Cena do filme A questão humana, baseado no romance homônimo de François Emmanuel: thriller psicológico em ambiente corporativo |
A
literatura raramente cria boa ficção para tratar de um problema que afeta cada
vez mais a sociedade moderna: a falta do sentimento humano nos departamentos de
Recursos Humanos, principalmente das grandes corporações. Mas deveria. Afinal,
todo mundo sabe que a maioria dos investimentos no quadro de pessoal é para
acirrar o espírito de competitividade.
O
cinema é mais corriqueiro nesta abordagem, e está sempre aparecendo com filmes
sobre o assunto. O corte, do grego Costa-Gavras, de 2005, é um bom
exemplo. É sobre um alto executivo desempregado que começa a matar seus
potenciais concorrentes para uma vaga de emprego. Mais espírito de
competitividade do que isso não existe.
Em
2007, o cinema francês lançou outro filme que trata do mesmo tema, com uma
perspectiva diferente, mas ainda falando do comportamento robotizado, sem alma,
da burocracia capitalista. O roteiro é uma adaptação do tema desta resenha, o
romance A questão humana (Estação Liberdade, 2010, 84 páginas, tradução
de Maria Appenzeller), do escritor belga François Emmanuel.
Como
se vê pelo número de páginas, A questão humana é um pequeno
romance-ensaio sobre a extirpação dos traços ligados ao afeto, à compreensão,
ao humor e à consciência de que este se altera por vezes, sob determinadas
circunstâncias.
Numa
grande empresa, na vida sistematizada em torno de uma linha de montagem, o
espírito é subjugado ao mecanismo da competição, e a questão humana deve ser
eliminada. Só o que interessa, no fim das contas, é que o funcionário faça seu
trabalho, e da melhor maneira possível.
Thriller
O
livro de Emmanuel também resgata a ameaça de um discurso muito evocado na
defesa dos carrascos do Nazismo: “Fiz apenas o meu trabalho”. No filme A
grande aposta, quando a especulação imobiliária atingiu o fluxo das ações
dos outros setores e o mercado financeiro pôs tudo abaixo, na crise de 2008, os
corretores eram os primeiros a dizer: “A culpa não é nossa, é só o jeito como o
mundo funciona.” Mas esta é outra história (thriller corporativo)
A questão humana é um thriller
psicológico. O leitor brasileiro já está acostumado a esse subgênero por causa
do sucesso de romances como Quando Nietzsche chorou e A cura de
Schopenhauer, de Irving D. Yalom, livros que abordam questionamentos
intelectuais, crise existencial.
Na
trama belga, Simon narra a experiência de ter se metido numa intriga
psicológica envolvendo dois diretores de uma empresa alemã, na filial francesa,
onde fora contratado para fazer a seleção de pessoal e planejamento de
seminários.
Como
psicólogo, Simon tinha a missão de “despertar nos participantes a agressividade
natural”. Mas certo dia, é solicitado por um dos diretores, Karl Rose, para uma
missão diferente e paralela, a de investigar o estado de saúde mental de
Mathias Jüst, outro executivo, sob a alegação de que o homem poderia estar
doente e, neste caso, comprometeria o andamento da empresa.
Para
manter o suspense, o autor se utiliza de uma série de técnicas tradicionais da
literatura, misturando elementos narrativos como cartas, telefonemas, recados e
visitas pessoais que sugerem novas pistas que vão revelando, aos poucos, uma
rememoração do passado, da Segunda Guerra Mundial, dos absurdos nazistas, de
sua burocracia precisa e macabra.
Máquina
O
romance é criado em cima de uma teia perigosa de sugestões, mas de valor real.
Seu conteúdo sugere que o fator humano nas grandes empresas é o que menos
importa. O departamento que cuida do quadro de pessoal das empresas ainda
chamado de RH parece estar preocupado em extrair do profissional só seu potencial
de máquina, de autômato, de repetição robótica.
Neste
caso, a questão humana é quase um desvio de conduta, uma doença. Como se o
curso d’água houvesse desviado da horta aquilo que há de nutriente nas plantas.
O interessante é que tanto a vida real quanto a ficção apenas corroboram o que
pensadores e artistas já tinham preconizado na primeira metade do século XX,
como Charles Chaplin, em Tempos modernos, e Aldous Huxley, com Admirável
mundo novo, sempre considerando as diferentes perspectivas.
François
Emmanuel tem 64 anos. É médico psicoterapeuta e autor de diversos livros, entre
romances, contos e poesia, muito lidos na Europa. No universo das letras, no
entanto, a Bélgica é mais conhecida por autores de livros técnicos, como Tratado
da argumentação, do renomado jurista Chaïm Perelman.
Aqui
no Brasil, duvido que exista um estudante de direito sério que não conheça
Perelman. Até mesmo para os interessados em retórica literária, ele é
recomendável. No caso da literatura, além da dica do romance de Emmanuel, é
indispensável o acesso à obra de Amélie Nothomb, a escritora belga mais
conhecida nos dias de hoje.
Amélie
já foi a garota prodígio da literatura belga, embora tenha nascido em Kobe, no
Japão, por ser filha de um embaixador. Hoje está com 51 anos de idade. Causou
furor na cena literária de língua francesa aos 25, quando lançou Temor e
tremor, que narra o drama dentro do japanese
way of life, outra trama envolvendo o universo do trabalho como fulcro.
(Recuperação de um texto iniciado em 2010)
(Recuperação de um texto iniciado em 2010)
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