segunda-feira, 18 de julho de 2011

Fracasso e fulgor em Exercícios ilusórios



Em 1976, o poeta, es­critor e microempresário Osvaldo Rodri­gues já tinha poemas publicados. Em seguida vieram os livros: Voo singular (1979), Mascando esperanças com dentes de vidro (1983) e Fô­le­go (1985). Trinta e cinco anos depois, ele decidiu ampliar seu campo de criação e acaba de lançar o primeiro romance, Exercícios ilusórios (Ficções, 2011, 112 páginas, R$ 34,90).

O romance narra as peripécias de Ludoman Orni, homem de nome sugestivo, que deixa sua vida burocrática num escritório de vendas de produtos médico-hospitalares para vender ilusões.

A premissa é boa, e a primeira parte do romance consegue passar uma ótima impressão. Ludoman ainda trabalha como vendedor desses produtos enquanto se exercita na arte de iludir, partindo da elaboração de textos ilusórios. A ideia é fazer nascer dali uma realidade.

O real nisso tudo é que a literatura vende ilusões. Além disso, todos sabemos que a palavra é a matéria-prima de muitos produtos, não só da arte, mas da política e da publicidade também, só para citar os exemplos mais óbvios.

A medicina é outra que usa bastante a palavra para vender produtos ilusórios. Os médicos são grandes mestres do verbo como instrumento de eficácia na embromação de pacientes. Tudo isso é suscitado como debate e sugerido na escrita de Rodrigues.

Dividido em duas partes, ainda na primeira, ao se exercitar, Ludoman escreve uma série de textos que dão vida ao acervo de ilusões. No primeiro teste, por exemplo, ele oferece um par de óculos a um homem, convencendo-o de que são lentes mágicas, por meio das quais podia-se ver o pensamento da pessoas.

O homem então aceita usar o produto e acredita estar realmente vendo o que as pessoas pensam. É ou não é coisa típica da publicidade? Rodrigues consegue brincar com essas situações. Aqui, seu texto tem uma pegada de HQ, de animação, e um ritmo que aproxima sua prosa da poesia.

Rodrigues consegue também contornar os traços de Lu­doman com certo grau de humanidade. Mas o protagonista está só, nesta jornada. Os outros personagens que aparecem na trama são apenas fantoches, e o próprio Ludoman, muitas vezes, parece ser governado por uma mão pesada demais.

Mister Maker

Na segunda parte, quando Ludoman sai do emprego para se dedicar a vender ilusões, a narrativa desanda um pouco. A proposta de romance que se espera parece não se fechar. Tudo fica muito liso e leve. Há baixa tensão romanesca, o drama é pouco e o desfecho em cada capítulo não consegue dar conta do recado.

O autor parece ter forçado demais a barra de romper com as normas estabelecidas e esticou a criatividade sem se ater aos feixes de procedimentos que dariam a tal tensão. Uma história atrás da outra, saindo linearmente, e os personagens seguem como marionetes. O salto de um episódio a outro e o clique do clímax são fortemente marcados.

Lembra um pouco a atuação do Mister Maker, da Dis­co­very Kids. Quando abre o programa, Mister Maker, está, por exemplo, tomando um sorvete, que cai no chão, e ele lo­go se prontifica a inventar um sorvete de mentirinha. Mais ou menos nessa toada, Ludoman acende o cérebro para as ilusões.

Por outro lado, se levarmos em conta a proposta de prosa, de um exercício de narrativa, é importante atentar para o rit­mo e a dança das palavras na tessitura das cenas. E é aí que vale a leitura de Exercícios ilusórios.

O romance trata da fé, principalmente da boa fé e da capacidade de acreditar das pessoas. Há um jogo interessante entre fantasia e realidade, arte e vida prática. As ilusões giram em torno de carros, mulheres e futebol. Além disso, faz uma severa crítica ao sistema de vida construído pelo Ocidente, em que a publicidade comanda tudo e o mercado se alimenta de ilusão e desejo.

Joystick cerebral

O texto também é uma grande brincadeira. Os momentos ilusórios na maioria das vezes são os mais felizes, como nos fazem acreditar as engrenagens publicitárias. Mas, como todo produto, a ilusão também tem seu tempo útil. Neste sentido, Exercícios ilusórios são histórias de fracasso entrecortadas por relances de alegria e fulgor.

Um exemplo é a história do homem que comprou a ilusão de ter um carro importado. Conseguiu fazer um test drive num de verdade e acabou, no trânsito louco, salvando o dono de um importado também verdadeiro. Na crise e no choque de se ver diante da morte e ser salvo por um triz, o dono doou o carro para o comprador de ilusão.

Logo, são histórias reais fantasiadas, como se no meio do caminho, em vez de uma pedra, houvesse um pirlimpimpim: uma criança por alguns minutos se apodera do joystick cerebral do adulto. São exercícios ilusórios, na mesma proporção em que surgem como exercícios literários.

No caso do carro importado, claro, uma sequência de mau tempo, com uma mãozinha de Ludoman, se encarrega de pôr abaixo a ilusão do rapaz. Se por um lado, o romance parece um meio fracasso de romance, por outro, parece haver, no lugar do fracasso, uma proposta diferente, em que a brincadeira é o que vale. O exercício acaba sendo o resultado final.

Musicalidade

O próprio nome Ludoman quer dizer “brincalhão”, para lembrar um termo que já usei em outro texto ('ludo', do latim, ‘jogo’, ‘divertimento’, daí 'lúdico', e 'man', do inglês, 'homem'). E a maior brincadeira está no jogo com as palavras.

Neste sentido, a prosa de Ro­drigues murmureja como água de córrego descendo pe­quenas cascatas. O trocadilho também vale, por que há um quê de cascata nas histórias con­tadas, há certo grau de bro­ma consciente no jogo narrativo.

Rodrigues usou e abusou do rebimbo das palavras. Tudo é motivo para ressoar as sílabas. Para o narrador, é uma grande diversão narrar. É neste sentido que ele se assemelha a outro lúdico, o cubano Cabre­ra Infante. “Levi ligou para a casa...”, “A vítima, o velho, es­tava a salva...”, “abriu o grande envelope branco” são exemplos mínimos dessa aliteração.

Mas há também os exemplos macros de frases inteiras, sentenças inteiras, parágrafos que buscam o recurso poético das frases bailarinas ou dos trocadilhos. “Fora incumbido, em uma de suas tarefas, de en­tregar uma dentadura, já pronta, em um consultório odontológico. Antes, no entanto, deu uma rápida passada em sua casa para fazer uma boquinha.”

O autor provavelmente diria “que se dane a tensão”. A literariedade aqui é um lance lúdico do prazer de imaginar e criar. É o homo ludus, de Cortázar, o Ludoman, de Rodrigues, conforme sugere na abertura de um dos episódios, com um texto ritmado e pleno de musicalidade:

“Era isto: palavras fosforescentes. Aquelas que, impressas, impressionam, atingem em cheio os olhos: a mágica percepção fulgurante, o fogo penetrando nas pupilas, as sílabas incendiando o cérebro, os sonhos saltando as órbitas. Transcrever as cores em palavras? Nada disso: imprimir cores e sentidos dispersos nas palavras outrora negras”. Eis a intenção poética.

Ou seja, há um sem número de razões para se ler o livro de Rodrigues. Na primeira parte, a estrutura lúdica também brinca com a ideia de laboratório. Todos os episódios, em que Ludoman apenas se exercita na arte de iludir o leitor, os personagens têm nome de animal, como se fossem cobaias.

Nessa brincadeira, o narrador não se esquece, sugestivamente, dos trocadilhos e simbologias encerrados nos no­mes e nas sequências de nomes ao longo dos textos: Passa­ri­nho, Formiga, Barata, Aranha, Leão, Lobo, Castor, entre tantos outros, como Camelo, que “tinha um amigo vendedor de planos de saúde, o Leitão.”

Lírico-etílico

A narrativa de Exercícios ilusórios também sugere a literatura como uma grande viagem da consciência social. Mas não pelos meios racionais, nem sóbrios. Os personagens bebem o tempo todo. A cada esquina de parágrafo há um convite para o próximo gole.

O romance está marinado de cerveja, oferecendo ao leitor um roteiro lírico-etílico de ilusões. Beber é para os seres imaginativos. Quem não tem essa capacidade, é melhor permanecer sóbrio. Eis a dica literária, apontando para a tabuleta, meio suja e empoeirada, no canto do bar imaginário: In vino veritas.

Mas em Exercícios ilusórios há também as pílulas verbais, as cápsulas de argumentos à au­toajuda, e as sentenças ex­pli­cativas que, outra vez, a­mea­çam o romance. “Corre­mos o tempo todo contra o tempo e, muitas vezes, contra nós mesmos”. Há uma série delas.

Para contrapor, o leitor pode se agarrar a outros trechos de densidades interessantes, como: “o passado não é mais do que sapatos pesados de solas gastas nos pés acima do chão impregnados de restos, ressentimentos, pesadelos que arrastamos.” Mesmo aqui, já poderia ter parado em restos. “Pesadelos que arrastamos” já é explicação.

Rodrigues é paranaense de Apucarana, mas mora em São Paulo, lugar propício para exercícios ilusórios.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 17/07/2011)

2 comentários:

Dois Rios disse...

Gilberto,

Estou fascinada com a sua escrita. A análise dos livros é sempre requintada, clara, detalhista e delicadamente técnica.

Depois de velha, mais precisamente há 4 anos, é que passei a me aventurar pelos livros e quando da descoberta do seu blog, passei a te-lo como referência para as minhas escolhas.

Um grande abraço,
Inês

Gilberto G. Pereira disse...

Obrigado, Inês! Você diz que começou a ler mais agora, recentemente, né. Mas a vivência pessoal também ajuda, para quem tem sensibilidade, a mergulhar mais fundo nas palavras. Talvez seja esse o seu caso. Parabéns, também! Um abraço!