O escritor amazonense Milton Hatoum cavoucou fundo e explorou os sulcos
trevosos da memória no romance A noite da espera (Companhia das Letras,
2017, 239 páginas), o primeiro de uma trilogia intitulada O lugar mais sombrio.
As páginas iniciais já trazem um mundo soturno, os dias de inverno parisiense atravessando
a existência nostálgica do brasileiro Martim.
Jovem arquiteto cuja mãe está desaparecida no Brasil, em plenos anos de
chumbo da ditadura militar, Martim está em Paris, em 1978. Exilado, morando num
bairro de imigrantes, ele reorganiza suas memórias recentes a partir de
fotografias, anotações em cadernetas, folhas avulsas, guardanapos, cartas e
diários de amigos que ele guardou consigo, de amigos muitos dos quais estão
“perdidos, talvez para sempre”.
A recuperação desses registros forma o tecido narrativo do romance. Desse
modo, Martim recua dez anos no tempo, e vem arrastando-o como quem puxa peixe
na tarrafa. É a memória de estudante sendo passada a limpo. Neste sentido, é um
romance de formação, cujos volumes posteriores provavelmente darão conta dos
anos de amadurecimento do personagem (com as sombras da existência alcançando
ainda mais um lugar de destaque).
A noite da espera tem Paris como ponto de partida, mas invade vários espaços e tempos, ao sondar
o passado. As primeiras anotações são de 1968, quando a família se esfacela e
Martim, aos 16 anos, se vê obrigado a deixar o bairro do Paraíso em São Paulo
para morar com o pai, Rodolfo, em Brasília. Lina, a mãe, foi viver com o
amante, um artista, em algum lugar que Martim nunca soube identificar, nem
quando ainda recebia cartas dela.
Na capital federal, “cidade para quem tem asas ou pode voar”, Martim
permaneceu cinco anos, de 1968 a 1972 (período e local em que transcorre a
maior parte da trama). Lá, estudou no Centro de Ensino Médio (Colégio
Aplicação), da Universidade de Brasília (UnB), onde depois ingressou para fazer
o curso de Arquitetura.
Deslocamento
Em Brasília, entre a arte e a política, entre a liberdade e o poder, a
vida de Martim passava como se estivesse sempre em outro lugar. Ele convivia
com a turma do teatro, embora não fosse ator. Envolvia-se com os conflitos
políticos, embora não fosse militante de causa nenhuma. Vivia com o pai, mas só
pensava na mãe. Tinha deixado o Paraíso para enfrentar o inferno do centro do
poder autoritário.
O deslocamento físico e de alma é fulcral. A principal identificação de
Martim é a de um sujeito deslocado da família e do país, um homem desenraizado,
que sentiu o baque emocional da, talvez involuntária, rejeição materna, um
baque do qual ele não se recuperaria.
Desse modo, a vida vai transcorrendo. Do fundo, emerge sempre o espectro
da ditadura, o fantasma do medo e da violência, a censura. O período é tratado
com sutileza na textura da trama. As mortes, a repressão aparecem nas notícias
e nos tropos das metáforas, dos sopros carregados de significados no bojo dos
diálogos, dos sustos, dos sonhos interrompidos no meio da noite, do ar abafado
e cortante sob o céu de Brasília. Até que atinge a classe representada no
romance, os estudantes.
Por exemplo, no adiantado da trama, quando Martim já está na faculdade e
a repressão começa a apertar o cerco, o professor de linguagem estética do
curso de Arquitetura é demitido. Outro, alinhado à ditadura o substitui. Este
só fala do Barroco (não avança sobre os novos conceitos da arquitetura moderna,
nem do modernismo e sua verve contestadora).
Em decorrência disso, numa das aulas, os jovens saíram em debandada, um a
um foi esvaziando a sala (metáfora da capital sitiada pela arbitragem do poder).
Martim não saiu, ficou lá, ele e uma moça que não se decidia sobre o que fazer
da vida enquanto assistia a aulas avulsas. Ficou lá como quem não sabe o que
fazer também.
Em suas anotações de 1 de dezembro de 1972, ele diz: “Quando os demais
estudantes saíram, a neblina cobriu o vão da porta e penetrou um pouco na sala.
Parecia uma massa de ar pegajosa e suja na manhã mais nevoenta da minha vida em
Brasília. Vi na última fileira o rosto da moça dormindo, os olhos pestanudos e
fechados me olhavam lá de dentro e me perguntavam o que é um poema numa tarde
que já era noite.”
Por meio desta metáfora (“uma tarde que já era noite”), todos os leitores
de romance temos capacidade sensível e intelectiva de compreender esse quadro
dramático do trapo que estava se tornando o tecido social da jovem cidade. Todos
reconhecemos o papel do poema, da arte, que é o de oxigenar a vida.
O drama aumenta quando o contraponto disso tudo é Paris, o exílio de onde
Martim, deslocado e lúgubre, reescreve, ou edita, suas memórias. Não uma Paris
festiva, de alegria semovente, de festas movediças em cada quartier. Uma Paris sombria,
habitada por uma alma sem raiz.
Em Paris, as vozes ressoam na memória de Martim com uma vivacidade
incrível, como fantasmas que chegam à noite e assombram uma casa vazia, ocupada
apenas por um andarilho solitário.
Lugares e tempos
Martim é um personagem assombrado pela memória, pelos enigmas da vida
cotidiana que ele não soube decifrar. É um sujeito atormentado pelos
sentimentos edipianos. Para traçar um breve paralelo, em Dois irmãos, há
uma mãe que não desgruda; em A noite da espera, há uma mãe sem cola
alguma. É esse desprendimento que arrebenta com Martim.
Neste romance, o foco do drama familiar é entre pai e filho, metáfora de
uma relação política autoritária. A conturbada relação com o pai cria um
visível paralelo com a situação política, em que um governo arbitrário asfixia
a liberdade, com seus cães de guarda à espreita, prontos para avançar contra qualquer
voz dissonante, que ameace o projeto de uma nação ordeira e obediente.
“Me examinava sem o olhar, só com o faro, feito um cão de caça, ou um
animal violento, um animal que cerca sua presa”, escreve Martim sobre o pai. A
correlação imediata com a ditadura se completa com a fala do pai para o filho:
“Você quer me desafiar, mas o desafio é um erro.”
No bojo da trama, Hatoum, obviamente, não deixa de fazer referências
pontuais a escritores franceses que dialogam com o texto. Marcel Proust surge
numa remissão quase que de imperativo categórico, quando Martim começa a se
lembrar de seus tempos em Brasília, embora de modo sombrio, “para ir da
gravidade ao terror político bastaram duas xícaras de café e um biscoito”.
De Louis-Ferdinand Céline (Viagem ao fim da noite), fica a
referência do título e uma frase: “A distância e o tempo constroem artifícios.
Percebo isso na solidão deste estúdio, no fim da noite parisiense.”
De vez em quando, aparece Goiânia: a figura do
Grande Hotel, a antiga rodoviária de frente para o Lago das Rosas, que Martim
anota em seu diário como Parque das Rosas, a Avenida Anhanguera, a Avenida
Goiás, o coreto da Praça Cívica; ou seja, o que aparece na memória de Martim é a
velha Goiânia da década de 1970, que também quase não existe mais, nem mesmo
para os goianienses, só existe de modo minguante, como uma lua sem retorno.
Caráter fragmentário
O ritmo de A noite da espera embala uma espécie de blues do
Cerrado, quase que uma batida de tambor fúnebre, mas com uma doce canção ao
fundo. A memória é um pente semelhante ao de uma arma poderosa, com a diferença
de que seus cartuchos, os da memória, vêm carregados de uma porção de coisas
díspares como dor e alegria, morte, ironia, ressentimento e saudade, cavando o subterrâneo
dos sentimentos.
Quando Martim dispara sua memória, seus projéteis nos atinge com a
extrema eficiência da solidão e da dor, da amargura, em meio a uma beleza que
desce como estalactites. E não é só a memória pessoal, há a memória dos outros.
“Sem a memória dos outros eu não poderia escrever”, diz Martim.
A memória tem um caráter fragmentário. Por isso, em A noite da espera
não só elementos como tempo e espaço são recortados e recompostos em fragmentos,
mas tudo, pensamentos, atitudes, prazer, a figura dos personagens. Quando
Martim começa a se enturmar, ele conhece várias garotas, como Ângela e Dinah.
Esta sacou logo a dele, e disse: “Ele prefere observar. Ficou de olho o tempo
todo. Um olho nos exercícios e outro em Ângela.”
Em outra passagem, o próprio Martim lembra que ao remar um bote,
solitário, no Lago Paranoá, atravessando de uma margem à outra, jogou com a
imagem das duas garotas: “No meio da travessia me masturbei imaginando o rosto
de Dinah no corpo de Ângela; troquei o rosto de uma pelo corpo da outra. Fiz
isso mais duas vezes e senti o mesmo prazer.” Tudo se fragmenta.
O grão do drama
É preciso lembrar que a continuidade traz o trágico, porque quando rompe,
eis que surge o pranto. A fragmentação é dramática, parece não dar conta do
trágico, ou talvez dê conta, mas de outro modo, ao modo contemporâneo, fugaz,
líquido, disperso.
Na contemporaneidade, a tragédia escorre pelo ralo por causa da
fragmentação, da falta do contínuo, que é a desculpa para a ruptura. O leitor
pode estranhar um pouco a nova pegada estética de Hatoum, por causa disso. A
noite da espera está mais para o drama do que para o caráter trágico de Dois
irmãos e Cinzas do Norte.
Com este novo romance, Hatoum amplia os horizontes do provável, ganha em
estética, mas reduz a força motriz da narrativa. O leitor não chora no tranco.
O leitor, para o bem ou para o mal, faz uma cara de choro e a leva até o final,
talvez com alguns sniffs ou um lenço suspenso na altura dos olhos. E só.
A noite da espera é drama num leve tom cômico, sobretudo nas causalidades que envolvem a
vida de Martim, um deslocado sortudo e azarado ao mesmo tempo; as melhores
coisas que acontecem com ele não acontecem porque ele busca por elas, mas
porque ele está sempre fora do lugar. As piores coisas, também são frutos do
extraordinário acaso.
Fragmentário e espelhado. As coisas mais banais remetem a algo mais
profundo dentro da trama, como sói ocorrer nos bons romances. Martim, por
exemplo, foi parar em Brasília pelo acaso do novo amor da mãe, que o excluiu. E
em Brasília, foi remar sozinho no Lago Paranoá, na noite do Ano-Novo, pensando
na mãe, e adormeceu. “Um solavanco, o bote oscilou: dois soldados apontavam uma
metralhadora para meu peito. O vento levara o bote até a mureta que cerca o
Palácio da Alvorada.” Foi preso e fichado pelo DOPS, que desencadearia, lá na
frente, a perseguição, forçando-o a deixar Brasília, tendo Goiânia como rota de
fuga, e se exilar em Paris.
Efeito paralelo
Além das metáforas que atravessam a trama, frases diretas que revelariam
apenas uma situação dada, um ponto de tensão nas relações dos personagens,
ecoam agora como efeito paralelo entre a realidade histórica e a realidade
presente.
“O Brasil, apesar do governo bruto, está prosperando”, diz um economista,
funcionário da ditadura. O ministro “usa viseira de cavalo para lidar com a
educação pública”, diz a mulher desse mesmo economista, num tom mais crítico.
“Parece que o medo governa todo mundo... e governa com uma terrível
eficiência”, completa ela.
Já outras metáforas renovam o significado nesse paralelo. O que era para
ficar no passado, ensaia a volta. Em Paris, um colega de Martim dos tempos de
Brasília observa alguns selos brasileiros colados nas correspondências antigas
da mãe de Martim e diz: “Essa flor do cerrado exala um perfume torpe. Mas
envelheceu e não cheira a mais nada.” A flor, no entanto, parece ter voltado a
exalar um cheiro que ameaça se espalhar pelo ar do país inteiro.
A noite da espera é um romance notável. O título se refere à situação de Martim, ainda
assombrado pela falta da mãe, exilado, esperando um contato dela e o fim da ditadura.
“Talvez seja isso o exílio: uma longa insônia em que fantasmas reaparecem com a
língua materna, adquirem vida na linguagem, sobrevivem nas palavras...”
Tenho a impressão de que os volumes seguintes terão mais a oferecer, e
nos empurrarão para um lugar ainda mais sombrio.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 9 de dezembro de 2017, no
Jornal Opção, de Goiânia)
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