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Lagos @ 50 website
Fachada da Water House (Casa da
Água), no quarteirão brasileiro em Lagos, Nigéria, ícone da herança dos
descendentes de escravos
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Sempre
que assisto ao programa Inside Africa, da rede de TV americana CNN,
sinto uma sensação ruim de que o Brasil, como sociedade e como Estado, não dá a
mínima para a África, nem como mercado, tampouco como origem de uma porção fecunda
da cultura brasileira. Com exceção dos movimentos negros, o resto alimenta o
silêncio retumbante.
Em
toda a história brasileira, o período em que o Brasil mais voltou seus
interesses econômicos para o continente africano foi entre 2003 e 2010, no Governo
Lula. Também foi quando as políticas sociais voltadas para os grupos
marginalizados no Brasil foram implementadas ou reforçadas.
Em
2003, por exemplo, foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial (Seppir). A instituição alavancou, e muito, a presença da
cultura imaterial negra nas matrizes escolares e incentivou a denúncia contra o
racismo institucional ou civil.
Se por
um lado, a CNN fala sobre a África mais do que todos os canais brasileiros
juntos, para ficar no paralelismo das ideias, por outro, não vejo a Globo News
dedicando sequer um programa semanal à África, por exemplo. A CNN tem pelo
menos três: African Voices; Inside Africa; Marketplace Africa.
Os EUA
também foram exploradores da mão de obra escrava, e o interesse pelo continente
dos ancestrais dos afro-americanos reflete um pouco essa demanda, mas
certamente não é só por isso. Afinal, a meca do capitalismo não dá ponto sem
nó. Há uma competição com a China, que também está muito interessada nesse
mercado, sobretudo no Oeste africano.
O
mundo árabe, que também foi um grande consumidor da mão de obra escrava
africana desde o século IX, já faz tempo se aboletou lá a ponto de quase a
metade das 22 nações árabes estar no continente africano. Além disso, muitas
outras nações, mesmo não sendo árabes, são muçulmanas, ou dividem a supremacia
religiosa com o cristianismo meio a meio, como a Nigéria.
O
Brasil é o maior herdeiro dos costumes, das cores, da alma da África,
principalmente do Oeste do continente. A cultura brasileira deve muito à matriz
africana vindo da Nigéria. Isso legitimaria uma atenção maior às nossas
ancestralidades, mas não é o que se vê.
De solo
nigeriano vieram para o Brasil os escravos da etnia iorubá. No século XVIII,
após a Revolta dos Malês (muçulmanos), na Bahia, o governo imperial expulsou
muitos negros livres e descendentes de escravos com receio de que houvesse nova
revolta.
A
partir daí, abriu-se um canal de deportação para a África, principalmente para
a Nigéria. Muitos dos que voltaram foram justamente os iorubás, para Lagos, onde
foi criada uma vila só de negros brasileiros, descendentes de escravos, ou
africanos livres forçados a voltar para lá.
No dia
14 de julho, o programa Inside Africa, da CNN, mostrou justamente a
decadência dessa vila. Ela está sendo corroída pelo tempo, pela falta de
interesse do poder público de mantê-la viva. Essa chama de aproximação entre a
África e o Brasil está presente na culinária, nos prédios com traços da
arquitetura brasileira e na música, em festas como o carnaval.
Reportagens
como essa da CNN tinham de ser feitas pela imprensa brasileira também, mostrando
o empenho de descendentes dos negros brasileiros que regressaram e levaram com
eles a memória do Brasil. É uma espécie de refusão, como alguém que viaja e
traz na mala de volta elementos que ressignificam uma riqueza já existente.
Na
reportagem do Inside Africa, aparecem gente muito importante da
comunidade nigeriana-brasileira, como Madame Angelica, 89 anos, dona da famosa Water
House (Casa da Água). Segundo Nei Lopes, em sua Enciclopédia brasileira da
diáspora africana, a Water House é um empreendimento “baseado na exploração
de um poço artesiano para obtenção de água potável, segundo técnica
desenvolvida no Brasil.”
A Water
House foi fundada pelo avô de Madame Angelica, Cândido da Rocha, que nasceu na
Bahia, em 1870, filho de escravos. A reportagem da CNN é uma pontinha do
iceberg dessa história e está calcada no presente. Nei Lopes já aborda o fator
histórico. Mas toda a história está em outros livros, incluindo o romance de Antonio
Olinto, A Casa da Água, de 1969.
Essa história também está na internet. Não há novidade. A novidade seria uma abordagem
jornalística em português, com captação de imagens recentes, ouvindo os
personagens envolvidos nessa luta pela manutenção da memória e do vínculo
cultural entre Brasil e África.
Segundo
o arquiteto Lanre Towry Coker, a deterioração da comunidade é uma perda
nacional. Ele e Pejy Fatuy, também arquiteta, são figuras importantes em Lagos
que estão lutando para preservar a herança brasileira na cidade.
Historicamente,
a Nigéria tem uma importância por muito
mais que isso. Basta lermos um dos livros fundamentais da literatura nigeriana,
O mundo se despedaça, de Chinua Achebe, para percebermos certos
elementos caros à nossa herança africana, como o cará e o inhame.
Histórias
como a da luta pela preservação de uma memória em comum, no entanto, deveriam
ser justamente a conexão inicial, deveriam estar na pauta de nossa imprensa. Esse
silêncio escancara a mensagem de que estamos de costas para a África.
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