, é uma das consequências. Esofagites (inflamações do esôfago), úlcera, gastrite, câncer de esôfago e de estômago também podem ocorrer. Segundo Barreto, o alcoolismo é uma doença que traz repercussões mais graves a longo prazo.
“No início é a fantasia do prazer, mas com o tempo os problemas vêm aparecendo”, diz o médico, que faz parte da equipe Em Favor da Vida, grupo de apoio a dependentes químicos mantido pela PUC de Goiás.
Enquanto as canções não incluem esse vocabulário, é bom lembrar que outros problemas que podem ocorrer em função do consumo excessivo de álcool são: esteatose hepática, cirrose, diabetes, pancreatite e complicações neurológicas, como convulsões e perda da capacidade de concentração.
Pinga ni mim
Durante muitos anos, os versos mais criativos da música sertaneja sobre bebida alcoólica foram cantados por Sérgio Reis: “Nesta casa tem goteira/ Pinga ni mim/ Pinga ni mim/ Pinga ni mim.” A composição de Elias Filho, de 1987, traz uma marca importante da alta literatura, a ideia de ambiguidade junto com a grande força de condensação.
Com tanta música sobre o consumo de álcool aparecendo nos últimos anos, só uma alcançou o teor de “Pinga ni mim”, e foi além, porque com apenas um verso faz todo o retrato de quem se propõe a beber para o resto da vida. A imagem do perfeito pé-de-cana. “Vamos simbora/ Prum bar/ Beber, cair e levantar.
O verso em questão, claro, é o último, e se não tivesse a bendita conjunção ‘e’, abrindo o labirinto, seria um verso perfeito. Em termos de canção etílica, ninguém jamais chegou a essa síntese. “Beber, cair e levantar” é de Marcelo Marrone e Bruno Caliman, cantada por André e Adriano, entre outros.
A sinonímia da pinga
Água-que-passarinho-não-bebe; apaga-tristeza; a-que-matou-o-guarda; assovio-de-cobra; bafo-de-tigre; bicarbonato-de-soda; café-branco; chá-de-cana; lágrima-de-virgem; engasga-gato; garapa-doida; limpa-goela; jurubita; gramática; goró; Iaiá-me-sacode; três-tombos;
Dicas culturais
Alcoolduto sertanejo
André e Adriano: Beber, cair e levantar
Bruno e Marrone: É pra lá que eu vou
César e Paulino: Aí nóis bebe
Daniel: Tô dentro
Eduardo Costa: Cachaceiro
Gino e Geno: Bebo pra carai
Guilherme e Santiago: A culpa é sua
Inezita Barroso: Marvada pinga
Leandro e Leonardo: Cerveja
Leonardo: Por favor, reza pra nóis
Sandro Coelho: Isso é problema meu
Sérgio Reis: Pinga ni mim
Zezé di Camargo e Luciano: Pelos botecos do Brasil
World Pinga Music
Amy Winehouse: Rehab
Chico Buarque: Desalento
Edu Lobo: João Não-tem-de-quê
Elizeth Cardoso: Eu bebo sim
Maria Rita e O Rappa: Maneiras
Reginaldo Rossi: Garçom
Vicente Celestino: O ébrio
Zeca Pagodinho: O penetra
Serviço:
Hospital das clínicas
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em 2009)
(Para escrever esta matéria, ouvi no fone de ouvido, durante uma semana, rádios para lá de sertanejas aqui em Goiânia. Até hoje não me recuperei do porre. Desde então, sempre procuro um barzinho para beber e ouvir uma sertanejinha)