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O
livro tem vários méritos, e um deles é o de criar uma trama avessa a
sentimentalismos,
mas que por dentro a vida pulsa pelos afetos bons e maus, e o
leitor sente a dor daquilo tudo
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A
literatura possibilita o vislumbre dos espaços possíveis e imagináveis. A
literatura é o lugar das narrativas por excelência, quaisquer que sejam. É
gostoso atravessar ambientes e tempos na companhia de pessoas e bichos, ou
coisas, ou sentimentos alegorizados na veia da prosa literária, em narrativas
clássicas ou criadas pela surpreendente nova geração, dona de uma escritura enxuta
como a do boliviano Rodrigo Hasbún.
Em seu
romance Os afetos (Intrínseca, 2016, 128 páginas, tradução de José
Geraldo Couto), o leitor é convidado a mergulhar numa viagem estética muito
contemporânea, ligada ao eu e a um tipo de distopia que atravessa tudo que
existe.
Primeiro,
o romance nos chama a atenção para o fato de que sempre que mudamos, mudamos
para fugir de algo que nos afeta. Essa mudança se dá por diversos motivos, seja
pela saudade de alguém que está em outro lugar, seja pelo fato de o lugar de onde
somos já não ser mais o mesmo. A afecção nos faz fugir ou nos força a abandonar
nosso lar e ir atrás do sonho de encontrar um lugar melhor, que nos toque de
maneira mais positiva.
A
ideia de mudança (geográfica e sentimentalmente falando), portanto, está muito
mais conectada com fatores emocionais, com os impulsos da vida, do que com fatores
racionais. Mesmo quando o motivo diz respeito à política, o que nos afeta é o
duto emocional de quem toma as decisões ou as consequências daquilo que fizemos
por razões que a própria razão às vezes desconhece ou nega.
Os afetos
narra o drama humano de indivíduos a partir de uma família de alemães que se
muda de Munique para La Paz, na Bolívia, na década de 1950. O romance se divide
em duas partes. A primeira trata da vida realocada, da readaptação da família
em terreno estrangeiro, mas do ponto de vista dos indivíduos, tendo como pano
de fundo a busca de lugares, quaisquer que sejam, geográficos ou da alma.
A
segunda parte dá continuidade ao drama humano, mas tem como pano de fundo o
confronto político da ditadura com a guerrilha. A trama toda se constrói por um
feixe de relatos (alternando as vozes de personagens diferentes) que a vão
compondo e revelando novos detalhes da vida da família, quatro mulheres e um
homem: a mãe, Aurélia, submissa e apaixonada, três filhas e o pai, Hans.
Seco
e aventureiro, Hans é um cinegrafista que viajava o mundo em expedições arqueológicas,
atrás de cidades míticas, como Paitití, e de lugares distantes e inacessíveis como
Nanga Parbat ou o fundo do mar, para filmar documentários.
Abordagem histórica
Os
afetos são os sentimentos recordados pelas irmãs Trixi, Heidi e Monika, e por
um dos conhecidos, Reinhardt, também de descendência alemã. Há, por fim, o
recorte dramático da afecção da guerrilha na vida da família (ou a afecção da
ditadura de René Barrientos sobre o país inteiro, que afetaria Monika, entrando
para a guerrilha e se afastando dos parentes).
A
ditadura militar na Bolívia durou de 1964 a 1982. Logo, o romance parte de uma
dada situação pré-ditadura e avança no tempo até que os destinos dos
personagens se choquem com o destino da nação boliviana.
A
história narrada em Os afetos é de certa forma a história da colônia
alemã na Bolívia, e de certa forma, a história de dominação da elite branca sobre
os nativos e mestiços da Bolívia (e do Novo Mundo, numa escala metafórica maior).
Tanto
é que em toda a trama, os nativos aparecem muito pouco, fora do núcleo da
família protagonista. Aparecem apenas em suas parcas relações com pessoas
brancas que constituem 5% dos 11 milhões de bolivianos.
Pelas
beiradas, pelos contornos das margens, a história da Bolívia vai se desenhando
também. A abordagem histórica e política fica mais forte na segunda parte do
romance, criando uma espécie de eco das vozes individuais que incorporam as do
corpo social, da guerrilha, das minas etc.
Os
olhos do autor estão voltados para a história da América Latina, mas de maneira
macro. O olhar não é suficientemente microscópico a ponto de enxergar os
detalhes da base, os microdramas do povo e as minúcias dos costumes. Faz isso só
en passant, como quando uma das narradoras
diz que a empregada aprendeu a fazer comida alemã porque ninguém se adaptou à
cozinha local.
Jogo de cena
O
romance de Hasbún tem vários méritos, e um deles é o de criar uma trama avessa
a sentimentalismos, mas que por dentro a vida pulsa pelos afetos bons e maus, e
o leitor sente a dor daquilo tudo. Em sua secura estrutural, não há recursos
pirotécnicos, nem prolongamentos descritivos.
O
que há é uma economia de gestos verbais, uma contenção nas palavras formadoras
do parágrafo, e ao mesmo tempo uma criatividade lexical que sustenta a riqueza
do texto. Não se trata de neologismos, nem de invenções à Rosa ou Joyce. Trata-se,
isso, sim, de uma precisão narrativa, que vai recortando os quadros da memória
e empurrando para frente o jogo de cena, como se uma tela imensa com as imagens
criadas pela narração fosse acompanhando nosso olhar, enquanto acompanhamos a
passagem do tempo.
Neste
sentido, a narrativa traz uma linguagem cinematográfica, mas não à maneira de
roteiros, é uma literatura muito bem feita, uma literatura dos novos tempos que
já traz engendrada em si mesma a decupacão emprestada do cinema. Umberto Eco,
mesmo na tumba, talvez se revire e diga que esse tipo de procedimento já estava
em “Ilíada”, que não é prerrogativa do cinema.
Por
exemplo, sobre a mãe das meninas, Aurélia, vemo-la numa cena em que ela
arranjou um emprego, depois sabemos que Hans, seu marido, o amor de sua vida,
razão pela qual ela foi para a Bolívia, voltou para Alemanha para morar com uma
moça mais jovem. Em seguida, sabemos que Aurélia ficou doente.
Sabemos
disso em trechos curtos, em espaços de uma linha, em capítulos diferentes,
enquanto outros fios vão sendo cerzidos, até que mais na frente lemos: “No
princípio dos anos sessenta minha mãe já estava morta havia uns dois anos, de
um câncer que na fase final causou-lhe tanta dor que em mais de uma ocasião ela
pediu por favor para morrer.”
O
que fica explícito nas luzes que se apagam sobre o destino de Aurélia, apesar
da dor do câncer, é que o imenso amor que ela sentia pelo marido, que a fez
mudar de país, foi uma afecção maior que a doença que a matou na solidão.
O
rastro emocional de Hans abandonando Aurélia e indo para a Alemanha leva o
leitor às pegadas de sua volta, casado com a outra, e se instalando numa
fazenda sintomaticamente batizada de Dolorosa. Tudo vai se construindo em
poucas linhas numa superposição de figuras, e tudo vai se desnudando em ruínas.
Neste
sentido, a narrativa de Os afetos é uma distopia, traço característico
de quase todas os romances do século 21, feitos pela nova geração. Esta é
emblemática porque metaforiza os lugares não atingidos, como Paitití ou certa
região da alma de Monika, e lugares desfeitos, como os sonhos, os ideais e até a família, a região dos afetos
familiares, o amor de pai, o amor de marido e de mulher, ou a falta deles, o
amor fraterno.
Entre
as muitas particularidades de chaves que Os afetos oferece está a
experiência sensível da identidade na diáspora, ou a afirmação interior do
homem desenraizado, cuja única tábua de salvação é o próprio eu, sentimento
típico da pós-modernidade.
O romance
fala das identidades fendidas pela migração, pela sensação dolorida do parto da
identidade plural. Dói ser diferente num mundo de iguais, mas dói mais ainda o
processo de multiplicação das células identitárias quando se está assimilando
outra cultura, outra língua, e ao mesmo tempo não se quer, não se pode perder a
cultura e a língua de origem.
As
sociedades modernas são todas assim. E a literatura contemporânea está
expressando isso agora. Talvez esteja aí a necessidade do eu na literatura, a
narração em primeira pessoa. Talvez isso não seja apenas narcisismo, mas também
uma vontade de se posicionar no mundo e expor as chagas existenciais da mudança
que afetam a história do indivíduo.
A
sociedade contemporânea foi, e vem sendo, convencida de que a individualidade é
a única garantia da existência (talvez nem isso). Mas a identidade pressupõe
células de origem divididas entre um pai e uma mãe, logo um agrupamento de
gente, um irmão, ou um primo, uma comunidade, uma língua em comum. A identidade
pressupõe compartilhar duas origens, ao menos, às vezes, duas, três línguas.
Assimilar tudo isso às vezes dói. Ser tudo isso afeta.
Pós-memória
A
contemporaneidade empurrou o eu e a individualidade para a superfície das
narrativas, todo tipo de narrativa, e por isso as análises viraram o foco para
os afetos. As tramas do afeto falam de traumas. Elas estão alojadas no que se
convencionou a chamar de pós-memória, segundo o filósofo Vladimir Safatle.
A
pós-memória lida com traumas históricos a partir de um segundo ponto de vista,
escrito por autores que não viveram de fato o período do trauma. É exatamente o
que corre com o romance de Hasbún, que tem 36 anos, tendo nascido em 1981, em Cochabamba.
A
literatura latino-americana, que na segunda metade do século 20 produziu deuses
do romance do novo mundo, como Garcia Márquez, Vargas Llosa e por fim Bolaño
(reconhecido postumamente), agora promete renovação com uma safra talentosa. Hasbún
é um desses talentos.
A
revista britânica Granta é a
que mais valoriza essas almas novas provedoras de uma linguagem vigorosa,
demonstrando que o romance vai muito bem de saúde, obrigado. Brasileiros como
João Paulo Cuenca, Carol
Bensimon e Julián Fuks, entre outros, estão nessa lista valorizada pela publicação,
em sua versão em espanhol que cata nomes promissores em língua portuguesa
também.
Jornalista, escritor e
roteirista, Rodrigo Hasbún é sem dúvida um dos talentos da nova geração de
escritores em língua espanhola. Fez faculdade na Bolívia, mas depois ganhou o
mundo. Morou no Chile, na Espanha, nos EUA, onde fez doutorado na Universidade
de Cornell, na mítica cidadezinha de Ithaca, no Estado de Nova York, e agora
vive na cidade de Toronto, no Canadá.
O livro que lançou Hasbún para
o mundo foi El lugar del cuerpo, de
2007, que o fez ser incluído no grupo dos 22 melhores escritores em língua
espanhola abaixo dos 35 anos, em 2010, pela Granta.
Cronógrafos
Os afetos é seu segundo romance. Outra
virtude de sua narrativa são o verso e
o reverso das paisagens, alternando vozes. Há também uma mistura de focos,
incluindo uma passagem liricamente afetada, narrada em segunda pessoa, que é a
voz de Monika, como se o personagem estivesse afetado por algum tipo de
alienação, ou buscando um afastamento proposital do eu, para não enlouquecer
dentro do mundo que escolheu para viver.
Há uma
grande rede subterrânea de sentimentos, dutos de contatos. Trixi teve o dia
mais feliz da sua vida num Natal que passou só com a mãe em La Paz, quando
fumou pela primeira vez aos 12 anos, cigarro oferecido pela mãe, que por sua
vez havia se iniciado no vício com a mãe às margens do Lago Chiemsee, na
Alemanha.
Quando
a mãe morreu, Trixi fumava para matar a saudade. A metáfora dos maus afetos se
mistura com a dos bons. Ao fumar, Trixi
não só matava a saudade, mas talvez a si mesma, aos pouquinhos. Como o cigarro,
a saudade também é um afeto.
A
sensação de estranheza é uma afecção, como a passagem do tempo, por exemplo,
quando a sentimos atravessar nosso corpo pelas marcas externas e nossa alma
pelas marcas internas. A narrativa de Hasbún explora esse recurso. Certas passagens são cronógrafos, como datas e idades que sequenciam a
prosa. Por exemplo, citar o ano 1955, e lá na frente observar “os anos sessenta
foram estranhos desde o início.” O tempo passa e afeta o espaço.
Num
momento de afirmação do feminismo, um romance escrito por um homem com vozes
femininas em quase sua totalidade, narrando o estrago que um homem faz na vida
afetiva de uma família inteira, é simbólico de muita coisa. “Logo que regressou
de uma longa estada na Europa, meses depois que enterramos mamãe, papai comprou
terras perto de Concepción.” Simples assim, seco assim, o trecho dá conta de
uma dor rolando no tempo.
Ícones do ocaso
A
história da morte de Che Guevara está embutida num capítulo que abre a segunda parte do romance. Ela se
encaixa na ideia de distopia e na de metáfora de um tipo de afeto ideológico,
distópico sempre, à medida que a morte de Che afetou o imaginário do mundo
inteiro, tornando assim uma espécie de ícone do ocaso ideológico de esquerda.
Além
disso, há outra coisa por trás da trama armada por Hasbún, a vida imensa e
arejada da juventude que vai se estreitando nos laços dos compromissos da
maturidade, como casamento e emprego, compromissos de engajamento e roteiros
prévios a se seguirem, a separação e o enfrentamento das responsabilidades
solitariamente.
Ao
longo do romance, o leitor vai percebendo uma espécie de ruína, como se a vida
inteira fosse uma distopia, porque nunca se chega ao lugar que se quer chegar.
E o lugar aonde se chega, sem querer, não
é o melhor dos mundos. A vida respira nos entrelugares, nas brechas do
drama cotidiano, como no cigarro que Trixi fuma desde os 12 anos, ou no amor
dos primeiros anos de Heidi, no amor de Monika pelo guerrilheiro, entre uma
luta e outra, entre uma fuga e outra, até que a morte chega.
A
vida imensa e arejada da juventude vai se estreitando na busca arqueológica de
cidades que nunca serão encontradas, no exercício utópico da guerrilha, da luta
de classes, na procura do amor.
Nenhum
lugar escapa à distopia, nem mesmo o terreno da memória, que também é um
elemento de afeto. “Não é certo que a memória seja um lugar seguro. Nela também
as coisas se desfiguram e se perdem. Nela também terminamos nos afastando das
pessoas que mais amamos”, diz Trixi em algum momento.
Os afetos é
uma obra de ficção com um fundo histórico, e o leitor pode lê-la como tal. Mas
por tratar de um romance de pós-memória, quando se lê a observação feita pelo
autor logo após o sumário, o leitor no mínimo dá uma dimensão maior à dor e ao
desolamento construídos com acuidade.
A
trama é feita em cima dos personagens reais da família Ertl, cujo pai, Hans,
mudou-se da Alemanha para a Bolívia em função de ter sido cinegrafista a
serviço do Nazismo. Eis aí mais um afeto na conta do drama narrado por Hasbún,
um autor que promete ajudar a preencher o vazio deixado pelos deuses do século
passado.
(Gilberto
G. Pereira. Publicado originalmente em 18 de fevereiro de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)
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