Vinicius
de Moraes (1913-1980): de acordo com o poeta, o nonsense requer espontaneidade,
e tem de ir contra à necessidade fundamental da natureza, pegando o leitor no contrapé |
Quando o poeta Vinicius de Moraes foi estudar em Oxford, na Inglaterra, em
1938, mergulhou nos estudos clássicos da literatura, principalmente da poesia,
e aprimorou sua técnica ligada à tradição dos sonetos, mas aspirou também ares
oxigenados pela modernidade.
Nessa época, ele travou contato com a obra peculiar de Edward Lear
(1812-1888), que, junto com Lewis Carroll, foi o mestre do absurdo, do nonsense
para crianças. Lear era peculiar em tudo. Poeta, letrista, ilustrador e
prosador, ele era nonsensical até na genealogia. Tinha 20 irmãos, e aprendeu a
desenhar com uma das irmãs mais velhas. Aprendeu com tanta desenvoltura que deu
aulas de desenho até para a rainha Vitória (1819-1901).
De Lear, Vinicius de Moraes cita Book of nonsense, de 1846, que
hoje aparece na internet em e-books. Mas no Brasil, o artista inglês é
conhecido por livros como Viagem numa peneira e Conversando com
varejeiras azuis (ambos da Iluminuras com tradução de Dirce Waltrick do Amarante).
Há também A coruja, o gato e os filhotes (Melhoramentos, tradução
de Cecília Furquim), que começa assim: “A coruja e o gato foram num
barco/ verde-ervilha no mar cor de anil,// Levaram dinheiro e mel verdadeiro/
embrulhados em notas de mil.” É uma aventura tranquila e idílica de dois
animais, de espécies díspares, que se amam.
O nonsense requer
espontaneidade e, segundo o próprio Vinicius de Moraes, tem de ir contra à
necessidade fundamental da natureza, exatamente como a união afetiva entre um
gato e uma coruja.
Além disso, o
nonsense pega o leitor no contrapé, é quase como a piada. É uma piada, na
verdade, um susto na lógica, como dizem. O legal do exercício do gênero,
segundo o poeta brasileiro, é que ele ajuda no fazer poético por causa de sua
liberdade criativa.
Riso
Vinicius de Moraes
trabalhou essa técnica nos poemas para crianças, mas também podemos encontrar
alguns gracejos em sua poesia adulta. Embora a grande musa para sua poesia fosse
a morte, como ele mesmo disse em entrevistas, e não o amor, como se o amor se
estabelecesse como um antídoto, o riso (inimigo mortal do pensamento fúnebre) é
muito presente em sua obra poética.
Talvez por isso, haja
um forte riso em seus poemas que trazem a morte como condutora dos versos, como
na Balada de Pedro Nava, no livro Poemas, sonetos e baladas, de 1946,
quando Pedro Nava ainda nem pensava em morrer:
“Meu amigo Pedro Nava
Em que navio
embarcou:
A bordo do Westphalia
Ou abordo do Libador?
(...)
Juro que estava
comigo
Há coisa de não faz
muito
Enchendo bem a
caveira
Ao seu eterno
defunto.
Ou não era Pedro Nava
Quem me falava aqui
junto
Não era o Nava de
fato
Nem era o Nava
defunto?”
Mesmo num poema sofisticado
imageticamente como A bomba atômica,
do livro Antologia poética, de 1949,
o poeta encontra margem para criar um lúdico mórbido, com um senso de humor
macabro, que foge da lógica formal pelos compostos químicos da bomba e pega o
leitor no contrapé também. Não deixa de ser um nonsense:
“A bomba atômica é
triste
Coisa mais triste não
há
Quando cai, cai sem
vontade
Vem caindo devagar
Tão devagar vem
caindo
Que dá tempo a um
passarinho
De pousar nela e
voar...”
Esticada
São muitos os poemas
que trazem a morte no título, mais ainda são aqueles que carregam a senhora da
foice no corpo inteiro. Todos eles foram escritos após sua “fase monástica”, em
que compunha em louvor ao sublime. Sua fase de poesia católica produziu belos versos,
mas não se compara ao momento posterior, em que o poeta passa a aproveitar cada
átomo de coisas existentes para fazer poesia.
No livro Para viver um grande amor, de 1962, que
mistura prosa e poesia, Vinicius de Moraes também aplicou sua técnica do
nonsense ao dedicar um poema ao amigo Jayme Ovalle, morto em 1955, sob o título
A última viagem de Jayme Ovalle.
Nele, o poeta brinca com a ideia de que até a morte seria envolvida pela famosa
capacidade que o amigo tinha de conquistar a atenção das pessoas com suas
conversas e ideias engraçadas:
“Ovalle não queria a
Morte
Mas era dele tão
querida
Que o amor da Morte
foi mais forte
Que o amor do Ovalle
à vida.
E foi assim que a
Morte, um dia
Levou-o em bela
carruagem
A viajar - ah, que
alegria!
Ovalle sempre adora
viagem!
(...)
Mostrou-lhe a Morte
as catacumbas
E suas ósseas
prateleiras
Mas riu-se muito,
tais zabumbas
Fazia Ovalle nas
caveiras.
(...)
Custou-lhe esforço
sobre-humano
Chegar à última
morada
De vez que a Morte, a
todo pano
Queria dar uma
esticada.
Diz o guardião do
campo-santo
Que, noite alta,
ainda se ouvia
À voz da Morte, um
tanto ou quanto
Que ria, ria, ria,
ria...”
Seres nonsensicais
No texto O não-senso e a falta de critério, de
1945, presente na coletânea de suas crônicas organizada por Carlos Augusto
Calil, O cinema de meus olhos,
Vinicius fala sobre o nonsense, e publica um pequeno poema que havia composto
em parceria com Maria Ethel, então com 19 anos, filha de Aníbal Machado, irmã
de Ana Maria Machado:
“Era um dia um
sujeito maneta
Que não tinha a perna
direita
Pois o homem coçava
Com a mão que lhe
faltava
As perebas da perna
perneta!”
Vinicius de Moraes chega
a lamentar o pouco uso do nonsense, como linguagem, na literatura brasileira.
“As crianças são seres nonsensicais e tudo o que delas se aproxima. Em
literatura brasileira, há, infelizmente, a mais triste falta de nonsense”, diz
o poeta. E aí, ele cita Barão de Itararé e Fernando Sabino como “seres de
natureza nonsensical”.
Muito mais tarde,
Vinicius de Moraes viria a imortalizar o nonsense com as canções do álbum A arca de Noé, especialmente A casa, que diz:
“Era uma casa
Muito engraçada
Não tinha teto
Não tinha nada
Ninguém podia
Entrar nela não
Porque na casa
Não tinha chão.”
Depois disso, se não
veio para a literatura de outros autores como o poeta gostaria, o nonsense veio
para as letras de várias canções cantadas por nomes como Adriana Partimpim
(Adriana Calcanhoto) e Arnaldo Antunes.
(Gilberto G. Pereira.
Publicado originalmente em 18 de fevereiro de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)
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