Orlando Morais é bem conhecido como o marido da atriz Glória Pires. Mas certamente é muito mais que isso. Ele é um dos melhores compositores da Música Popular Brasileira, tendo sido chamado de gênio por Caetano Veloso, que depois desdisse, mas já estava dito e observado. Entre as várias canções de sua autoria há uma cuja letra é obra-prima da poesia musicada, gravada em Abismo Zen, depois regravada num outro CD, Agora, em dueto com a especial Maria Bethânea. Senão vejamos e ouçamos:
A montanha e a chuva (letra e música de Orlando Morais)
Eu queria tanto lhe dizer
Da minha solidão, da minha solidez,
Do tempo que esperei por minha vez,
Da nuvem que passou e não choveu
Minhas mãos estão no ar,
Como aeroporto pra você aterrissar.
Também sou porto se quiseres ancorar.
Sou ar, sou terra, e sou mar.
Eu tenho a mão e você tem a luva,
Eu sou montanha e você é chuva,
Que escorre e some no final da curva,
E beija o rio pra abraçar o mar.
É por isso que a montanha tem ciúmes,
Quando o vento leva a chuva pra dançar.
Muitas vezes, tudo acaba em tempestade,
Raios gritam sobre a tarde,
Tardes dormem ao luar.
Anoitece a minha espera,
Amanheço a te esperar.
A temática da música está clara. Trata-se da espera. E de um tipo de espera que revela a condição sine qua non do enamorado, que desvela a alma do sujeito, da manhã ao pôr do sol. Dividido aqui em cinco estrofes, o poema-canção inicia sua jornada se revelando. Quer falar da solidão, mas quer dizer também que é resistente como pedra (a montanha), mais do que isso, cabeça dura a ponto de ser concreto, sólido, e por isso também quer falar de sua solidez.
O sujeito poético da canção espera há muito tempo. E houve época em que nasceu uma esperança maior. As metáforas são muitas, e servem para diversas interpretações, das quais é preferível a freudiana, porque nela a carga sensual está mais à vista. Mas antes, lembrando o estudo dos signos em semiótica, sabe-se que a relação entre nuvem e chuva é a de índice, tendo a nuvem como indicação da água que vai cair do céu, pelo menos é o que se espera. Mas a nuvem passou e não choveu, e a espera foi em vão. Mesmo assim, o sujeito poético continua em sua investida.
Ao armar o quadro de imagens a partir desses dois termos, chuva e nuvem, o autor completa o seu lirismo reunindo mais elementos da natureza. “Minhas mãos estão no ar,/ como aeroporto pra você aterrissar ...”. Promete segurança, abrigo, e quer ser tudo: ar, terra e mar.
As imagens seguintes são bem sugestivas: “Eu tenho a mão e você tem a luva”, com os dedos representando o falo; e a luva, claro – pois se encaixa na mão –, o próprio órgão sexual da mulher. Montanha aqui também é masculino, e chuva, aquilo que vem como véu para cobrir a verticalidade dessa montanha, escondendo-se depois, em segredos femininos, ao se despejar num oceano de mistérios.
E o homem sabe disso. “É por isso que a montanha tem ciúmes,/ quando o vento [adversário, amante da chuva, um inimigo oculto] leva a chuva pra dançar.” E aí o conflito aparece, os dois sexos que se querem tanto não se entendem, e sabe-se por que ela foi embora, e sabe-se também por que ele se mantém na convicção de que sua amada vai voltar.
É que “muitas vezes tudo acaba em tempestade./ Raios gritam sobre a tarde,/ [no fim do dia, vindo o cansaço] tardes dormem ao luar/ [pois a esperança é um alvorecer, um amanhã, no entanto é ela que se turva] anoitece a minha espera,/ [como se não fosse mais possível, como se tudo tivesse terminado, e a própria espera se tornado noite, mas aí o verbo volta para a primeira pessoa, porque é o coração do homem que manda, e então] amanheço a te esperar”.
Para fechar e fazer jus ao blog de leituras, a poesia de Orlando Morais remete-se ao olhar de Roland Barthes, numa das passagens de seus Fragmentos de um discurso amoroso:
“‘Estou apaixonado? – Sim, pois espero.’ O outro não espera nunca. Às vezes quero representar aquele que não espera; tento me ocupar em outro lugar, chegar atrasado; mas nesse jogo perco sempre: o que quer que eu faça, acabo sempre sem ter o que fazer, pontual, até mesmo adiantado. A identidade fatal do enamorado não é outra coisa senão: sou aquele que espera.”
“Amanheço a te esperar”
(Este texto já havia sido publicado no meu extinto blog Leituras)
Eu queria tanto lhe dizer
Da minha solidão, da minha solidez,
Do tempo que esperei por minha vez,
Da nuvem que passou e não choveu
Minhas mãos estão no ar,
Como aeroporto pra você aterrissar.
Também sou porto se quiseres ancorar.
Sou ar, sou terra, e sou mar.
Eu tenho a mão e você tem a luva,
Eu sou montanha e você é chuva,
Que escorre e some no final da curva,
E beija o rio pra abraçar o mar.
É por isso que a montanha tem ciúmes,
Quando o vento leva a chuva pra dançar.
Muitas vezes, tudo acaba em tempestade,
Raios gritam sobre a tarde,
Tardes dormem ao luar.
Anoitece a minha espera,
Amanheço a te esperar.
A temática da música está clara. Trata-se da espera. E de um tipo de espera que revela a condição sine qua non do enamorado, que desvela a alma do sujeito, da manhã ao pôr do sol. Dividido aqui em cinco estrofes, o poema-canção inicia sua jornada se revelando. Quer falar da solidão, mas quer dizer também que é resistente como pedra (a montanha), mais do que isso, cabeça dura a ponto de ser concreto, sólido, e por isso também quer falar de sua solidez.
O sujeito poético da canção espera há muito tempo. E houve época em que nasceu uma esperança maior. As metáforas são muitas, e servem para diversas interpretações, das quais é preferível a freudiana, porque nela a carga sensual está mais à vista. Mas antes, lembrando o estudo dos signos em semiótica, sabe-se que a relação entre nuvem e chuva é a de índice, tendo a nuvem como indicação da água que vai cair do céu, pelo menos é o que se espera. Mas a nuvem passou e não choveu, e a espera foi em vão. Mesmo assim, o sujeito poético continua em sua investida.
Ao armar o quadro de imagens a partir desses dois termos, chuva e nuvem, o autor completa o seu lirismo reunindo mais elementos da natureza. “Minhas mãos estão no ar,/ como aeroporto pra você aterrissar ...”. Promete segurança, abrigo, e quer ser tudo: ar, terra e mar.
As imagens seguintes são bem sugestivas: “Eu tenho a mão e você tem a luva”, com os dedos representando o falo; e a luva, claro – pois se encaixa na mão –, o próprio órgão sexual da mulher. Montanha aqui também é masculino, e chuva, aquilo que vem como véu para cobrir a verticalidade dessa montanha, escondendo-se depois, em segredos femininos, ao se despejar num oceano de mistérios.
E o homem sabe disso. “É por isso que a montanha tem ciúmes,/ quando o vento [adversário, amante da chuva, um inimigo oculto] leva a chuva pra dançar.” E aí o conflito aparece, os dois sexos que se querem tanto não se entendem, e sabe-se por que ela foi embora, e sabe-se também por que ele se mantém na convicção de que sua amada vai voltar.
É que “muitas vezes tudo acaba em tempestade./ Raios gritam sobre a tarde,/ [no fim do dia, vindo o cansaço] tardes dormem ao luar/ [pois a esperança é um alvorecer, um amanhã, no entanto é ela que se turva] anoitece a minha espera,/ [como se não fosse mais possível, como se tudo tivesse terminado, e a própria espera se tornado noite, mas aí o verbo volta para a primeira pessoa, porque é o coração do homem que manda, e então] amanheço a te esperar”.
Para fechar e fazer jus ao blog de leituras, a poesia de Orlando Morais remete-se ao olhar de Roland Barthes, numa das passagens de seus Fragmentos de um discurso amoroso:
“‘Estou apaixonado? – Sim, pois espero.’ O outro não espera nunca. Às vezes quero representar aquele que não espera; tento me ocupar em outro lugar, chegar atrasado; mas nesse jogo perco sempre: o que quer que eu faça, acabo sempre sem ter o que fazer, pontual, até mesmo adiantado. A identidade fatal do enamorado não é outra coisa senão: sou aquele que espera.”
“Amanheço a te esperar”
(Este texto já havia sido publicado no meu extinto blog Leituras)
2 comentários:
Giba, são tantas emoções!... Tenho tanto a dizer e tão parco tempo. Agruras da quadrupla jornada...Enfim, sobre a canção, Orlando Moraes mescla com muita intensidade o etéreo dos sentimentos com o material consumível e consumado,objeto da paixão, que é o ser amado e tudo que se relaciona carnalmente com ele. Pois bem, Solidão e solidez usados no 2º verso ilustram essa dualidade e que o sentimento se solidifica, incorpora-se em gestos e atitudes, deixando a esfera subjetiva de eu-poético e consumando-se em seu desejo palpável (e apalpável!). Também há a intervenção líquida: várias "águas" que nos levam por diferentes sensações; entre elas, a lembrança dos termos paixão torrencial, imprevisível e incontrolável como qualquer água geniosa e generosa, enfurecida pelo amor ou abrandada pelo desprezo. Lembrou-me de uns versos (de quem, não me lembro) que dizem: inevitável como o amanhecer...è possível evitar as paixões? è possível conter a força das águas interiores latentes em explodir em líquidos corpóreos cheios de feromônios e sensações? É possível também controlar ou, ao menos, driblar aquele mesquinho e irresistível sentimento chamado ciúme? A montanha enciuma-se da chuva com o vento; leio isto como sres de diferentes naturezas em um conflito essencial - a montanha sólida e imóvel, representa segurança, embora sinta-se insegura perante os dois seres flutuantes e - chuva e vento, de "gênios" naturalmente volúveis...e, pode-se controlar os ventos e as chuvas?...Chego a concluir que a natureza humana, pelo menos a minha, é vento e chuva. Flávia.
Obrigado, Flávia, por enriquecer este humilde blog! Um beijão!
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