Crédito: Google Street
Detalhe da vista parcial da ninfa Glauconômena, o mar de Malbec (Cabourg)
Ao longo desses 100 anos de publicação do romance
de Marcel Proust (1871-1922), Em busca
do tempo perdido (o primeiro volume, No
caminho de Swann, foi publicado em 1913 e o último, O tempo redescoberto, postumamente, em 1927), algumas coisas
ficaram para trás, como a permeação enfadonha da crítica à homossexualidade e
da crítica ao amor, embora esta tenha conservado frases valorosas. Mas a
crítica ao ciúme, a leitura precisa da alteridade, os contornos da crítica
social e da costura histórica da arte, da literatura e da música, e sobretudo o
ensaio geral sobre o papel da memória na vida do indivíduo e da sociedade, bem
como a metalinguagem na criação literária, ainda são de grande interesse do leitor
atento.
Além disso, outra coisa interessante que
permanece viva (que nos interessa neste texto) é o colorido que se espalha pelo
romance inteiro, de mais de 2.500 páginas (semelhante aos simbolistas). Há um sem número de cores costurando
a narrativa. Elas aparecem para descrever, embelezar, refazer percursos, e
quando nos damos conta, tudo está matizado. Colorem o caminho, os pensamentos,
as lembranças, a vida. É o que Olga Chaim Matos chamou de “luxo cromático”.
Em A
fugitiva (volume 6, tradução de Carlos Drummond de Andrade, na edição de
sete volumes da Editora Globo), ao falar da exterioridade do mundo e do modo
como captamos a realidade das coisas, Marcel, o narrador alter ego de Proust,
diz: “Para os homens, e graças à pobreza dos sentidos, as coisas não oferecem
senão um número restrito de seus incontáveis atributos. São coloridas porque
temos olhos; a quantos outros epítetos não fariam jus, se dispuséssemos de
centenas de sentidos?”
A observação de Marcel expõe a tese do
colorido na narrativa desse romance colossal. Nos longos anos de gestação da
obra, o século XX se abria em cores com a explosão da modernidade e das
diversas tendências em arte e moda. As misturas químicas inovavam nas estampas
de tecidos e no matiz dos objetos. Proust quis captar esse momento e
registrá-lo em sua literatura. Deixou um belíssimo legado que poucos veem, só os
que se atêm ao pormenor da descrição.
Assim vemos despontarem uma “menina de
cabelos ruivos e pele dourada”, uma ‘sombrinha malva”, um “vestido de cetim
vermelho”, um “turbante branco e azul”, ou “flores rubras”, ou ainda
sanguessugas usadas para efeitos de medicina como “pequenas serpentes negras na
cabeleira ensanguentada”, e infinitos matizes, mil e uma cores transluzentes
transversalizando a obra máxima.
Sensação
de poesia
Quando Marcel, o narrador, vai passar uma
temporada em Balbec - na verdade, Cabourg, cidade litorânea da costa atlântica francesa
–, ele não se cansa de marcar as raparigas em flor com cores vivas e variadas.
Não só elas e os objetos colorem o ambiente da narrativa, mas também as manhãs
e as tardes matizadas pelo sol descendo do céu e se banhando no mar, o mar e
suas águas verdes e azuis, a depender do momento. O mesmo mar em sua orla de
ondinhas varrendo a praia aparece na tonalidade mais cara ao romance, o rosa,
tisnindo para o glauco.
Em À
sombra das raparigas em flor (segundo volume, tradução de Mário Quintana), Marcel,
já hospedado no Grande Hotel em Balbec, admira o mar, e o chama de ninfa
Glauconômena, alinhavando-o entre o verde e o rosa. “Que privilégio gozava
determinada manhã sobre as restantes, para que a janela, ao entreabrir-se,
revelasse a meus olhos maravilhados a ninfa Glauconômena, cuja preguiçosa
formosura e brando respirar tinham vaporosa transparência de uma esmeralda,
através da qual eu via afluírem os elementos ponderáveis que lhe davam colorido?
Fazia brincar o sol, com sorriso velado por invisível bruma.”
O Leituras
do Giba (ou seja, eu mesmo) pinçou as cores ao longo dos sete volumes, e
para cada volume fez uma montagem cujo efeito dá uma sensação de poesia (a
colagem pode ser vista neste blog em Cores
perdidas (Proustianas I, II, III, IV, V, VI e VII). As cores retiradas de sua realidade, isoladas em seu
esplendor, superpostas em verticalidades vertiginosas cintilam a memória da
obra e mostram o mundo colorido de Em busca
do tempo perdido. Elas aparecem em variante de emoções tantas quantas são
as possibilidades da vida recapturada pela memória.
Essa policromia está no cerne do projeto
estético de Proust. Em A Prisioneira
(volume 5, tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar), Bergotte -
o escritor admirado pelo narrador quando jovem -, já no fim da vida viu em uma
exposição em Paris o quadro Vista de
Delft, o preferido do esteta Charles Swann e não por acaso uma espécie de
ícone do romance, que traça uma certa história da pintura ao longo de sua
narrativa. Bergotte também já o conhecia muito bem, mas após ler um crítico se
referindo a determinado detalhe do quadro, “um panozinho de muro amarelo”, não
se conteve e foi averiguá-lo nessa exposição.
Passou diante de obras que para ele soavam
inexpressivas, sem vida, inúteis. Mas ao ver Vista de Delft, “de que se lembrava como sendo mais luminoso, mais
diferente de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico,
reparou pela primeira vez numas figurinhas vestidas de azul, na tonalidade
cor-de-rosa da areia e finalmente na preciosa matéria do pequenino pano de muro
amarelo.”
Após contemplar o quadro, Bergotte disse
consigo mesmo: “‘Meus últimos livros são demasiado secos, teria sido preciso
passar várias camadas de tinta, tornar a minha frase preciosa em si mesma, como
este panozinho de muro.’” Foi pensando nisso que Bergotte deu seus últimos
suspiros.
Essa tese em meio à agonia do escritor
preferido de Marcel, o narrador, é a tese de Proust para seu romance (traçando
um paralelo com a obra de Anatole France, um dos escritores preferidos de Proust,
que este pretendeu superar, segundo críticos e biógrafos, e o fez). Proust passou
várias camadas de tinta em sua narrativa, tornou as frases preciosas em si
mesmas, fez de Vista de Delft um
trunfo valoroso do ambiente expandido de sua criação literária.
Nesse momento, vê-se o Narrador deixando para
trás a velha estética de que tanto gostava na obra de Bergotte e erigindo a sua
própria. No paralelo, era Proust se erguendo de modo diferente dos grandes
autores de sua época. Não só por isso, sem dúvida, mas o colorido permeia a
espinha dorsal da obra e ilumina a nova estética, trazida à luz pelo novo
criador.
Obsessão
pelo rosa
As pinceladas do romance de Proust alteram de
rosa para azul a todo instante, no entremeio de outras cores, geralmente cinza,
às vezes negro e vermelho, às vezes verde que dá o tom esmaecido do glauco e a
vivacidade do malva. Esta é a palavra cara ao narrador, é a que aparece tantas
vezes dando o direcionamento do colorido no momento em que conjuga com as
outras cores.
Malva é a praia banhada pelo mar, que tisna para
o verde, entre o verde e o azul. E nas manhãs que o sol beija as vagas, o malva
é toda a paisagem, mas é também os vestidos de Odette (chamada por Marcel de
“dama de cor-de-rosa”), o rosto de Gilberte, a flor de mesmo nome, outras
flores como certas orquídeas e catleias.
A obsessão pelo rosa – que aparece em várias
tonalidades como malva, glauco, rosa Tiepolo, rosa violáceo, malva-rosa, rosa
salmão, rosada como ao sol poente, rosa de aurora e rosa-cereja – é uma das
marcas desse colorido. Entre os personagens que perpassam quase todo o corpo do
romance, Charles Swann, sua mulher Odette e a filha Gilberte (a paixão de
infância do narrador), a mais colorida é sem dúvida Odette, a “dama de
cor-de-rosa”.
É Odette quem está em uma das cenas mais
cheias de cores, quando Marcel vai sair com o casal Swann e descreve a toalete
dos dois, detendo-se mais na da mulher. “Ela também ia preparar-se, embora eu protestasse
que nenhum vestido de passeio se igualaria ao maravilhoso penhoar de crepe da
China ou de seda, rosa fanado, cereja, rosa Tiepolo, branco, malva, verde,
vermelho, amarelo liso ou com desenhos, com que a sra. Swann havia almoçado e
que ia tirar.”
Em outro momento da narrativa, ele diz: “Só
as mulheres que não sabem vestir-se é que temem a cor.” Estava praticamente
citando sua predileção pelos tipos femininos de que Odette era o modelo.
Ocaso
cromático
O
tempo redescoberto, último
volume de Em busca do tempo perdido,
é o menos colorido, não por haver uma escassez de cores, mas porque seu tecido
foi tomado por uma recorrência de matizes cinzas e tristes, embora ainda haja
espaço para o rosa e o azul. Apesar de o volume não ter sido finalizado por
Proust, que morrera antes, e os editores, sob a supervisão do irmão do
romancista, Robert Proust, terem sido os responsáveis pela elaboração final, o
que parece nublar a última parte da obra magistral é o conjunto temático.
O que vemos no fechamento do romance, além
das chaves semióticas que jogam luz sobre todo o caráter sígnico da obra, é o cenário
desolador da Primeira Guerra Mundial, mostrando os personagens que resistiram
no tempo, existindo em uma Paris pouco inspiradora, tisnando para o cinza, desbotados
pela velhice e pela morte iminente. Neste sentido, o cenário, as pessoas e a
própria exterioridade talvez não inspirassem o colorido de outrora. Mesmo
assim, nos deparamos com a memória ressaltando certas cores, e o rosa ainda
aparece na figura crepuscular de Odette.
O próprio Marcel, o narrador, diz algo
parecido ao percorrer as ruas entristecidas de Paris, onde havia, sim, cores,
mas era um raro tipo de coloração que não lhe despertava a atenção. Passava por
elas com um “dolente tédio”, como alguém que “tomou conhecimento das cores sem
nenhuma espécie de prazer.” Tudo se esvai em uma desesperança sombria.
Sexualidade
Não se ignora a sexualidade de Proust aqui.
Era homossexual, mas preferiu criar uma alter ego hétero, talvez pensando em
preservar sua obra num mundo homofóbico. Ao longo desses 100 anos, conseguiu
conquistar milhões de leitores sem preconceito, mas adquiriu alguns desafetos,
que o odiaram por maquiar sua sexualidade.
O que esses críticos não percebem é que, numa
tacada ambígua, Proust execrou a homossexualidade ao mesmo tempo que não deixou
de falar dela, mostrando como os homossexuais apareciam para a sociedade, e ainda
hoje, de modo geral, com certas características de comportamento social como se
fossem alienígenas, estrangeiros para a própria espécie, seres que se camuflam
e criam hábitos de predadores.
Embora esse comportamento tenha mudado no
seio da cultura ocidental, a descrição de Albertine como lésbica (cujo modelo
real era masculino, dada à homossexualidade de Proust) ainda ecoa nos dias de
hoje: “Não pertencia à humanidade comum, e sim a uma raça estranha que com ela se
mistura e nela se esconde, e jamais se funde.”
Todo ensaio ou biografia sobre Proust não
está completo se não se falar de sua sexualidade, mas no caso específico deste
texto, parece-me, o tema do colorido já é um modo de explicitar essa identidade
sexual. Logo, a importância desse mundo colorido está nas próprias cores
ressaltadas.
Proust foi um dos grandes gênios da narrativa
do século XX, que nos deixou um trabalho magnífico indo muito além do colorido deslumbrante.
Ao longo do romance, há centenas de frases cintilantes, com feixes de mensagens
filosóficas que ultrapassam os limites estéticos. A própria estrutura da
narrativa deixa vazar a ambição filosófica da obra. Mas esteticamente foi e
ainda é uma grande lição. Do ponto de vista da criação, ainda é um norte.
O modernismo estava grávido naquela passagem
do século XIX para o XX, em que Proust nos mostrou os valores de uma sociedade
em transição. Mas nada disso tira o brilho de suas cores. Elas estão lá, como o
mar e o céu ainda estão lá com as mesmas cores, a mesma carga poética descrita
por ele. “O abismo azulado do mar”, que quase lhe dava vertigens, ainda está lá.
Sua obra é como o mar. Para ele (seu alter ego), “o murmúrio distintamente
percebido de cada onda que se quebrava tinha, na sua doçura e na sua nitidez,
qualquer coisa de sublime.” Para nós, o sublime de seu romance também ainda é
verdadeiro.
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