domingo, 13 de setembro de 2015

A inocência sempre morre primeiro

A fotografia de Aylan Kurdi, menino sírio de origem curda de três anos, morto afogado ao tentar atravessar em um barco o Mar Egeu com a família na semana passada, chocou o mundo, como chocaram o mundo várias imagens trágicas em épocas anteriores. Mas o mundo sempre se recompõe do choque, e o barco das ilusões segue seu curso com cada um respirando suas dores e prazeres.

Também fiquei chocado, enquanto pensava em outras desgraças inclusive com crianças. A comoção com a foto de Aylan, mais que com outras imagens, tem uma explicação relativamente simples. De um lado, o momento do garotinho morto capturado pela fotografia é comovente mesmo, como todos já falaram.

A comoção está na solidão em volta de um garoto indefeso, o modo como está caído na praia. A cabecinha pendida ao chão, quase enterrada na areia, e a bundinha levemente inclinada para cima, enquanto os bracinhos estão derreados, exatamente como fica o boxeador nocauteado. Está largado ali, rejeitado por todos, inclusive pelo mar.

Ele vestia sua roupa de domingo e estava alegre, ia viajar. Nesses momentos, a apreensão fica por conta dos adultos, porque sabem dos riscos que existem, conhecem as histórias de naufrágio. Mas a criança, não. Estava cheia de expectativas felizes. E aí, aquele sonho gigante de criança, maior que o mar, é interrompido. Isso comove mesmo.

De outro lado, todo o drama dos últimos dias de refugiados chegando à Europa, em que cada dia aparece uma desgraça a ser narrada, aliada à sucessão de casos de violência no Oriente Médio e na África, protagonizados por ditadores apoiados ou não pelo Ocidente, tudo isso já é um roteiro à espera de uma cena de desfecho, como se fosse o último episódio de temporada de uma série sem fim.

Mas nos recompomos. Temos uma capacidade incrível de nos recompor da emoção na proporção direta que os donos do mundo têm de repetir as mesmas barbáries. Quando a menina vietnamita correu queimada de napalm lançado pelos EUA e um fotógrafo capturou sua imagem, o mundo inteiro chorou. A fotografia de uma criança negra de cócoras, só pele e osso, e um urubu em volta, em Ruanda, em 1997, também chocou. Imagens dos campos de concentração nazistas na Segunda Guerra já fizeram muita gente chorar, mas agora estão silenciadas em nossa alma.

É como se só de vez em quando um fotógrafo fosse capaz de captar a essência de nossa vergonhosa condição. A criança morta vira ícone dessa miséria humana. Dizer “agora isso não pode mais acontecer” é tão débil, tão frágil quanto Aylan se debatendo nas águas do Mar Egeu até morrer. Nosso pedido de justiça, quando se manifesta coletivamente, é tão raquítico que morre sempre afogado no grande mar da iniquidade. Foi assim tantas vezes no passado, e é assim agora. Ninguém é inocente nessa história, a não ser o menino. E a inocência sempre morre primeiro.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 12/09/2015)

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