A
fotografia de Aylan Kurdi, menino sírio de origem curda de três anos, morto
afogado ao tentar atravessar em um barco o Mar Egeu com a família na semana
passada, chocou o mundo, como chocaram o mundo várias imagens trágicas em
épocas anteriores. Mas o mundo sempre se recompõe do choque, e o barco das
ilusões segue seu curso com cada um respirando suas dores e prazeres.
Também
fiquei chocado, enquanto pensava em outras desgraças inclusive com crianças. A
comoção com a foto de Aylan, mais que com outras imagens, tem uma explicação
relativamente simples. De um lado, o momento do garotinho morto capturado pela
fotografia é comovente mesmo, como todos já falaram.
A
comoção está na solidão em volta de um garoto indefeso, o modo como está caído
na praia. A cabecinha pendida ao chão, quase enterrada na areia, e a bundinha
levemente inclinada para cima, enquanto os bracinhos estão derreados,
exatamente como fica o boxeador nocauteado. Está largado ali, rejeitado por
todos, inclusive pelo mar.
Ele
vestia sua roupa de domingo e estava alegre, ia viajar. Nesses momentos, a
apreensão fica por conta dos adultos, porque sabem dos riscos que existem,
conhecem as histórias de naufrágio. Mas a criança, não. Estava cheia de
expectativas felizes. E aí, aquele sonho gigante de criança, maior que o mar, é
interrompido. Isso comove mesmo.
De
outro lado, todo o drama dos últimos dias de refugiados chegando à Europa, em
que cada dia aparece uma desgraça a ser narrada, aliada à sucessão de casos de
violência no Oriente Médio e na África, protagonizados por ditadores apoiados
ou não pelo Ocidente, tudo isso já é um roteiro à espera de uma cena de
desfecho, como se fosse o último episódio de temporada de uma série sem fim.
Mas
nos recompomos. Temos uma capacidade incrível de nos recompor da emoção na
proporção direta que os donos do mundo têm de repetir as mesmas barbáries.
Quando a menina vietnamita correu queimada de napalm lançado pelos EUA e um
fotógrafo capturou sua imagem, o mundo inteiro chorou. A fotografia de uma
criança negra de cócoras, só pele e osso, e um urubu em volta, em Ruanda, em
1997, também chocou. Imagens dos campos de concentração nazistas na Segunda
Guerra já fizeram muita gente chorar, mas agora estão silenciadas em nossa
alma.
É
como se só de vez em quando um fotógrafo fosse capaz de captar a essência de
nossa vergonhosa condição. A criança morta vira ícone dessa miséria humana.
Dizer “agora isso não pode mais acontecer” é tão débil, tão frágil quanto Aylan
se debatendo nas águas do Mar Egeu até morrer. Nosso pedido de justiça, quando
se manifesta coletivamente, é tão raquítico que morre sempre afogado no grande
mar da iniquidade. Foi assim tantas vezes no passado, e é assim agora. Ninguém
é inocente nessa história, a não ser o menino. E a inocência sempre morre
primeiro.
(Gilberto
G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 12/09/2015)
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