Em O presumível coração da América (Record, 2011, 2ª Ed., 256 páginas, R$44,90), Nélida Piñon revela o seu lado social, com uma série de discursos proferidos em ocasiões diversas. Mas mantém o mesmo rigor poético com o qual se consagrou escrevendo seus romances. Daí poder-se dizer que seus discursos também podem ser vistos como ensaios.
O que encanta neste livro é justamente a mescla de ambientes, entre a tribuna e a solidão de quem cria. A primeira edição de O presumível coração da América foi publicada pela mesma Record em 2002. E se há repetição, é porque a escritora convenceu o leitor de que seus textos menores também oferecem o passeio pelo gosto estético.
O resultado de sua escrita é uma naturalidade admirável, cuja emoção da possível cena real está lá. Ela sabe explorar a emoção contida em cada palavra, expandindo-a, alastrando o afeto encontrado. Seus textos nos fazem ficar mais próximos do sentimento da língua, convidando o leitor à cerimônia encantada da linguagem. É sem dúvida um grande exemplo de literato.
No texto que dá nome à coletânea, e que abre o livro, ela fala direto da Universidade de Guadalajara, no México, ao receber o Prêmio Juan Rulfo, em 1995. Esta foi apenas uma das incontáveis vezes em que recebeu homenagens ou foi premiada e teve de falar. Para cada uma dessas ocasiões, Nélida escreveu um discurso que emocionou os convidados e os anfitriões.
Mas também houve vezes em que ela homenageou (postumamente ou não), e aí o livro nos traz um desfile de nomes importantes de nossas letras na voz de Nélida. Em seu discurso de posse da ABL, em 1990, a escritora estreia duplamente – a fase de discursos e a vida de membro da instituição – com um texto brilhante sobre sua sucessão ao filólogo Aurélio Buarque de Holanda, na cadeira número 30.
Neste texto, além de dar uma aula de contextualização histórico-social, Nélida nos ajuda a entender melhor quem foi o dicionarista. Conta histórias de como ele se interessou pela língua e começou a estudá-la metodicamente, garimpando vocábulos e acepções em todas as fontes, de Machado de Assis aos malandros guardiões da palavra mundana, da gíria e dos vulgos.
Suavidade da formas
Antonio Houaiss, Jorge Amado, Carlos Chagas, Darcy Ribeiro, Rosiska Darcy de Oliveira e tantos outros também aparecem nesta coletânea, retratados pela luz de Nélida. Das diversas maneiras que o livro pode ser aproveitado, uma delas, talvez a mais prazerosa, é a de apreciar a suavidade das formas de verbos forjados a fogo por nossa escritora.
Sobre Aurélio, Nélida diz que ele “apossou-se das palavras como se tivesse a língua portuguesa inscrita na genética do seu espírito. (...) Sua polida sensibilidade amola, afia, esmerilha as palavras.” O mesmo pode ser dito desta que foi pioneira em diversos momentos no universo da literatura.
Entre os pioneirismos, está o fato de ter sido a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, em 1997. Também foi a primeira mulher a receber o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Santiago de Compostela (1998), em 500 anos de história da instituição, e a ganhar o Prêmio Juan Rulfo (1995).
Neste último caso, Nélida também adiantou aos outros, sendo o primeiro autor em língua portuguesa a receber tal distinção. Em todas essas ocasiões, é possível ver que ela sabe como poucos enxertar o senso narrativo em seus discursos. Todos eles vêm com um enredo bastante pensado, com palavras bem colocadas que criam a atmosfera literária, ainda que sejam objetos de ocasiões sociais.
Iluminação
O enlace amoroso entre Nélida Piñon e a palavra é inspirador. Sua obra literária é toda ela erigida em volta à tentativa de desvelar o mistério da vida por meio da ação verbal, da combinação das palavras. “Sou diariamente perseguida pelo espírito da narrativa”, diz ela em um dos textos. “Sofro cada palavra que fabrico”, continua.
Por isso mesmo, por se entregar ao ambiente do pathos verbal é que ela consegue extrair da massa vocabular o continente expressivo. Nesse jogo, Nélida faz nascerem tipos interessantes e inesquecíveis como o galego Madruga, que veio para o Brasil fazer a América, e sua neta brasileira Breta, personagem narradora de A república dos sonhos, de 1984, um catatau esplêndido de 752 páginas.
Ao resenhar A república dos sonhos, quando foi traduzido para o inglês nos Estados Unidos, ainda na década de 1980, a Publishers Weekly não teve receio de dizer que este romance estava alçando Nélida “à categoria de gênio”. Mesmo havendo controvérsia quanto a isso, não se pode negar que a escritora brasileira, neta de espanhóis da Galícia (galegos, portanto), é uma grande autora.
O presumível coração da América atesta isso. Ao longo dos textos, o leitor pode entender melhor o grau de consciência literária da escritora, à medida que ela vai dialogando com seus interlocutores, estejam eles na plateia ou diante das páginas. Para Nélida, “a palavra ilumina o desvão da realidade”. Semear a lucidez da escrita, nesse nível, em discursos é para poucos.
(Gilberto G. Pereira. Originalmente publicado na Tribuna do Planalto)
Nenhum comentário:
Postar um comentário