sábado, 5 de setembro de 2015

A regra do jogo

Há muito tempo a Rede Globo vem escalando o máximo de estrelas para suas telenovelas das 21 horas, buscando ao menos um pálido reflexo dos velhos tempos de Ibope na casa dos 80 pontos. Na última tentativa, não deu certo com Gilberto Braga, autor de tantos sucessos no passado. No entanto, tem tudo para acertar com esse rearranjador de lugares que é João Emanuel Carneiro. Ele não revoluciona nada, mas domina a técnica da prestidigitação da linguagem dramática, explora a movimentação do caráter, em que o jogo psicológico e a ambiguidade são o passo natural.

Carneiro é o novo grande nome da teledramaturgia brasileira. Surgiu em 2004 no horário das 19 horas com Da Cor do Pecado, vindo de roteiros de cinema e assistência de maiorais como Maria Adelaide Amaral, emplacou ainda Cobras e Lagartos na mesma grade e chegou ao horário nobre com a ótima A Favorita, de 2008, elevando-se ao grau máximo com Avenida Brasil.

Conhece bem a teoria formalista de Vladimir Propp, os conceitos de dialogia de Bakhtin. É um sujeito culto e grande leitor de narrativas. Vem de uma família mergulhada no universo das artes, sobretudo da literatura. Meio-irmão da atriz Cláudia Ohana, por parte de pai (o pintor Arthur José Carneiro), é filho da antropóloga falecida em 2010, Lélia Coelho Frota, autora de livros de crítica literária e de arte. Com A Regra do Jogo, que estreou esta semana, ele vem disposto a provar que pode passar os 40 pontos no Ibope (novo parâmetro de sucesso).

Ele sabe construir paisagens internas com o mesmo rigor das externas. Se nestas, a competência para ir ao ar fica por conta do time de técnicos, os cenógrafos, a direção de fotografia e os figurinistas, as outras dependem da atuação e da construção de personagens, que envolve a diretora Amora Mautner, uma espécie de bruxa genial vindo das terras de Falstaff para soprar vida na ficção.

Toda a obra de Carneiro é marcada pela dualidade do bem e do mal se abraçando e se repelindo, em que opressores e oprimidos vivem se pegando, ora pelo afeto, ora pelo desafeto. Ele é bom nisso. Sabe criar ambiguidade nos ambientes da narrativa. Subverte os símbolos e os ícones que nos fazem ler a sociedade sempre pelos chavões.

Na Regra do Jogo, no apartamento do anti-herói Romero Rômulo (Alexandre Nero), por exemplo, vê-se uma fotografia de Che Guevara, que poderia indicar a casa de um idealista (talvez o devir de um), mas este não quer revolucionar nada além da própria conta bancária. Carneiro está correto em construir a ambiguidade com Guevara, ícone da esquerda, pois sua mensagem vai além do papo de boteco nostálgico sobre a ideologia comunista contra o lobo do capitalismo.

Um mote como “endurecer sem perder a ternura” cabe em qualquer atitude diante da vida, para o bem e para o mal, e essa ambivalência é uma das regras do jogo proposto por Carneiro. Resta saber se a grande massa vai embarcar nessa vertigem.


(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 4/09/2015)

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