Risonho,
simpático, falador, deslumbrado e sonhador, mas ladrão, Laéssio (d) desenvolveu seu ofício criminoso com a meticulosidade de um artista, e tornou-se um homem culto de verdade |
Pela manhã de um dia qualquer, Laéssio acordou de sonhos miseráveis, foi
ao Museu da Imagem e do Som em São Paulo e descobriu que era ladrão. Não um
ladrão comum, desses que enchem a cadeia em Curitiba, por roubarem milhões do
erário público, mas ladrão de livros raros.
Laéssio desenvolveu uma técnica refinada de furtar livros e objetos raros
de bibliotecas públicas como a Mário de Andrade e o Centro Cultural Vergueiro, em São Paulo, a Biblioteca Nacional do Rio
de Janeiro e a do Itamaraty, em Brasília, vendendo-os depois em leilões
altamente especializados por milhões de reais.
À medida que o tempo ia passando, ele aprendia mais sobre seu metiê,
ganhava mais prestígio junto aos seus, e ia adentrando um círculo de riqueza
que jamais sonhara em frequentar. Mas Laéssio tinha algo em comum com ladrões
do colarinho branco, a capacidade de inventar desculpas para praticar seu roubo
tranquilamente.
Seu discurso é afiado. “Eu jamais aceitaria tirar a vida de alguém. Mas
tirar coisas do Estado, acho de bom grado. O Estado anda tão desmoralizado. Não
cuida do acervo, da educação, da cultura. Sinto é prazer em tirar essas coisas
dos ambientes públicos.”
Quando a casa caiu pela primeira vez, em 2004, por ser réu primário, por nunca
machucar ninguém, nem utilizar armas, e demonstrar uma erudição ímpar sobre seu
objeto de dedicação, foi solto rapidinho, tão célere quanto começou a roubar de
novo.
Suas idas e vindas da cadeia começaram a ficar frequentes, e ele acabou
se acostumando com isso. “Prefiro uns tempos na cadeia com dinheiro no bolso do
que solto e ferrado”, diz soltando uma gargalhada cínica, dessas que costumam
atrair o interlocutor, em vez de afastá-lo. Há um magnetismo no jeito de ser
desse ladrão.
Sua carreira no crime
começou quando ouviu O que é que a
baiana tem, música de Dorival Caymmi, sucesso do final dos anos 1930 na voz
de Carmen Miranda. Ele apaixonou-se pela cantora. Começou a garimpar sebos
comprando tudo que via pela frente sobre a pequena notável.
Até que um dia, no
Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS), viu uma revista com Carmen na capa
em cima de uma mesa destinada a pesquisadores. “Parece que estava lá me
esperando. Abri a mochila e enfiei a revista dentro da bolsa. Meu coração ficou
acelerado, por ter aquela revista e por ter roubado pela primeira vez”, diz Laéssio, soltando outro gargalhada.
Virou filme
Essa história é contada
no belíssimo documentário Cartas para um
ladrão de livros, dirigido por Carlos Juliano Barros e Caio Cavechini, com
roteiro dos dois. Barros é jornalista. Para escrever suas reportagens, por
muito tempo trocou missivas com o ladrão, que passava uma temporada na cadeia. Depois
teve a ideia de filmar.
Vale o registro e a
dica para quem se interessa por questões de sociologia e política e procura
entender a complexidade da vida social, principalmente sobre como um espírito
tão ativo como o de Laéssio se enfia
nessa roubada. Ele mesmo sabe que sua atitude é indefensável, mesmo vindo de
família paupérrima, sendo preto e pobre num país cuja elite detesta a ideia de
conviver com pretos e pobres.
Risonho, simpático,
falador, deslumbrado e sonhador, mas ladrão, Laéssio desenvolveu seu ofício criminoso com a meticulosidade de um
artista. Tornou-se um homem culto de verdade. Fala com uma dicção clara, sem
tropeçar nas palavras e usa um vocabulário sofisticado sobre o mundo das artes.
E sabe do que está falando.
Ele afirma que não
queria passar por esse mundo sem deixar uma marca, e aceitou seu destino de
entrar para a história como o maior larápio de livros raros do país de todos os
tempos. “Eu sempre pensava grande, mas a realidade de meu dia a dia não tinha
grandeza alguma”, comenta.
(Gilberto G. Pereira.
Publicado originalmente em 18 de fevereiro de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)
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