sexta-feira, 30 de outubro de 2015

O mundo colorido de Marcel Proust

Crédito: Google Street
Detalhe da vista parcial da ninfa Glauconômena, o mar de Malbec (Cabourg)

Ao longo desses 100 anos de publicação do romance de Marcel Proust (1871-1922), Em busca do tempo perdido (o primeiro volume, No caminho de Swann, foi publicado em 1913 e o último, O tempo redescoberto, postumamente, em 1927), algumas coisas ficaram para trás, como a permeação enfadonha da crítica à homossexualidade e da crítica ao amor, embora esta tenha conservado frases valorosas. Mas a crítica ao ciúme, a leitura precisa da alteridade, os contornos da crítica social e da costura histórica da arte, da literatura e da música, e sobretudo o ensaio geral sobre o papel da memória na vida do indivíduo e da sociedade, bem como a metalinguagem na criação literária, ainda são de grande interesse do leitor atento.

Além disso, outra coisa interessante que permanece viva (que nos interessa neste texto) é o colorido que se espalha pelo romance inteiro, de mais de 2.500 páginas (semelhante aos simbolistas). Há um sem número de cores costurando a narrativa. Elas aparecem para descrever, embelezar, refazer percursos, e quando nos damos conta, tudo está matizado. Colorem o caminho, os pensamentos, as lembranças, a vida. É o que Olga Chaim Matos chamou de “luxo cromático”.

Em A fugitiva (volume 6, tradução de Carlos Drummond de Andrade, na edição de sete volumes da Editora Globo), ao falar da exterioridade do mundo e do modo como captamos a realidade das coisas, Marcel, o narrador alter ego de Proust, diz: “Para os homens, e graças à pobreza dos sentidos, as coisas não oferecem senão um número restrito de seus incontáveis atributos. São coloridas porque temos olhos; a quantos outros epítetos não fariam jus, se dispuséssemos de centenas de sentidos?”

A observação de Marcel expõe a tese do colorido na narrativa desse romance colossal. Nos longos anos de gestação da obra, o século XX se abria em cores com a explosão da modernidade e das diversas tendências em arte e moda. As misturas químicas inovavam nas estampas de tecidos e no matiz dos objetos. Proust quis captar esse momento e registrá-lo em sua literatura. Deixou um belíssimo legado que poucos veem, só os que se atêm ao pormenor da descrição.

Assim vemos despontarem uma “menina de cabelos ruivos e pele dourada”, uma ‘sombrinha malva”, um “vestido de cetim vermelho”, um “turbante branco e azul”, ou “flores rubras”, ou ainda sanguessugas usadas para efeitos de medicina como “pequenas serpentes negras na cabeleira ensanguentada”, e infinitos matizes, mil e uma cores transluzentes transversalizando a obra máxima.

Sensação de poesia

Quando Marcel, o narrador, vai passar uma temporada em Balbec - na verdade, Cabourg, cidade litorânea da costa atlântica francesa –, ele não se cansa de marcar as raparigas em flor com cores vivas e variadas. Não só elas e os objetos colorem o ambiente da narrativa, mas também as manhãs e as tardes matizadas pelo sol descendo do céu e se banhando no mar, o mar e suas águas verdes e azuis, a depender do momento. O mesmo mar em sua orla de ondinhas varrendo a praia aparece na tonalidade mais cara ao romance, o rosa, tisnindo para o glauco.

Em À sombra das raparigas em flor (segundo volume, tradução de Mário Quintana), Marcel, já hospedado no Grande Hotel em Balbec, admira o mar, e o chama de ninfa Glauconômena, alinhavando-o entre o verde e o rosa. “Que privilégio gozava determinada manhã sobre as restantes, para que a janela, ao entreabrir-se, revelasse a meus olhos maravilhados a ninfa Glauconômena, cuja preguiçosa formosura e brando respirar tinham vaporosa transparência de uma esmeralda, através da qual eu via afluírem os elementos ponderáveis que lhe davam colorido? Fazia brincar o sol, com sorriso velado por invisível bruma.”

O Leituras do Giba (ou seja, eu mesmo) pinçou as cores ao longo dos sete volumes, e para cada volume fez uma montagem cujo efeito dá uma sensação de poesia (a colagem pode ser vista neste blog em Cores perdidas (Proustianas I, II, III, IV, V, VI e VII). As cores retiradas de sua realidade, isoladas em seu esplendor, superpostas em verticalidades vertiginosas cintilam a memória da obra e mostram o mundo colorido de Em busca do tempo perdido. Elas aparecem em variante de emoções tantas quantas são as possibilidades da vida recapturada pela memória.

Essa policromia está no cerne do projeto estético de Proust. Em A Prisioneira (volume 5, tradução de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar), Bergotte - o escritor admirado pelo narrador quando jovem -, já no fim da vida viu em uma exposição em Paris o quadro Vista de Delft, o preferido do esteta Charles Swann e não por acaso uma espécie de ícone do romance, que traça uma certa história da pintura ao longo de sua narrativa. Bergotte também já o conhecia muito bem, mas após ler um crítico se referindo a determinado detalhe do quadro, “um panozinho de muro amarelo”, não se conteve e foi averiguá-lo nessa exposição.

Passou diante de obras que para ele soavam inexpressivas, sem vida, inúteis. Mas ao ver Vista de Delft, “de que se lembrava como sendo mais luminoso, mais diferente de tudo o que conhecia, mas onde, graças ao artigo do crítico, reparou pela primeira vez numas figurinhas vestidas de azul, na tonalidade cor-de-rosa da areia e finalmente na preciosa matéria do pequenino pano de muro amarelo.”

Após contemplar o quadro, Bergotte disse consigo mesmo: “‘Meus últimos livros são demasiado secos, teria sido preciso passar várias camadas de tinta, tornar a minha frase preciosa em si mesma, como este panozinho de muro.’” Foi pensando nisso que Bergotte deu seus últimos suspiros.

Essa tese em meio à agonia do escritor preferido de Marcel, o narrador, é a tese de Proust para seu romance (traçando um paralelo com a obra de Anatole France, um dos escritores preferidos de Proust, que este pretendeu superar, segundo críticos e biógrafos, e o fez). Proust passou várias camadas de tinta em sua narrativa, tornou as frases preciosas em si mesmas, fez de Vista de Delft um trunfo valoroso do ambiente expandido de sua criação literária.

Nesse momento, vê-se o Narrador deixando para trás a velha estética de que tanto gostava na obra de Bergotte e erigindo a sua própria. No paralelo, era Proust se erguendo de modo diferente dos grandes autores de sua época. Não só por isso, sem dúvida, mas o colorido permeia a espinha dorsal da obra e ilumina a nova estética, trazida à luz pelo novo criador.

Obsessão pelo rosa

As pinceladas do romance de Proust alteram de rosa para azul a todo instante, no entremeio de outras cores, geralmente cinza, às vezes negro e vermelho, às vezes verde que dá o tom esmaecido do glauco e a vivacidade do malva. Esta é a palavra cara ao narrador, é a que aparece tantas vezes dando o direcionamento do colorido no momento em que conjuga com as outras cores.

Malva é a praia banhada pelo mar, que tisna para o verde, entre o verde e o azul. E nas manhãs que o sol beija as vagas, o malva é toda a paisagem, mas é também os vestidos de Odette (chamada por Marcel de “dama de cor-de-rosa”), o rosto de Gilberte, a flor de mesmo nome, outras flores como certas orquídeas e catleias.

A obsessão pelo rosa – que aparece em várias tonalidades como malva, glauco, rosa Tiepolo, rosa violáceo, malva-rosa, rosa salmão, rosada como ao sol poente, rosa de aurora e rosa-cereja – é uma das marcas desse colorido. Entre os personagens que perpassam quase todo o corpo do romance, Charles Swann, sua mulher Odette e a filha Gilberte (a paixão de infância do narrador), a mais colorida é sem dúvida Odette, a “dama de cor-de-rosa”.

É Odette quem está em uma das cenas mais cheias de cores, quando Marcel vai sair com o casal Swann e descreve a toalete dos dois, detendo-se mais na da mulher. “Ela também ia preparar-se, embora eu protestasse que nenhum vestido de passeio se igualaria ao maravilhoso penhoar de crepe da China ou de seda, rosa fanado, cereja, rosa Tiepolo, branco, malva, verde, vermelho, amarelo liso ou com desenhos, com que a sra. Swann havia almoçado e que ia tirar.”

Em outro momento da narrativa, ele diz: “Só as mulheres que não sabem vestir-se é que temem a cor.” Estava praticamente citando sua predileção pelos tipos femininos de que Odette era o modelo.

Ocaso cromático

O tempo redescoberto, último volume de Em busca do tempo perdido, é o menos colorido, não por haver uma escassez de cores, mas porque seu tecido foi tomado por uma recorrência de matizes cinzas e tristes, embora ainda haja espaço para o rosa e o azul. Apesar de o volume não ter sido finalizado por Proust, que morrera antes, e os editores, sob a supervisão do irmão do romancista, Robert Proust, terem sido os responsáveis pela elaboração final, o que parece nublar a última parte da obra magistral é o conjunto temático.

O que vemos no fechamento do romance, além das chaves semióticas que jogam luz sobre todo o caráter sígnico da obra, é o cenário desolador da Primeira Guerra Mundial, mostrando os personagens que resistiram no tempo, existindo em uma Paris pouco inspiradora, tisnando para o cinza, desbotados pela velhice e pela morte iminente. Neste sentido, o cenário, as pessoas e a própria exterioridade talvez não inspirassem o colorido de outrora. Mesmo assim, nos deparamos com a memória ressaltando certas cores, e o rosa ainda aparece na figura crepuscular de Odette.

O próprio Marcel, o narrador, diz algo parecido ao percorrer as ruas entristecidas de Paris, onde havia, sim, cores, mas era um raro tipo de coloração que não lhe despertava a atenção. Passava por elas com um “dolente tédio”, como alguém que “tomou conhecimento das cores sem nenhuma espécie de prazer.” Tudo se esvai em uma desesperança sombria.

Sexualidade

Não se ignora a sexualidade de Proust aqui. Era homossexual, mas preferiu criar uma alter ego hétero, talvez pensando em preservar sua obra num mundo homofóbico. Ao longo desses 100 anos, conseguiu conquistar milhões de leitores sem preconceito, mas adquiriu alguns desafetos, que o odiaram por maquiar sua sexualidade.

O que esses críticos não percebem é que, numa tacada ambígua, Proust execrou a homossexualidade ao mesmo tempo que não deixou de falar dela, mostrando como os homossexuais apareciam para a sociedade, e ainda hoje, de modo geral, com certas características de comportamento social como se fossem alienígenas, estrangeiros para a própria espécie, seres que se camuflam e criam hábitos de predadores.

Embora esse comportamento tenha mudado no seio da cultura ocidental, a descrição de Albertine como lésbica (cujo modelo real era masculino, dada à homossexualidade de Proust) ainda ecoa nos dias de hoje: “Não pertencia à humanidade comum, e sim a uma raça estranha que com ela se mistura e nela se esconde, e jamais se funde.”

Todo ensaio ou biografia sobre Proust não está completo se não se falar de sua sexualidade, mas no caso específico deste texto, parece-me, o tema do colorido já é um modo de explicitar essa identidade sexual. Logo, a importância desse mundo colorido está nas próprias cores ressaltadas.

Proust foi um dos grandes gênios da narrativa do século XX, que nos deixou um trabalho magnífico indo muito além do colorido deslumbrante. Ao longo do romance, há centenas de frases cintilantes, com feixes de mensagens filosóficas que ultrapassam os limites estéticos. A própria estrutura da narrativa deixa vazar a ambição filosófica da obra. Mas esteticamente foi e ainda é uma grande lição. Do ponto de vista da criação, ainda é um norte.

O modernismo estava grávido naquela passagem do século XIX para o XX, em que Proust nos mostrou os valores de uma sociedade em transição. Mas nada disso tira o brilho de suas cores. Elas estão lá, como o mar e o céu ainda estão lá com as mesmas cores, a mesma carga poética descrita por ele. “O abismo azulado do mar”, que quase lhe dava vertigens, ainda está lá. Sua obra é como o mar. Para ele (seu alter ego), “o murmúrio distintamente percebido de cada onda que se quebrava tinha, na sua doçura e na sua nitidez, qualquer coisa de sublime.” Para nós, o sublime de seu romance também ainda é verdadeiro.

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