“Em matéria de poesia, criticar os ‘mestres do passado’ e apontar-lhes os defeitos é mais fácil (e menos arriscado) do que reconhecer os mestres do presente e distinguir-lhes os méritos.” Wilson Martins (1921 - )
Sant'Anna, um lírico de alma aberta Affonso Romano de Sant’Anna (1937 - ) é um poeta aparentemente fácil, porque seus versos são simples. Mas seu modo de refletir sobre o mundo, costurado com doces fios líricos, faz dele um autor diferenciado.
Ele não força a barra com esse negócio de poesia cerebral, e por isso acaba sendo poeta de verdade, um bardo da envergadura de Drummond. Aliás, os dois são mineiros, e Sant’Anna é íntimo da poesia drummondiana, a ponto de ter se doutorado com uma tese sobre o autor de Claro Enigma.
Outro fator em comum com Drummond é a inclinação para falar de amor, e falar bem, sem rebuscamentos. Quase em todas as suas publicações, principalmente as últimas, como Textamentos (1999), Intervalo amoroso (coletânea de 1999) e Vestígios (2005), Sant’Anna registra seus versos amorosos, imprimindo as mil faces do amor.
Num desses poemas, o poeta afirma que se aprende tudo na vida, a nadar, dançar, fazer tricô, a esperar, e conclui: “Em alguns aprendizados/chega-se à perfeição.// Em alguns.// No amor, não.” (in: Textamentos).
E não ser perfeito no amor significa querer amar mais, praticar essa nobreza de atos e intenções no decorrer da vida, até o fim, como no poema Além do entendimento (in: Textamentos):
“A essa altura
há coisas
que (ainda)
não entendo.
Por exemplo:
o amor. Faz tempo
que diante dele
me desoriento.
O amor é intempestivo
eu sou lento.
Quando sopra
- estatelado –
mais pareço
um catavento.”
Isso não significa de forma alguma não saber amar; significa que o exercício amoroso faz aumentar a vontade do amor, mas não produz teorias:
“Pedes explicação, que não sei dar,
sobre meu jeito de amar.
Soubesse das razões porque te amo
deste modo
poderia também me apaziguar.
Sou assim:
um gato na poltrona
aos teus pés
ou um tigre que, faminto,
carinhosamente
- vem te devorar.” (in: Textamentos)
O cotidiano é uma das casas de todo poeta. É ali que se cavam as imagens para representar a morte, o sexo, a cadeia de sentimentos da vida, e o próprio fio da existência. E isso Sant’Anna faz muito bem, numa simplicidade desconfiante, que, no final, resulta no profundo.
“O tempo é mesmo/ uma doença humana”, diz o poeta, ao contemplar um ser que está bem abaixo na escala zoológica, uma lagartixa. É porque ele sabe e consente que só o homem se relaciona com o tempo e reflete sobre isso. A lagartixa, nem se fia.
Noutro poema, é categórico:
“Se tirarmos
os drogados
os suicidas
os guerrilheiros mortos
os fracassados
os canalhas
os mediocrizados
sobrariam os vitoriosos
e a vida certamente seria linda.
Linda.
- Mas seria vida?” (in: Vestígios)
Sant’Anna também sabe ser irônico (ou seria sarcástico?). “Estou diante da Batalha de São Romano, de Paolo Uccelo./ E exijo respeito./ Não me venham falar/ de Marcel Duchamp.”
[A tempo, outro dia um senhor foi preso por, primeiro, bem antes, ter urinado no penico de Duchamp, e depois, numa ocasião mais recente, tê-lo quebrado a marteladas, dizendo não ser arte aquilo]. Sant’Anna fora mais sutil e delicado.
Em outros versos, ele alfineta: “erro concreto.// o poeta concretista/ comete um erro típico:/ confunde o logos/ com o logotipo.”
Poeta, cronista, ensaísta, Sant’Anna tem mais de vinte livros publicados. Em 1980, fez grande sucesso com um poema chamado Que país é este?, publicado no Jornal do Brasil, e depois em livro. Atualmente, ele escreve para o jornal Correio Brasiliense.
É casado com a escritora Marina Colassanti, cuja lembrança está sempre presente em sua obra poética. Mas agora, aos 71 anos, já no crepúsculo, outra figura ronda sua poesia: a morte.
“Não canso de estudar a morte”, diz ele, num poema; “Nesta semana/ morreram/ três vizinhos no meu prédio”, observa, em outro.
No estudo de cadáveres, ele analisa o corpo e a imagem do morto, que “cresce estranhamente, logo que morre./ A barba brota-lhe no rosto/ e as unhas se alongam./ O morto cresce em nossa mente”.
E arremata: “Depois, a urgência da vida/ toma conta de nossos dias/ e o morto se conforma/ encolhe-se/ e fica amortecido num canto da memória/ até morrer de novo/ dentro de nossa morte.” (in: Textamentos).
Tudo isso é verdade, mas também é verdadeiro que nos grandes poetas alguma coisa sempre vinga por mais tempo, e muitas vezes fica, permanece como uma sintoma da “doença humana”, que é o tempo. Esta semente Sant’Anna já plantou na literatura brasileira.
Trechos:
Presente vivo
Viver
é conjugação diária
do presente.
Viver
é presentear.
Mais que um jeito de doer
é um modo de doar.
(...)
“Não se dá
apenas pelo prazer
de ver
o outro receber.
Dá-se
para que o outro
entre-abrindo-se ao presente
também dê.” (in: Textamentos)
Que país é este?
“Uma coisa é um país,
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.
Uma coisa é um país,
outra o confinamento.
Mas já soube datas, guerras, estátuas
Usei caderno ‘Avante’
- e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um ‘berço esplêndido’ para um ‘futuro radioso’
e éramos maiores em tudo
- discursando rios e pretensão.
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra um monumento.
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
(...)
Há 500 anos caçamos índios e operários,
há 500 anos queimamos árvores e hereges,
há 500 anos estupramos livros e mulheres,
há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.
(...)
Povo
não pode ser sempre o coletivo de fome.
Povo
não pode ser um séquito sem nome.
Povo
não pode ser o diminutivo de homem.
O povo, aliás,
deve estar cansado desse nome,
embora seu instinto o leve à agressão
e embora
o aumentativo de fome
possa serrevolução. (in: Intervalo amoroso [1999]; Que país é este? e outros poemas [1980]; e Que país é este? [1990]).