terça-feira, 18 de julho de 2017

De costas para a África

                                                                                                                                               Photo: Lagos @ 50 website    

Fachada da Water House (Casa da Água), no quarteirão brasileiro em Lagos, Nigéria, ícone da herança dos descendentes de escravos

Sempre que assisto ao programa Inside Africa, da rede de TV americana CNN, sinto uma sensação ruim de que o Brasil, como sociedade e como Estado, não dá a mínima para a África, nem como mercado, tampouco como origem de uma porção fecunda da cultura brasileira. Com exceção dos movimentos negros, o resto alimenta o silêncio retumbante.

Em toda a história brasileira, o período em que o Brasil mais voltou seus interesses econômicos para o continente africano foi entre 2003 e 2010, no Governo Lula. Também foi quando as políticas sociais voltadas para os grupos marginalizados no Brasil foram implementadas ou reforçadas.

Em 2003, por exemplo, foi criada a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir). A instituição alavancou, e muito, a presença da cultura imaterial negra nas matrizes escolares e incentivou a denúncia contra o racismo institucional ou civil.

Se por um lado, a CNN fala sobre a África mais do que todos os canais brasileiros juntos, para ficar no paralelismo das ideias, por outro, não vejo a Globo News dedicando sequer um programa semanal à África, por exemplo. A CNN tem pelo menos três: African Voices; Inside Africa; Marketplace Africa.

Os EUA também foram exploradores da mão de obra escrava, e o interesse pelo continente dos ancestrais dos afro-americanos reflete um pouco essa demanda, mas certamente não é só por isso. Afinal, a meca do capitalismo não dá ponto sem nó. Há uma competição com a China, que também está muito interessada nesse mercado, sobretudo no Oeste africano.

O mundo árabe, que também foi um grande consumidor da mão de obra escrava africana desde o século IX, já faz tempo se aboletou lá a ponto de quase a metade das 22 nações árabes estar no continente africano. Além disso, muitas outras nações, mesmo não sendo árabes, são muçulmanas, ou dividem a supremacia religiosa com o cristianismo meio a meio, como a Nigéria.

O Brasil é o maior herdeiro dos costumes, das cores, da alma da África, principalmente do Oeste do continente. A cultura brasileira deve muito à matriz africana vindo da Nigéria. Isso legitimaria uma atenção maior às nossas ancestralidades, mas não é o que se vê.

De solo nigeriano vieram para o Brasil os escravos da etnia iorubá. No século XVIII, após a Revolta dos Malês (muçulmanos), na Bahia, o governo imperial expulsou muitos negros livres e descendentes de escravos com receio de que houvesse nova revolta.

A partir daí, abriu-se um canal de deportação para a África, principalmente para a Nigéria. Muitos dos que voltaram foram justamente os iorubás, para Lagos, onde foi criada uma vila só de negros brasileiros, descendentes de escravos, ou africanos livres  forçados a voltar para lá.

No dia 14 de julho, o programa Inside Africa, da CNN, mostrou justamente a decadência dessa vila. Ela está sendo corroída pelo tempo, pela falta de interesse do poder público de mantê-la viva. Essa chama de aproximação entre a África e o Brasil está presente na culinária, nos prédios com traços da arquitetura brasileira e na música, em festas como o carnaval.

Reportagens como essa da CNN tinham de ser feitas pela imprensa brasileira também, mostrando o empenho de descendentes dos negros brasileiros que regressaram e levaram com eles a memória do Brasil. É uma espécie de refusão, como alguém que viaja e traz na mala de volta elementos que ressignificam uma riqueza já existente.

Na reportagem do Inside Africa, aparecem gente muito importante da comunidade nigeriana-brasileira, como Madame Angelica, 89 anos, dona da famosa Water House (Casa da Água). Segundo Nei Lopes, em sua Enciclopédia brasileira da diáspora africana, a Water House é um empreendimento “baseado na exploração de um poço artesiano para obtenção de água potável, segundo técnica desenvolvida no Brasil.”

A Water House foi fundada pelo avô de Madame Angelica, Cândido da Rocha, que nasceu na Bahia, em 1870, filho de escravos. A reportagem da CNN é uma pontinha do iceberg dessa história e está calcada no presente. Nei Lopes já aborda o fator histórico. Mas toda a história está em outros livros, incluindo o romance de Antonio Olinto, A Casa da Água, de 1969.

Essa história também está na internet. Não há novidade. A novidade seria uma abordagem jornalística em português, com captação de imagens recentes, ouvindo os personagens envolvidos nessa luta pela manutenção da memória e do vínculo cultural entre Brasil e África.

Segundo o arquiteto Lanre Towry Coker, a deterioração da comunidade é uma perda nacional. Ele e Pejy Fatuy, também arquiteta, são figuras importantes em Lagos que estão lutando para preservar a herança brasileira na cidade.

Historicamente, a  Nigéria tem uma importância por muito mais que isso. Basta lermos um dos livros fundamentais da literatura nigeriana, O mundo se despedaça, de Chinua Achebe, para percebermos certos elementos caros à nossa herança africana, como o cará e o inhame.

Histórias como a da luta pela preservação de uma memória em comum, no entanto, deveriam ser justamente a conexão inicial, deveriam estar na pauta de nossa imprensa. Esse silêncio escancara a mensagem de que estamos de costas para a África.


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