Minas Gerais tem solo fértil para bons autores, tradição que vem desde Tomás Antônio Gonzaga. A mais recente cria dessa fonte é Marcos Vinícius Almeida, que acaba de lançar seu primeiro romance,
Inércia (Multifoco, 2009).
É verdade que há altos e baixos na prosa de Almeida. A estrutura das frases, em boa parte, é minimamente experimental, dando um ritmo alucinante, mas pouco realizador. O personagem fala demais, como se estivesse num divã e o psicanalista fosse do tipo freudiano, que não interfere no desabafo do paciente.
Procurar um analista, como fez Alexandre Portnoy, de Philip Roth, pode ser um sinal de inteligência e sensibilidade, mais do que apenas um vestígio de desequilíbrio mental. No caso do personagem de Roth, em
O complexo de Portnoy, Alexandre reclama de tudo e de todos. Mas em
Inércia, o personagem – que não diz estar num consultório – reclama quase sempre de si mesmo, por estar preso a um mecanismo existencial do qual não consegue sair.
É claro que Portnoy, escrito em 1967, quando Roth tinha 34 anos, abarca toda a atmosfera de seu tempo, o desencanto do american way of life, enquanto
Inércia é bem mais leve e cria apenas o ambiente dos amores juvenis, mas isso já é considerável.
O que sobressai no romance de Almeida é o senso de humor. É um livro divertido, narrado em primeira pessoa por Juan, estudante de filosofia, universitário que gosta de beber, fumar e que está em meio a uma crise de consciência, e por isso conta seus sabores e dissabores amorosos. Seu dilema existencial é esse: não sabe se o que faz com as mulheres são atitudes de um canalha ou não.
A crise parece ter sido desencadeada quando Lúcia, sua ex-namorada, ressurge grávida, alguns meses depois de o relacionamento ter acabado. Ela diz que o filho é dele, e aí o rapaz mergulha num drama moral. Em função desse impasse, Juan está povoado de lembranças recentes. A memória está lotada de amigos, mulheres e livros, como se quisesse acertar contas com um passado tão curto, já que é jovem demais.
Contemporaneidade
No começo da narração, o leitor se depara com um texto ágil, retratando certo momento anterior ao drama maior.
“No olhar solitário que lanço da porta do quarto. Lúcia continua dormindo. Um choro abstrato. Ando agora da cozinha para sala. Da sala para cozinha. Fumo um cigarro depois do outro. Mas nada preenche esse vazio. Lúcia dorme profundamente. Queria chorar de verdade. Mas não posso. Vou do quarto para sala. Da sala para a cozinha. De novo para o quarto. Agora estou deitado ao lado de Lúcia. Ela me abraça. Sinto o cheiro doce do seu cabelo. Olho para ela. Estou de novo na cozinha. Fumando. Pensando num monte de coisas.
”
Nesse trecho, o que fica sugerido é a preferência do autor – não do narrador-personagem – pela linguagem do cinema. O que há ali são montagens de frames que narram a situação vivida por Juan. Não é demérito, é contemporaneidade. Mas a narração segue nesse ritmo frenético do começo ao fim. E isso cansa um pouco a leitura.
Neste caso, Juan é um jovem tagarela. Fala muito. É renitente e força o leitor a se imaginar como o analista que, em vez da cura, quer dar um piparote no paciente. Mas, considerando o fato de ser escrito por um jovem autor, é bom reconhecer que há muitas qualidades no livro.
A maior dessas qualidades talvez seja a identificação de uma inteligência do personagem. Ou seja, o autor conseguiu atribuir essa característica à sua criação, não pelas citações (que aqui é sinal de interferência), mas pelo modo de ver o mundo.
Literatura e testosterona
Em todo caso,
Inércia é um livro testosterônico juvenil. A mulher, o corpo feminino é o centro de sua gravidade. Juan mataria Isaac Newton a marteladas, se fosse a vontade de Deus, depois de Este ter colocado Tati (uma menina bonita e gostosa) em seu caminho. Eis uma bela piada, associativa, metafórica.
Outra jogada de humor: Juan decide vender três livros de seu acervo porque precisa levantar uma grana. Chegando ao sebo, fica em dúvida se a moça vai mesmo querer comprar seus livros. Se ela não quiser, ele está cansado demais para voltar com os volumes tão pesados.
A saída, imagina Juan, seria trocar por outros mais leves. “Já avistei
O Processo logo ali, em uma edição capa dura. Mais a frente tem o
Angústia. Se me derem esses dois está ótimo. Livros excelentes e leves de carregar.”
Ambos são livros que tratam de um impasse diante de uma condição dada, seja a existência, no caso de Graciliano Ramos, seja o sistema sócio-econômico, no caso do romance de Franz Kafka. Não são nada leves, e Juan sabe disso. O que ele quer mesmo é fazer o trocadilho, rir de sua própria situação.
Mas em certa altura, a narração de Juan cria uma espécie de humor involuntário, imagino. Ao descrever Tati:
“As mãos apoiadas no banco, o braço moreno conduzindo ao ombro roliço – que pedia uma mordida bem forte, assim como o pescoço imantado, que também me tragava, e mais embaixo, as batatas das pernas sinuosas balançando para frente e para trás de baixo do banco.” Que raios de menina batatuda é essa!
Estado do corpo
O dilema de Juan é a mesma de muitos jovens que vivem o doloroso processo de amadurecimento, tendo de deixar o desregramento para trás para poder crescer. É quando se dá conta de sua incapacidade de dizer adeus a uma mulher, de romper uma relação. Ele quer uma só, mas deseja todas elas.
“Sempre tive uma mulher dentro da cabeça. Um modelo. Um arquétipo. Um rascunho muito bem trabalhado que venho corrigindo ao longo da vida. Será que todos os homens são assim?”, pergunta Juan.
Nessa construção está o cerne do dilema, porque Juan nada contra a correnteza. As três primeiras sentenças se equivalem ao que há na cabeça da maioria dos homens. Mas ao contrário deste jovem perturbado pela inércia, o comum é todo homem ter a imagem da mulher perfeita, e com o tempo ir se ajustando à realidade, aprendendo a conviver com o ‘absurdo’ das diferenças.
A inércia referida no título do livro de Almeida é equivalente à lei de Newton, tanto é que o autor cita o físico inglês na epígrafe. Vertendo para a questão psicossociológica, é a condição da qual a pessoa não consegue sair, o estado d’alma que tende a continuar como está.
“Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento retilíneo e uniforme, a menos que seja obrigado a mudar seu estado por forças impressas a ele.” Esta é a primeira lei de Newton, que vem como epígrafe no romance, e é também a chave para o sentido do texto de Almeida, inclusive o fato enfadonho de o narrador não parar de falar.
Inércia é, em último caso, uma angústia do cotidiano das relações. Ritmo alucinante. Construção de frases quebradas, frases que sugerem frames cinematográficos mínimos, se juntando sofregamente, aos montes, para construir um sentido.
O sentido se constrói à medida que o leitor entende que o que há é uma busca de entendimento do personagem (daí a aproximação com o divã), perdido nesse oceano da vida, inquieto diante de um mundo inteiro a percorrer. Sensação semelhante àquela que o menino sente quando se encontra só, à mercê de um problema incontornável.
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