terça-feira, 29 de setembro de 2015

Cores perdidas (proustianas I)

Barba Azul
olhos verdes
cabelos de um loiro avermelhado
longos bigodes loiros
egrete fulgurante e branca
Dominó Negro

Dama de cor-de-rosa
de ruge nos lábios
desmaio de tardes azuis
menina de loiro avermelhado
e rosto salpicado de manchinhas cor-de-rosa
olhos negros
vivíssimo azul
tirante para violeta
o branco
o róseo
laca negra
tufo de flores sombrias
em faces vermelhas

Gravata malva
faces vermelhas
cabelos loiros
olhos azuis
lilases invisíveis
persistentes lilases
cabelos cor de malva
chambre cor-de-rosa
cor malva
cores de Ghirlandajo
vestido de veludo negro
saia de seda branca
seda branca
e rosto róseo
olhos glaucos e cruéis
racimos negros

Mulheres azuis e amarelas
mão enluvada de branco
cabelos ruivos
pluma azul no chapéu
chapéu gris
lacre branco
fitas de cor malva
suíças brancas
sombrinha malva
vestido malva
touca malva
tudo malva.

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segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Bibliotecas interiores: livros registrados na memória

Quando aprendemos a ler e a apreciar a leitura, começamos a criar uma espécie de biblioteca mental, com livros que lemos e gostamos de ler, que ficaram grudados na memória e estão sempre ali, disponíveis no acervo de nossas lembranças. Ao longo da vida, para quem continuou a jornada solitária de leituras, quando se chega aos 40, já existem algumas centenas, quiçá milhares de livros registrados na memória.

Eles não estão na íntegra, como costumam estar nos HDs externos, nos tablets, computadores, bibliotecas virtuais ou físicas de toda ordem. O que há são fragmentos valiosos, porque se apresentam ao chamado da memória com uma série de adicionais, tais como cheiro, cores, espaços, movimento, relações afetivas e lembranças dentro de lembranças, dentro de lembranças que tangenciam outras lembranças.

Para alguns mais afortunados, isso tudo resulta em outros livros. Para a maioria, no entanto, resulta apenas na fruição ou na informação e na ampliação do repertório da vida interior, o que não é pouco. Afinal, lemos para encontrar cérebros mais geniais que o nosso (Harold Bloom) ou estabelecer relações afins com cérebros que nos pareçam produtivos. O diálogo que o leitor trava dentro do livro é uma relação de amizade. Segundo Peter Sloterdijk, a filosofia mantém-se contagiosa justamente porque tem essa capacidade de fazer amigos por meio do livro.

Nessas bibliotecas mentais, a diversificação do repertório vai depender do leitor. Há os que consomem de tudo e conquistam a fama de cultos (se tiverem boa memória). Há os que se segmentam e podem ser considerados metódicos. Dependendo da segmentação de leitura, o sujeito enriquece de tal maneira que vislumbra uma miríade de mundos literários.

Quem se especializa em Shakespeare, por exemplo, pode passar a vida inteira rastreando as pegadas translúcidas do gênio inglês e ainda assim lhe faltará vida para fechar o ciclo. Mas, em compensação, passeia por quase todos os matizes da cultura ocidental, incluindo o grande lance da subjetividade moderna que brotou da fonte shakespeariana, segundo Bloom.

Das malhas de leituras que ajudam a confeccionar um mundo cheio de nuanças em nossa alma, auxiliando-nos inclusive na capacidade de reconhecer o outro, uma bastante interessante é a que se erige em nossa biblioteca particular com livros solitários dentro de nós, de autores que muitas vezes conhecemos de um livrinho apenas, mas o suficiente para nunca mais esquecermos.

Trata-se de livros que lemos nas bibliotecas públicas, em casa de um amigo ou entreveremo-nos com eles em poltronas de livrarias. Depois queremos comprá-los, ou os levamos só na lembrança. Muitas vezes, é um exemplar raro que jamais teremos condição de adquirir. Outras, é possível tê-lo, e corremos atrás, achamos um exemplar em algum sebo, com marcas indeléveis do tempo ou de leituras anteriores, mas a felicidade se prolonga.

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sábado, 19 de setembro de 2015

Consciência negra - duas pílulas

O poeta negro e abolicionista Luiz Gama (1830-1882), em seu poema Quem sou eu?, dizia que no Brasil quem se sentia tão branco a ponto de discriminar negros e mestiços enganava a si mesmo. “Nobres Condes e Duquesas,/ Ricas Damas e Marquesas,/ Deputados, Senadores,/ Gentis-homens, vereadores,/ Belas Damas emproadas, De nobreza empantufadas,/ Repimpados principotes,/ Orgulhosos fidalgotes,/ Frades, Bispos, Cardiais,/ Fanfarrões imperiais,/ Gentes pobres, nobres gentes,/ Em todos há meus parentes.”

Já Inácio da Catingueira, que nasceu e morreu escravo na Vila de Patos, no sertão da Paraíba, no começo do século 19, era um poeta e cantador analfabeto, mas dono de uma verve incrível que se defendia do racismo com brilho, a ponto de ser lembrado até hoje: “O senhô me chama negro/ Pensando que me acabrunha,/ O senhô de home branco/ Só tem os dente e as unha .../ Sua pele é mui queimada/ Seu cabelo é testemunha.”

Nem todo brasileiro que tisna para o marrom quer aceitar o parentesco africano. A literatura poderia mostrar a essa criatura desavisada o caminho para a liberdade da senzala moral.

domingo, 13 de setembro de 2015

A inocência sempre morre primeiro

A fotografia de Aylan Kurdi, menino sírio de origem curda de três anos, morto afogado ao tentar atravessar em um barco o Mar Egeu com a família na semana passada, chocou o mundo, como chocaram o mundo várias imagens trágicas em épocas anteriores. Mas o mundo sempre se recompõe do choque, e o barco das ilusões segue seu curso com cada um respirando suas dores e prazeres.

Também fiquei chocado, enquanto pensava em outras desgraças inclusive com crianças. A comoção com a foto de Aylan, mais que com outras imagens, tem uma explicação relativamente simples. De um lado, o momento do garotinho morto capturado pela fotografia é comovente mesmo, como todos já falaram.

A comoção está na solidão em volta de um garoto indefeso, o modo como está caído na praia. A cabecinha pendida ao chão, quase enterrada na areia, e a bundinha levemente inclinada para cima, enquanto os bracinhos estão derreados, exatamente como fica o boxeador nocauteado. Está largado ali, rejeitado por todos, inclusive pelo mar.

Ele vestia sua roupa de domingo e estava alegre, ia viajar. Nesses momentos, a apreensão fica por conta dos adultos, porque sabem dos riscos que existem, conhecem as histórias de naufrágio. Mas a criança, não. Estava cheia de expectativas felizes. E aí, aquele sonho gigante de criança, maior que o mar, é interrompido. Isso comove mesmo.

De outro lado, todo o drama dos últimos dias de refugiados chegando à Europa, em que cada dia aparece uma desgraça a ser narrada, aliada à sucessão de casos de violência no Oriente Médio e na África, protagonizados por ditadores apoiados ou não pelo Ocidente, tudo isso já é um roteiro à espera de uma cena de desfecho, como se fosse o último episódio de temporada de uma série sem fim.

Mas nos recompomos. Temos uma capacidade incrível de nos recompor da emoção na proporção direta que os donos do mundo têm de repetir as mesmas barbáries. Quando a menina vietnamita correu queimada de napalm lançado pelos EUA e um fotógrafo capturou sua imagem, o mundo inteiro chorou. A fotografia de uma criança negra de cócoras, só pele e osso, e um urubu em volta, em Ruanda, em 1997, também chocou. Imagens dos campos de concentração nazistas na Segunda Guerra já fizeram muita gente chorar, mas agora estão silenciadas em nossa alma.

É como se só de vez em quando um fotógrafo fosse capaz de captar a essência de nossa vergonhosa condição. A criança morta vira ícone dessa miséria humana. Dizer “agora isso não pode mais acontecer” é tão débil, tão frágil quanto Aylan se debatendo nas águas do Mar Egeu até morrer. Nosso pedido de justiça, quando se manifesta coletivamente, é tão raquítico que morre sempre afogado no grande mar da iniquidade. Foi assim tantas vezes no passado, e é assim agora. Ninguém é inocente nessa história, a não ser o menino. E a inocência sempre morre primeiro.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 12/09/2015)

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sábado, 5 de setembro de 2015

A regra do jogo

Há muito tempo a Rede Globo vem escalando o máximo de estrelas para suas telenovelas das 21 horas, buscando ao menos um pálido reflexo dos velhos tempos de Ibope na casa dos 80 pontos. Na última tentativa, não deu certo com Gilberto Braga, autor de tantos sucessos no passado. No entanto, tem tudo para acertar com esse rearranjador de lugares que é João Emanuel Carneiro. Ele não revoluciona nada, mas domina a técnica da prestidigitação da linguagem dramática, explora a movimentação do caráter, em que o jogo psicológico e a ambiguidade são o passo natural.

Carneiro é o novo grande nome da teledramaturgia brasileira. Surgiu em 2004 no horário das 19 horas com Da Cor do Pecado, vindo de roteiros de cinema e assistência de maiorais como Maria Adelaide Amaral, emplacou ainda Cobras e Lagartos na mesma grade e chegou ao horário nobre com a ótima A Favorita, de 2008, elevando-se ao grau máximo com Avenida Brasil.

Conhece bem a teoria formalista de Vladimir Propp, os conceitos de dialogia de Bakhtin. É um sujeito culto e grande leitor de narrativas. Vem de uma família mergulhada no universo das artes, sobretudo da literatura. Meio-irmão da atriz Cláudia Ohana, por parte de pai (o pintor Arthur José Carneiro), é filho da antropóloga falecida em 2010, Lélia Coelho Frota, autora de livros de crítica literária e de arte. Com A Regra do Jogo, que estreou esta semana, ele vem disposto a provar que pode passar os 40 pontos no Ibope (novo parâmetro de sucesso).

Ele sabe construir paisagens internas com o mesmo rigor das externas. Se nestas, a competência para ir ao ar fica por conta do time de técnicos, os cenógrafos, a direção de fotografia e os figurinistas, as outras dependem da atuação e da construção de personagens, que envolve a diretora Amora Mautner, uma espécie de bruxa genial vindo das terras de Falstaff para soprar vida na ficção.

Toda a obra de Carneiro é marcada pela dualidade do bem e do mal se abraçando e se repelindo, em que opressores e oprimidos vivem se pegando, ora pelo afeto, ora pelo desafeto. Ele é bom nisso. Sabe criar ambiguidade nos ambientes da narrativa. Subverte os símbolos e os ícones que nos fazem ler a sociedade sempre pelos chavões.

Na Regra do Jogo, no apartamento do anti-herói Romero Rômulo (Alexandre Nero), por exemplo, vê-se uma fotografia de Che Guevara, que poderia indicar a casa de um idealista (talvez o devir de um), mas este não quer revolucionar nada além da própria conta bancária. Carneiro está correto em construir a ambiguidade com Guevara, ícone da esquerda, pois sua mensagem vai além do papo de boteco nostálgico sobre a ideologia comunista contra o lobo do capitalismo.

Um mote como “endurecer sem perder a ternura” cabe em qualquer atitude diante da vida, para o bem e para o mal, e essa ambivalência é uma das regras do jogo proposto por Carneiro. Resta saber se a grande massa vai embarcar nessa vertigem.


(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 4/09/2015)