terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

A arte de roubar livros

Risonho, simpático, falador, deslumbrado e sonhador, mas ladrão, Laéssio (d) desenvolveu seu
ofício criminoso com a meticulosidade de um artista, e tornou-se um homem culto de verdade

Pela manhã de um dia qualquer, Laéssio acordou de sonhos miseráveis, foi ao Museu da Imagem e do Som em São Paulo e descobriu que era ladrão. Não um ladrão comum, desses que enchem a cadeia em Curitiba, por roubarem milhões do erário público, mas ladrão de livros raros.

Laéssio desenvolveu uma técnica refinada de furtar livros e objetos raros de bibliotecas públicas como a Mário de Andrade e o Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e a do Itamaraty, em Brasília, vendendo-os depois em leilões altamente especializados por milhões de reais.

À medida que o tempo ia passando, ele aprendia mais sobre seu metiê, ganhava mais prestígio junto aos seus, e ia adentrando um círculo de riqueza que jamais sonhara em frequentar. Mas Laéssio tinha algo em comum com ladrões do colarinho branco, a capacidade de inventar desculpas para praticar seu roubo tranquilamente.

Seu discurso é afiado. “Eu jamais aceitaria tirar a vida de alguém. Mas tirar coisas do Estado, acho de bom grado. O Estado anda tão desmoralizado. Não cuida do acervo, da educação, da cultura. Sinto é prazer em tirar essas coisas dos ambientes públicos.”

Quando a casa caiu pela primeira vez, em 2004, por ser réu primário, por nunca machucar ninguém, nem utilizar armas, e demonstrar uma erudição ímpar sobre seu objeto de dedicação, foi solto rapidinho, tão célere quanto começou a roubar de novo.

Suas idas e vindas da cadeia começaram a ficar frequentes, e ele acabou se acostumando com isso. “Prefiro uns tempos na cadeia com dinheiro no bolso do que solto e ferrado”, diz soltando uma gargalhada cínica, dessas que costumam atrair o interlocutor, em vez de afastá-lo. Há um magnetismo no jeito de ser desse ladrão.

Sua carreira no crime começou quando ouviu O que é que a baiana tem, música de Dorival Caymmi, sucesso do final dos anos 1930 na voz de Carmen Miranda. Ele apaixonou-se pela cantora. Começou a garimpar sebos comprando tudo que via pela frente sobre a pequena notável.

Até que um dia, no Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS), viu uma revista com Carmen na capa em cima de uma mesa destinada a pesquisadores. “Parece que estava lá me esperando. Abri a mochila e enfiei a revista dentro da bolsa. Meu coração ficou acelerado, por ter aquela revista e por ter roubado pela primeira vez”, diz Laéssio, soltando outro gargalhada.

Virou filme

Essa história é contada no belíssimo documentário Cartas para um ladrão de livros, dirigido por Carlos Juliano Barros e Caio Cavechini, com roteiro dos dois. Barros é jornalista. Para escrever suas reportagens, por muito tempo trocou missivas com o ladrão, que passava uma temporada na cadeia. Depois teve a ideia de filmar.

Vale o registro e a dica para quem se interessa por questões de sociologia e política e procura entender a complexidade da vida social, principalmente sobre como um espírito tão ativo como o de Laéssio se enfia nessa roubada. Ele mesmo sabe que sua atitude é indefensável, mesmo vindo de família paupérrima, sendo preto e pobre num país cuja elite detesta a ideia de conviver com pretos e pobres.

Risonho, simpático, falador, deslumbrado e sonhador, mas ladrão, Laéssio desenvolveu seu ofício criminoso com a meticulosidade de um artista. Tornou-se um homem culto de verdade. Fala com uma dicção clara, sem tropeçar nas palavras e usa um vocabulário sofisticado sobre o mundo das artes. E sabe do que está falando.

Ele afirma que não queria passar por esse mundo sem deixar uma marca, e aceitou seu destino de entrar para a história como o maior larápio de livros raros do país de todos os tempos. “Eu sempre pensava grande, mas a realidade de meu dia a dia não tinha grandeza alguma”, comenta.


(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 18 de fevereiro de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)


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