O médico mineiro Pedro Nava, amigo do alto escalão da inteligentsia brasileira, ele mesmo renomado internacionalmente na área médica, nasceu em Juiz de Fora, em 1903, e morreu em 1984, no Rio de Janeiro. Sua contribuição ao tesouro nacional das letras foi urdida no gênero memorialístico, escrevendo dois catataus de memória: Baú de ossos e Balão cativo.
Ler Baú de ossos é entrar num mausoléu de fatos (sem trocadilho) que pouco interessa ao leitor comum, e da vida de Nava não tem quase nada. Além do vigor da pena, a grande marca do autor nesse campo é o registro impressionante de nomes e situações sócio-políticas da região das Minas Gerais, principalmente, embora abarque também a história do país todo em muitos momentos.
Ler Baú de ossos é entrar num mausoléu de fatos (sem trocadilho) que pouco interessa ao leitor comum, e da vida de Nava não tem quase nada. Além do vigor da pena, a grande marca do autor nesse campo é o registro impressionante de nomes e situações sócio-políticas da região das Minas Gerais, principalmente, embora abarque também a história do país todo em muitos momentos.
O livro foi publicado em 1972, com segunda edição já em 73. Isso significa que foi bastante procurado em sua época e que os leitores de hoje já o conhecem bem. Compartilho aqui, apenas a título de lembrança, uma passagem deliciosa.
Trata-se de um trecho elucidativo sobre Minas Gerais e suas entranhas genealógicas, o ninho do saber histórico e do rastreamento do poder. Quando Afonso Pena, o presidente da República, morreu em 1909, o rumo do domínio político em Minas Gerais mudou completamente, passando de um clã relativamente pequeno para outro maior e mais organizado, se seguirmos a ótica de Nava.
Essa mudança de ventos coloca um homem chamado Antônio Carlos Ribeiro de Andrada no poder de Juiz de Fora. E Nava aproveita o mote para traçar um perfil genealógico do poder e fazer uma leitura cujo modelo serve para qualquer parte do país, demonstrando como se movimentava a estrutura político-social da região Sudeste, a parte do país que mais mandou em toda a nação desde o século XVIII, e que no nascimento da República ficou mais bem desenhada, com seus clãs e os mil satélites girando ao redor.
Trecho no formato original:
“Ninguém pode compreender nada na história social e política de Minas, se não entender um pouco de genealogia para estudar os troncos e os colaterais, por exemplo, dos descendentes de D. Joaquina do Pompeu – esses Pinto da Fonseca, Melo Franco, Gastão da Cunha, Laras, Álvares da Silva, Capanemas, Silva Campos, Melo Campos, Valadares, Guimarães, Abreus, Vasconcelos, Cordeiros e Cançados – dominadores, proprietários, mandões, sobas, políticos, diplomatas e estadistas do Oeste. Como por exemplo, ainda, esses Felício dos Santos, Camargos, Pires, Rabelos, Lessas, Machados, Pimentas, Prates, Sás do Brejo e Sás da Diamantina, outros dominadores, caciques, coronelões, espadachins, poetas, políticos, embaixadores e estadistas do Norte. O grupo familiar dos Andradas de Minas não ficava nada a dever a esses outros dois clãs que tomamos como exemplo e teve, na Mata, significado idêntico. O Dr. Antônio Carlos Ribeiro de Andrada era filho de pai homônimo e de Dona Adelaide Lima Duarte, descendente de Aires Gomes. Não tinha nada dos rompantes paulistas dos Andradas, mas era cheio de ronha mineira dos Lima Duarte. Tinha dos primeiros, o físico e o nome, dos segundos, a astúcia e aquilo que Mário de Andrade chamava o ‘cauteloso pouco a pouco’. E mais a simpatia e aquele encantamento que ele dividia com outros Lima Duarte – os seus primos Penido. Por estes ele se ligava aos Burniers, Monteiros, Teixeira Leites, Assis, Álvares da Silva (primeira ponte para o Oeste e para a gente do Pompéu), Ribeiros, Ribeiros de Oliveira, Batistas de Oliveira, Nunes Lima, Badarós, Mascarenhas, Vidais Barbosa Lage e Valadares (segunda ponte para o Oeste e para a gente do Pompeu). Pelo mano José Bonifácio, aos Lafaietes e aos Stoklers. Pela esposa, aos Olindas, Araújo Limas, Gimarães, Azevedos, Moreiras e Régis de Oliveira. Tudo isto representava uma família extremamente solidária e estendendo-se, em distância, da Borda do Campo a Petrópolis ao Rio, passando por Juiz de Fora e zona mesopotâmica de Minas. Acresce que além de solidária, essa gente era a possuidora. Das fazendas, das companhias, das empresas, das indústrias, das fábricas, do prestígio nas profissões liberais, das santas-casas, das confrarias, das obras pias, das gotas-de-leite, das sopas-dos-pobres, das irmandades e dos apostolados. Uma piedade exemplar fazia chover sobre todas as bênçãos da igreja e os juros das apólices. Deste modo, tocar num só era logo pôr en branle e favor, o executivo, o legislativo, o judiciário, os correligionários, os compadres, os afilhados, os primos de primos dos primos, os contraparentes, Guy de Fongaland, santa Teresinha do Menino Jesus, o próprio Menino Jesus, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a dos Navegantes, a dos Aflitos, a de Lurdes, o Padre, o Filho e o Espírito Santo.”
Genealogia e memória
Na segunda metade de século XX, essa árvore descrita por Nava ou enfraqueceu um pouco ou acrescentaram-se a ela nomes como Neves (de Tancredo), Azeredo (de Eduardo), Kubitschek (de Juscelino) e assim por diante. E o principal responsável por essa mudança foi Getúlio Vargas, sem dúvida.
Genealogia tem tudo a ver com memória, que por sua vez, se liga à tradição, sedimentação e conquista de espaços, de poder, de corpos social e cultural. Nava sabia das coisas, seguindo uma lição nietzschiana ensinada em Genealogia da moral, que Michel Foucault também seguiu. Em Baú de ossos, Nava nos ensina que nenhuma memória se apaga. Ao contrário, se fossiliza, vira pedra, que pode ser explorada a picaretas, ou seja, revolvida por meio de afiados instrumentos da linguagem e da inteligência.