Há muito
tempo a Rede Globo vem escalando o máximo de estrelas para suas
telenovelas das 21 horas, buscando ao menos um pálido reflexo
dos velhos tempos de Ibope na casa dos 80 pontos. Na última
tentativa, não deu certo com Gilberto Braga, autor de tantos sucessos no
passado. No entanto, tem tudo para acertar com esse rearranjador de lugares que
é João Emanuel
Carneiro. Ele não revoluciona nada, mas domina a técnica da prestidigitação da
linguagem dramática, explora a movimentação do caráter, em que
o jogo psicológico e a ambiguidade são o passo
natural.
Carneiro
é o novo grande
nome da teledramaturgia brasileira. Surgiu em 2004 no horário das 19
horas com Da Cor do Pecado, vindo de
roteiros de cinema e assistência de maiorais como Maria
Adelaide Amaral, emplacou ainda Cobras e
Lagartos na mesma grade e chegou ao horário nobre
com a ótima A Favorita, de 2008, elevando-se ao
grau máximo com Avenida Brasil.
Conhece
bem a teoria formalista de Vladimir Propp, os conceitos de dialogia de Bakhtin.
É um
sujeito culto e grande leitor de narrativas. Vem de uma família
mergulhada no universo das artes, sobretudo da literatura. Meio-irmão da
atriz Cláudia Ohana, por parte de pai (o pintor Arthur
José
Carneiro), é filho da antropóloga falecida em 2010, Lélia Coelho
Frota, autora de livros de crítica literária e de
arte. Com A Regra do Jogo, que
estreou esta semana, ele vem disposto a provar que pode passar os 40 pontos no
Ibope (novo parâmetro de sucesso).
Ele sabe
construir paisagens internas com o mesmo rigor das externas. Se nestas, a
competência para ir
ao ar fica por conta do time de técnicos, os cenógrafos, a direção de fotografia
e os figurinistas, as outras dependem da atuação e da
construção de personagens, que envolve a diretora
Amora Mautner, uma espécie de bruxa genial vindo das
terras de Falstaff para soprar vida na ficção.
Toda a
obra de Carneiro é marcada pela dualidade do bem e do mal se abraçando e se
repelindo, em que opressores e oprimidos vivem se pegando, ora pelo afeto, ora
pelo desafeto. Ele é bom nisso. Sabe criar ambiguidade nos ambientes da narrativa. Subverte
os símbolos e os ícones que nos
fazem ler a sociedade sempre pelos chavões.
Na Regra do Jogo, no
apartamento do anti-herói Romero Rômulo
(Alexandre Nero), por exemplo, vê-se uma fotografia de Che Guevara, que
poderia indicar a casa de um idealista (talvez o devir de um), mas este não quer
revolucionar nada além da própria conta bancária. Carneiro
está correto
em construir a ambiguidade com Guevara, ícone da esquerda, pois sua
mensagem vai além do papo de boteco nostálgico sobre a ideologia
comunista contra o lobo do capitalismo.
Um mote
como “endurecer sem perder a ternura” cabe em qualquer atitude diante da vida,
para o bem e para o mal, e essa ambivalência é uma das
regras do jogo proposto por Carneiro. Resta saber se a grande massa vai
embarcar nessa vertigem.
(Gilberto
G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 4/09/2015)
Nenhum comentário:
Postar um comentário