domingo, 31 de julho de 2011

O olhar que esquadrinha as paisagens

                                                                                                                                                                              Foto: Michel Capel (2009)
Lourival Belém Jr., médico e documentarista goiano, diretor de As cidadelas invisíveis Imagens da cidade dos homens

Quem ama a cidade deixa-a morar por inteiro em sua alma, sem execrá-la por ser cruel e célere, vulgar e altiva, por ser bela, mas carregada de pequenos horrores. Não a nega por ser o lugar plural e volúvel, que num átimo muda as cores, os cheiros e as vias de acesso, esquecendo o primeiro afeto para beijar o outro que chega de repente.

Quem ama a cidade, vive-a, e a observa com uma espécie de desejo e repulsa que só a arte é capaz de traduzir. Em Goiânia há um homem assim, fascinado pelos signos das ruas, senhor de uma lente crivosa que tudo ama como quem se espanta, e olha para a capital goiana, onde nasceu, cresceu e se formou, com a mesma intensidade humana que usa para exercer sua profissão, a medicina.

Lourival Belém Jr. (52 anos), casado, pai de um casal de filhos já adultos, é médico psiquiatra, e, como médico, trabalha feito um louco, visionariamente, em seu consultório no setor Oeste, mas também nas ruas de Goiânia e nos presídios, dando pareceres psiquiátricos, ou orientando projetos ligados à rede de tratamentos alternativos, os CAPS (Centro de Atenção Psicossocial).

Quando não está observando o outro dentro do consultório, observa-o dentro da cidade. E aí, o espaço se redimensiona, e também é onde podemos ver a verdade translúcida de si mesmo. Ele não deixa o médico, por não ter dupla personalidade. Não vem de Stevenson. O que faz é tornar dominante o lado cineasta, cujas lentes já captaram muitas cenas de alcance estético impressionante.

Em sua obra cinematográfica, incompleta ainda, pois Belém está em plena atividade, há uma série de documentários de curta-metragem que abordam os dramas sócio-ambientais de Goiânia. No escopo de seu cinema, pelo aspecto documental, ele questiona e informa, cria um campo de batalha com o status quo.

Mas a maior riqueza do cinema de Belém está na linguagem e na capacidade de criar graus de beleza que podem ser decantados segundo o entendimento de cada um. Isso é visto em todos os seus filmes, como em Recordações de um presídio de meninos, o mais recente, de 2009, e Autonomia, de 2006.

O primeiro é uma ficção documentária cujo título já denuncia a diretriz do drama. O segundo, de 2006, retrata, numa linguagem experimental, a luta diária de marginalizados e educadores, uns para legitimar socialmente a vida que têm, outros, para terem aceita socialmente a vida que levam.

Os documentários mais interessantes de Belém, no entanto, são aqueles que trazem no título a palavra que lhe é cara, cidade: As cidadelas invisíveis, de 2001, premiado com o FICA daquele ano e com o Goiânia Mostra Curta; Concerto da cidade (2005), que também ganhou o FICA; e Imagens da cidade dos homens.

São todos trabalhos em que os espaços são multivalorizados e o cineasta recria as simbioses urbanas, o confronto, e o conflito, entre o homem e o meio social, o meio ambiente e o cotidiano das transformações. Belém pensa a cidade pela lógica da convivência, ao mesmo tempo que nos mostra o estrago causado pela exclusão.

Concerto da cidade, por exemplo, é sobre o desconserto do mundo. Ele parte da aniquilação das árvores no centro de Goiânia, na avenida Paranaíba, para a instalação do Mercado Aberto, o rearranjo de camelôs que ocupavam os canteiros das avenidas Goiás e Anhanguera.

As cenas se articulam internamente sob o ronco dos motosserras, o ruído do trânsito, as vozes das pessoas e o som dos instrumentos musicais. Tudo vai se comunicando, desconstruindo um sentido para recriar outro. A música, a vida, a dança, um balé de singelezas no meio da fúria e das intersecções, acompanham o espaço sendo modificado, seguem os membros desconjuntados das árvores caindo na avenida.

Em As cidadelas invisíveis, ele questiona a repressão psiquiátrica, o discurso excludente da medicina e do poder, a tendência à segregação de quem manda na cidade. Nesse filme, Belém procura explorar o controle dos espaços urbanos e a maneira como isso ressoa na subjetividade, dando voz aos excluídos também.

Talvez Imagens da cidade dos homens seja seu filme mais visto, e é o que concentra o maior grau de beleza. Polifônico, traz a marca das diversas mídias, do jornal ao rádio, e das diversas artes, da literatura ao próprio cinema. É como se quisesse recuperar a cidade, o valor da arquitetura, com o olhar.

A ironia e o jogo de metáforas também são bastante expressivos neste filme de 19 minutos. Há um texto soberbo mostrando uma paisagem carcomida em determinados trechos da cidade e sua reconstrução, de outro modo, em outra geografia. Na metade da película, há uma cena aérea que resume o olhar de Belém.

Nessa cena, Goiânia é flagrada do alto no marco zero, captando o desenho da cidade que lembra um olho, uma íris. Imagens da cidade dos homens é o filme-síntese de Belém. É o reflexo de sua própria alma, plural. É um olhar que esquadrinha as diversas paisagens sociais. É um belo exemplo de que podemos escolher o foco de nossa visão, seja ela estética, política, social, ambiental.

(Gilberto G. Pereira. Publicado na revista do Festival Internacional de Cinema Ambiental – FICA, julho de 2011)

sábado, 30 de julho de 2011

Gullar versus Campos

Ferreira Gullar e Augusto de Campos se digladiaram na Folha de S. Paulo. Em sua coluna na Ilustrada, de 17 de julho, Gullar diz que em 1954 Augusto de Campos e Haroldo de Campos e Décio Pignatari o haviam procurado para falar da renovação da poesia brasileira, citando “os poetas brasileiros que, no seu entender, representavam um caminho para a renovação: Mário de Andrade, Drummond, Cabral. Oswald de Andrade estava fora.”

Foi aí que Gullar teria defendido Oswald de Andrade, e os três então teriam repensando e incluído o poeta na lista. Augusto “ficou de relê-lo e da releitura que fizeram resultou a redescoberta de Oswald de Andrade.”

Neste sábado, 30 de julho, Augusto de Campos deu o troco. Disse que Gullar “esqueceu de dizer que sua cabeça só funciona para engrandecer-se. Lembra que, gênio precoce, foi campeão de bolinha-de-gude. E vive trocando as bolas, sempre em proveito próprio.”

Disse mais: “Ninguém precisou de Gullar e sua vã gloríola. A sua grande contribuição: descobriu em Oswald duas qualidades, humor e frescor. Nenhuma tem Gullar. Guloso e ressentido, diz que a poesia concreta é tolice, mas quer ser seu precursor... O "Lance de Dados", de Mallarmé? "Pensou" em traduzir... Só que foi Haroldo o tradutor. (...) O papo furado sobre Oswald é porque nós o resgatamos.”

Ferreira Gullar tem 80 anos. Augusto de Campos tem 80 anos, e escreve bolinha de gude entre hífens. Gosto dos dois, por razões diferentes. O primeiro é um poeta melhor, claro, é dos grandes, e o segundo é um grande leitor e tradutor.

Mas ambos já deram o que tinha que dar. Estão se repetindo, inclusive nas ofensas.

Quer saber! Os dois que vão procurar uma nova metáfora. Se não tiveram mais cabeça pra isso, vão procurar um livro pra resenhar. Chega!

segunda-feira, 25 de julho de 2011

A cerimônia encantada da linguagem



Em O presumível coração da América (Record, 2011, 2ª Ed., 256 páginas, R$44,90), Nélida Piñon revela o seu lado social, com uma série de discursos proferidos em ocasiões diversas. Mas mantém o mesmo rigor poético com o qual se consagrou escrevendo seus romances. Daí poder-se dizer que seus discursos também podem ser vistos como ensaios.

O que encanta neste livro é justamente a mescla de ambientes, entre a tribuna e a solidão de quem cria. A primeira edição de O presumível coração da América foi publicada pela mesma Record em 2002. E se há repetição, é porque a escritora convenceu o leitor de que seus textos menores também oferecem o passeio pelo gosto estético.

O resultado de sua escrita é uma naturalidade admirável, cuja emoção da possível cena real está lá. Ela sabe explorar a emoção contida em cada palavra, expandindo-a, alastrando o afeto encontrado. Seus textos nos fazem ficar mais próximos do sentimento da língua, convidando o leitor à cerimônia encantada da linguagem. É sem dúvida um grande exemplo de literato.

No texto que dá nome à coletânea, e que abre o livro, ela fala direto da Universidade de Guadalajara, no México, ao receber o Prêmio Juan Rulfo, em 1995. Esta foi apenas uma das incontáveis vezes em que recebeu homenagens ou foi premiada e teve de falar. Para cada uma dessas ocasiões, Nélida escreveu um discurso que emocionou os convidados e os anfitriões.

Mas também houve vezes em que ela homenageou (postumamente ou não), e aí o livro nos traz um desfile de nomes importantes de nossas letras na voz de Nélida. Em seu discurso de posse da ABL, em 1990, a escritora estreia duplamente – a fase de discursos e a vida de membro da instituição – com um texto brilhante sobre sua sucessão ao filólogo Aurélio Buarque de Holanda, na cadeira número 30.

Neste texto, além de dar uma aula de contextualização histórico-social, Nélida nos ajuda a entender melhor quem foi o dicionarista. Conta histórias de como ele se interessou pela língua e começou a estudá-la metodicamente, garimpando vocábulos e acepções em todas as fontes, de Machado de Assis aos malandros guardiões da palavra mundana, da gíria e dos vulgos.

Suavidade da formas

Antonio Houaiss, Jorge Amado, Carlos Chagas, Darcy Ribeiro, Rosiska Darcy de Oliveira e tantos outros também aparecem nesta coletânea, retratados pela luz de Nélida. Das diversas maneiras que o livro pode ser aproveitado, uma delas, talvez a mais prazerosa, é a de apreciar a suavidade das formas de verbos forjados a fogo por nossa escritora.

Sobre Aurélio, Nélida diz que ele “apossou-se das palavras como se tivesse a língua portuguesa inscrita na genética do seu espírito. (...) Sua polida sensibilidade amola, afia, esmerilha as palavras.” O mesmo pode ser dito desta que foi pioneira em diversos momentos no universo da literatura.

Entre os pioneirismos, está o fato de ter sido a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras, em 1997. Também foi a primeira mulher a receber o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Santiago de Compostela (1998), em 500 anos de história da instituição, e a ganhar o Prêmio Juan Rulfo (1995).

Neste último caso, Nélida também adiantou aos outros, sendo o primeiro autor em língua portuguesa a receber tal distinção. Em todas essas ocasiões, é possível ver que ela sabe como poucos enxertar o senso narrativo em seus discursos. Todos eles vêm com um enredo bastante pensado, com palavras bem colocadas que criam a atmosfera literária, ainda que sejam objetos de ocasiões sociais.

Iluminação

O enlace amoroso entre Nélida Piñon e a palavra é inspirador. Sua obra literária é toda ela erigida em volta à tentativa de desvelar o mistério da vida por meio da ação verbal, da combinação das palavras. “Sou diariamente perseguida pelo espírito da narrativa”, diz ela em um dos textos. “Sofro cada palavra que fabrico”, continua.

Por isso mesmo, por se entregar ao ambiente do pathos verbal é que ela consegue extrair da massa vocabular o continente expressivo. Nesse jogo, Nélida faz nascerem tipos interessantes e inesquecíveis como o galego Madruga, que veio para o Brasil fazer a América, e sua neta brasileira Breta, personagem narradora de A república dos sonhos, de 1984, um catatau esplêndido de 752 páginas.

Ao resenhar A república dos sonhos, quando foi traduzido para o inglês nos Estados Unidos, ainda na década de 1980, a Publishers Weekly não teve receio de dizer que este romance estava alçando Nélida “à categoria de gênio”. Mesmo havendo controvérsia quanto a isso, não se pode negar que a escritora brasileira, neta de espanhóis da Galícia (galegos, portanto), é uma grande autora.

O presumível coração da América atesta isso. Ao longo dos textos, o leitor pode entender melhor o grau de consciência literária da escritora, à medida que ela vai dialogando com seus interlocutores, estejam eles na plateia ou diante das páginas. Para Nélida, “a palavra ilumina o desvão da realidade”. Semear a lucidez da escrita, nesse nível, em discursos é para poucos.

(Gilberto G. Pereira. Originalmente publicado na Tribuna do Planalto)

terça-feira, 19 de julho de 2011

Jô Soares e a CAL

No fim de noite desta segunda-feira, assistindo ao Programa do Jô, assisti também a uma cena bem cômica. Jô entrevistou o escritor da nova geração Mario Vitor Rodrigues, neto de Nelson Rodrigues.

O rapaz é muito educado. Pude notar isso quando ele começou a falar de como havia chegado ao ofício de escritor. Tentara tudo, inclusive empresário do ramo do futebol, até que começou a escrever, gostou e se tornou escritor.

Na enumeração do que havia feito, ora citando a profissão, ora, colocando um verbo na frase, como “fui empresário, também estudei nos Estados Unidos, fiz um monte de atividades até me tornar escritor. Fiz CAL”.

E aí o Jô, numa autoprestidigitação mental, editou seu próprio entendimento das coisas, editou também seu discernimento sobre o mundo, e pôs na cabeça que o rapaz havia trabalhado como fiscal.

O rapaz explicou que havia 'feito CAL', enfatizou o verbo 'fazer'. Jô, com toda sua inteligência e cultura, não alcançou a tentativa de explicação do escritor. Tá certo que a frase trazia ambiguidade sonora. Mas Jô desandou a fazer piadinhas sobre o fato de Vitor ter trabalhado como fazedor de cal, sem deixar que o outro se explicasse.

Educadamente, Rodrigues, acho, não quis colocar o ícone do humor numa saia justa e acabou desistindo de explicar o que queria dizer com o 'fiz CAL'. Eu do meu lado, imaginei que poderia ser alguma escola, algum curso. Joguei no google para saber do que se tratava, e descobri a CASA DAS ARTES DE LARANJEIRAS (CAL), no Rio de Janeiro.

Acho que o escritor se referia a isso. Gosto do Jô, o admiro pela inteligência e humor. Mas ele viaja demais ao redor do próprio umbigo. Há nele lances incríveis de humildade intelectual, e surtos homéricos de vaidade e egolatria.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Fracasso e fulgor em Exercícios ilusórios



Em 1976, o poeta, es­critor e microempresário Osvaldo Rodri­gues já tinha poemas publicados. Em seguida vieram os livros: Voo singular (1979), Mascando esperanças com dentes de vidro (1983) e Fô­le­go (1985). Trinta e cinco anos depois, ele decidiu ampliar seu campo de criação e acaba de lançar o primeiro romance, Exercícios ilusórios (Ficções, 2011, 112 páginas, R$ 34,90).

O romance narra as peripécias de Ludoman Orni, homem de nome sugestivo, que deixa sua vida burocrática num escritório de vendas de produtos médico-hospitalares para vender ilusões.

A premissa é boa, e a primeira parte do romance consegue passar uma ótima impressão. Ludoman ainda trabalha como vendedor desses produtos enquanto se exercita na arte de iludir, partindo da elaboração de textos ilusórios. A ideia é fazer nascer dali uma realidade.

O real nisso tudo é que a literatura vende ilusões. Além disso, todos sabemos que a palavra é a matéria-prima de muitos produtos, não só da arte, mas da política e da publicidade também, só para citar os exemplos mais óbvios.

A medicina é outra que usa bastante a palavra para vender produtos ilusórios. Os médicos são grandes mestres do verbo como instrumento de eficácia na embromação de pacientes. Tudo isso é suscitado como debate e sugerido na escrita de Rodrigues.

Dividido em duas partes, ainda na primeira, ao se exercitar, Ludoman escreve uma série de textos que dão vida ao acervo de ilusões. No primeiro teste, por exemplo, ele oferece um par de óculos a um homem, convencendo-o de que são lentes mágicas, por meio das quais podia-se ver o pensamento da pessoas.

O homem então aceita usar o produto e acredita estar realmente vendo o que as pessoas pensam. É ou não é coisa típica da publicidade? Rodrigues consegue brincar com essas situações. Aqui, seu texto tem uma pegada de HQ, de animação, e um ritmo que aproxima sua prosa da poesia.

Rodrigues consegue também contornar os traços de Lu­doman com certo grau de humanidade. Mas o protagonista está só, nesta jornada. Os outros personagens que aparecem na trama são apenas fantoches, e o próprio Ludoman, muitas vezes, parece ser governado por uma mão pesada demais.

Mister Maker

Na segunda parte, quando Ludoman sai do emprego para se dedicar a vender ilusões, a narrativa desanda um pouco. A proposta de romance que se espera parece não se fechar. Tudo fica muito liso e leve. Há baixa tensão romanesca, o drama é pouco e o desfecho em cada capítulo não consegue dar conta do recado.

O autor parece ter forçado demais a barra de romper com as normas estabelecidas e esticou a criatividade sem se ater aos feixes de procedimentos que dariam a tal tensão. Uma história atrás da outra, saindo linearmente, e os personagens seguem como marionetes. O salto de um episódio a outro e o clique do clímax são fortemente marcados.

Lembra um pouco a atuação do Mister Maker, da Dis­co­very Kids. Quando abre o programa, Mister Maker, está, por exemplo, tomando um sorvete, que cai no chão, e ele lo­go se prontifica a inventar um sorvete de mentirinha. Mais ou menos nessa toada, Ludoman acende o cérebro para as ilusões.

Por outro lado, se levarmos em conta a proposta de prosa, de um exercício de narrativa, é importante atentar para o rit­mo e a dança das palavras na tessitura das cenas. E é aí que vale a leitura de Exercícios ilusórios.

O romance trata da fé, principalmente da boa fé e da capacidade de acreditar das pessoas. Há um jogo interessante entre fantasia e realidade, arte e vida prática. As ilusões giram em torno de carros, mulheres e futebol. Além disso, faz uma severa crítica ao sistema de vida construído pelo Ocidente, em que a publicidade comanda tudo e o mercado se alimenta de ilusão e desejo.

Joystick cerebral

O texto também é uma grande brincadeira. Os momentos ilusórios na maioria das vezes são os mais felizes, como nos fazem acreditar as engrenagens publicitárias. Mas, como todo produto, a ilusão também tem seu tempo útil. Neste sentido, Exercícios ilusórios são histórias de fracasso entrecortadas por relances de alegria e fulgor.

Um exemplo é a história do homem que comprou a ilusão de ter um carro importado. Conseguiu fazer um test drive num de verdade e acabou, no trânsito louco, salvando o dono de um importado também verdadeiro. Na crise e no choque de se ver diante da morte e ser salvo por um triz, o dono doou o carro para o comprador de ilusão.

Logo, são histórias reais fantasiadas, como se no meio do caminho, em vez de uma pedra, houvesse um pirlimpimpim: uma criança por alguns minutos se apodera do joystick cerebral do adulto. São exercícios ilusórios, na mesma proporção em que surgem como exercícios literários.

No caso do carro importado, claro, uma sequência de mau tempo, com uma mãozinha de Ludoman, se encarrega de pôr abaixo a ilusão do rapaz. Se por um lado, o romance parece um meio fracasso de romance, por outro, parece haver, no lugar do fracasso, uma proposta diferente, em que a brincadeira é o que vale. O exercício acaba sendo o resultado final.

Musicalidade

O próprio nome Ludoman quer dizer “brincalhão”, para lembrar um termo que já usei em outro texto ('ludo', do latim, ‘jogo’, ‘divertimento’, daí 'lúdico', e 'man', do inglês, 'homem'). E a maior brincadeira está no jogo com as palavras.

Neste sentido, a prosa de Ro­drigues murmureja como água de córrego descendo pe­quenas cascatas. O trocadilho também vale, por que há um quê de cascata nas histórias con­tadas, há certo grau de bro­ma consciente no jogo narrativo.

Rodrigues usou e abusou do rebimbo das palavras. Tudo é motivo para ressoar as sílabas. Para o narrador, é uma grande diversão narrar. É neste sentido que ele se assemelha a outro lúdico, o cubano Cabre­ra Infante. “Levi ligou para a casa...”, “A vítima, o velho, es­tava a salva...”, “abriu o grande envelope branco” são exemplos mínimos dessa aliteração.

Mas há também os exemplos macros de frases inteiras, sentenças inteiras, parágrafos que buscam o recurso poético das frases bailarinas ou dos trocadilhos. “Fora incumbido, em uma de suas tarefas, de en­tregar uma dentadura, já pronta, em um consultório odontológico. Antes, no entanto, deu uma rápida passada em sua casa para fazer uma boquinha.”

O autor provavelmente diria “que se dane a tensão”. A literariedade aqui é um lance lúdico do prazer de imaginar e criar. É o homo ludus, de Cortázar, o Ludoman, de Rodrigues, conforme sugere na abertura de um dos episódios, com um texto ritmado e pleno de musicalidade:

“Era isto: palavras fosforescentes. Aquelas que, impressas, impressionam, atingem em cheio os olhos: a mágica percepção fulgurante, o fogo penetrando nas pupilas, as sílabas incendiando o cérebro, os sonhos saltando as órbitas. Transcrever as cores em palavras? Nada disso: imprimir cores e sentidos dispersos nas palavras outrora negras”. Eis a intenção poética.

Ou seja, há um sem número de razões para se ler o livro de Rodrigues. Na primeira parte, a estrutura lúdica também brinca com a ideia de laboratório. Todos os episódios, em que Ludoman apenas se exercita na arte de iludir o leitor, os personagens têm nome de animal, como se fossem cobaias.

Nessa brincadeira, o narrador não se esquece, sugestivamente, dos trocadilhos e simbologias encerrados nos no­mes e nas sequências de nomes ao longo dos textos: Passa­ri­nho, Formiga, Barata, Aranha, Leão, Lobo, Castor, entre tantos outros, como Camelo, que “tinha um amigo vendedor de planos de saúde, o Leitão.”

Lírico-etílico

A narrativa de Exercícios ilusórios também sugere a literatura como uma grande viagem da consciência social. Mas não pelos meios racionais, nem sóbrios. Os personagens bebem o tempo todo. A cada esquina de parágrafo há um convite para o próximo gole.

O romance está marinado de cerveja, oferecendo ao leitor um roteiro lírico-etílico de ilusões. Beber é para os seres imaginativos. Quem não tem essa capacidade, é melhor permanecer sóbrio. Eis a dica literária, apontando para a tabuleta, meio suja e empoeirada, no canto do bar imaginário: In vino veritas.

Mas em Exercícios ilusórios há também as pílulas verbais, as cápsulas de argumentos à au­toajuda, e as sentenças ex­pli­cativas que, outra vez, a­mea­çam o romance. “Corre­mos o tempo todo contra o tempo e, muitas vezes, contra nós mesmos”. Há uma série delas.

Para contrapor, o leitor pode se agarrar a outros trechos de densidades interessantes, como: “o passado não é mais do que sapatos pesados de solas gastas nos pés acima do chão impregnados de restos, ressentimentos, pesadelos que arrastamos.” Mesmo aqui, já poderia ter parado em restos. “Pesadelos que arrastamos” já é explicação.

Rodrigues é paranaense de Apucarana, mas mora em São Paulo, lugar propício para exercícios ilusórios.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, 17/07/2011)

domingo, 10 de julho de 2011

Uma fauna estranha

Desconfio, só desconfio e não posso comprovar nada, que existem muitos nomes de quem se acredita poeta só porque Carlos Drummond de Andrade disse que era. E todo mundo acredita. Ora, todo mundo também sabe que Drummond era um sentimental, em matéria de contato com as pessoas.

Era tímido, o contato físico era escasso. Carecia de uma inovação no modo de fazer-se afeiçoar, principalmente com quem nunca tinha visto na vida, mas que lhe enviava livros e mais livros. E a maneira que encontrou para estreitar seus laços de humanidade, de atenção ao outro, foi elogiando pipocos verbais.

Dessa maneira nasceu uma fauna estranha que se confunde a todo instante com os maiorais da literatura, da poesia brasileira. Blá.