terça-feira, 22 de abril de 2008

COM O OLHAR VOLTADO PARA O LESTE, AMANHEÇO A TE ESPERAR

Orlando Morais é bem conhecido como o marido da atriz Glória Pires. Mas certamente é muito mais que isso. Ele é um dos melhores compositores da Música Popular Brasileira, tendo sido chamado de gênio por Caetano Veloso, que depois desdisse, mas já estava dito e observado. Entre as várias canções de sua autoria há uma cuja letra é obra-prima da poesia musicada, gravada em Abismo Zen, depois regravada num outro CD, Agora, em dueto com a especial Maria Bethânea. Senão vejamos e ouçamos:


A montanha e a chuva (letra e música de Orlando Morais)

Eu queria tanto lhe dizer
Da minha solidão, da minha solidez,

Do tempo que esperei por minha vez,
Da nuvem que passou e não choveu

Minhas mãos estão no ar,
Como aeroporto pra você aterrissar.
Também sou porto se quiseres ancorar.
Sou ar, sou terra, e sou mar.

Eu tenho a mão e você tem a luva,
Eu sou montanha e você é chuva,
Que escorre e some no final da curva,
E beija o rio pra abraçar o mar.

É por isso que a montanha tem ciúmes,
Quando o vento leva a chuva pra dançar.

Muitas vezes, tudo acaba em tempestade,
Raios gritam sobre a tarde,
Tardes dormem ao luar.
Anoitece a minha espera,
Amanheço a te esperar.

A temática da música está clara. Trata-se da espera. E de um tipo de espera que revela a condição sine qua non do enamorado, que desvela a alma do sujeito, da manhã ao pôr do sol. Dividido aqui em cinco estrofes, o poema-canção inicia sua jornada se revelando. Quer falar da solidão, mas quer dizer também que é resistente como pedra (a montanha), mais do que isso, cabeça dura a ponto de ser concreto, sólido, e por isso também quer falar de sua solidez.

O sujeito poético da canção espera há muito tempo. E houve época em que nasceu uma esperança maior. As metáforas são muitas, e servem para diversas interpretações, das quais é preferível a freudiana, porque nela a carga sensual está mais à vista. Mas antes, lembrando o estudo dos signos em semiótica, sabe-se que a relação entre nuvem e chuva é a de índice, tendo a nuvem como indicação da água que vai cair do céu, pelo menos é o que se espera. Mas a nuvem passou e não choveu, e a espera foi em vão. Mesmo assim, o sujeito poético continua em sua investida.

Ao armar o quadro de imagens a partir desses dois termos, chuva e nuvem, o autor completa o seu lirismo reunindo mais elementos da natureza. “Minhas mãos estão no ar,/ como aeroporto pra você aterrissar ...”. Promete segurança, abrigo, e quer ser tudo: ar, terra e mar.

As imagens seguintes são bem sugestivas: “Eu tenho a mão e você tem a luva”, com os dedos representando o falo; e a luva, claro – pois se encaixa na mão –, o próprio órgão sexual da mulher. Montanha aqui também é masculino, e chuva, aquilo que vem como véu para cobrir a verticalidade dessa montanha, escondendo-se depois, em segredos femininos, ao se despejar num oceano de mistérios.

E o homem sabe disso. “É por isso que a montanha tem ciúmes,/ quando o vento [adversário, amante da chuva, um inimigo oculto] leva a chuva pra dançar.” E aí o conflito aparece, os dois sexos que se querem tanto não se entendem, e sabe-se por que ela foi embora, e sabe-se também por que ele se mantém na convicção de que sua amada vai voltar.

É que “muitas vezes tudo acaba em tempestade./ Raios gritam sobre a tarde,/ [no fim do dia, vindo o cansaço] tardes dormem ao luar/ [pois a esperança é um alvorecer, um amanhã, no entanto é ela que se turva] anoitece a minha espera,/ [como se não fosse mais possível, como se tudo tivesse terminado, e a própria espera se tornado noite, mas aí o verbo volta para a primeira pessoa, porque é o coração do homem que manda, e então] amanheço a te esperar”.

Para fechar e fazer jus ao blog de leituras, a poesia de Orlando Morais remete-se ao olhar de Roland Barthes, numa das passagens de seus Fragmentos de um discurso amoroso:

“‘Estou apaixonado? – Sim, pois espero.’ O outro não espera nunca. Às vezes quero representar aquele que não espera; tento me ocupar em outro lugar, chegar atrasado; mas nesse jogo perco sempre: o que quer que eu faça, acabo sempre sem ter o que fazer, pontual, até mesmo adiantado. A identidade fatal do enamorado não é outra coisa senão: sou aquele que espera.”

“Amanheço a te esperar”

(Este texto já havia sido publicado no meu extinto blog Leituras)

2 comentários:

Anônimo disse...

Giba, são tantas emoções!... Tenho tanto a dizer e tão parco tempo. Agruras da quadrupla jornada...Enfim, sobre a canção, Orlando Moraes mescla com muita intensidade o etéreo dos sentimentos com o material consumível e consumado,objeto da paixão, que é o ser amado e tudo que se relaciona carnalmente com ele. Pois bem, Solidão e solidez usados no 2º verso ilustram essa dualidade e que o sentimento se solidifica, incorpora-se em gestos e atitudes, deixando a esfera subjetiva de eu-poético e consumando-se em seu desejo palpável (e apalpável!). Também há a intervenção líquida: várias "águas" que nos levam por diferentes sensações; entre elas, a lembrança dos termos paixão torrencial, imprevisível e incontrolável como qualquer água geniosa e generosa, enfurecida pelo amor ou abrandada pelo desprezo. Lembrou-me de uns versos (de quem, não me lembro) que dizem: inevitável como o amanhecer...è possível evitar as paixões? è possível conter a força das águas interiores latentes em explodir em líquidos corpóreos cheios de feromônios e sensações? É possível também controlar ou, ao menos, driblar aquele mesquinho e irresistível sentimento chamado ciúme? A montanha enciuma-se da chuva com o vento; leio isto como sres de diferentes naturezas em um conflito essencial - a montanha sólida e imóvel, representa segurança, embora sinta-se insegura perante os dois seres flutuantes e - chuva e vento, de "gênios" naturalmente volúveis...e, pode-se controlar os ventos e as chuvas?...Chego a concluir que a natureza humana, pelo menos a minha, é vento e chuva. Flávia.

Gilberto G. Pereira disse...

Obrigado, Flávia, por enriquecer este humilde blog! Um beijão!