Não é preciso muita observação para se perceber que o público de arte, qualquer que seja ela, sempre foi muito restrito. O que mais se consome no mundo da produção cultural são argumentos em linha de montagem, tal como são feitos os best-sellers e o cinema mais visto de modo geral, ou a música mais bem enquadrada no gosto majoritário (cuja receita é repetida à exaustão), observação esta que não traz o menor juízo depreciativo, diga-se de passagem.
O objeto de arte, seja ele um livro ou mesmo uma peça de teatro, um quadro, aquele objeto que prima pela unicidade e pelo caráter estético, forjado pela técnica numa linguagem específica, este é para poucos. É assim e sempre será. Para tal público, estudantes, professores e diletantes mais interessados, há um livro já antigo, mas muito importante para se entender o processo que separa o clássico do moderno e que, ao mesmo tempo, deu à arte a cara que ela tem hoje.
O livro em questão é Arte e Beleza na Estética Medieval (Record, 2010, 352 páginas, tradução de Mario Sabino), do italiano Umberto Eco, teórico, ensaísta e romancista apaixonado pelos assuntos da Idade Média e muito competente em qualquer um dos segmentos que escreve.
Hoje em dia é fácil defender a ideia segundo a qual a arte não tem outra finalidade que não seja aquela de ser ela mesma. Mas nem sempre foi assim. Quer dizer, este pensamento corrente não foi dominante desde o princípio da arte. Nem mesmo atualmente é possível sustentar o tempo todo o discurso sobre a arte como vazio de função.
Em seu livro, publicado originalmente em 1959, Eco estende uma espécie de tapete orgânico de teorias ou semiteorias que foram debatidas na Idade das Trevas. Aliás, este epíteto não cabe no universo das artes daqueles tempos, segundo o autor de O Nome da Rosa. “Se a história dessa época é cheia de sombras e contradições, a imagem do universo que transparece pelos escritos de seus teóricos é cheia de luz e otimismo.”
Teorias
De qualquer modo, na Idade Média, o que difere das produções atuais, principalmente no que se refere às artes plásticas, é que a arte não era voltada para o puro deleite, para a fruição sem pecado das letras, das imagens, dos sons. Na prática, tinha, antes, um valor associativo, uma funcionalidade.
Em compensação, pululavam esboços de teorias. Muitos dos quais chegavam a demonstrar uma clara preocupação com a fazer artístico, imprimindo uma tentativa de entendê-lo como categoria diferente das práticas ordinárias do dia a dia, fosse ele religioso ou científico.
Eco se refere a um sem número de tratados de diferentes naturezas especulativas, como a estética encontrada nos Libri Carolini, de Teodósio de Orléans, que primava pela característica da visibilidade, pelos traços da arte figurativa. “Esse texto está cheio de observações sobre obras de arte, vasos, estuques, pinturas e miniaturas, trabalhos de ourivesaria, que revelam o gosto refinado de seu autor, acompanhadas de passagens de amor pela poesia clássica, de que é rica a renascença carolíngia”, diz.
Mas esses achados eram apenas seixos no imenso mar de sacralidade em que estava metida a arte medieval. A estética estava atrelada ao ideal divino. O que era belo, era também verdadeiro e vinha de Deus, e só o que era belo podia se destacar no encaixe das formas artísticas.
Segundo Eco, as teorias medievais eram teorias da composição e não da expressão tal como se vê a produção artística desde o Renascimento. Se o Renascimento recupera algumas tendências da arte clássica grega, retoma as ideias de Platão sem o ranço do pensamento religioso impetrado por Santo Agostinho, percebe-se que a Idade Média foi mesmo um caldeirão de variedades à parte, mas também um calabouço da doutrina cristã, dentro do qual a arte pulsava atada a correntes místicas.
Miscelânea
A mentalidade medieval, diz Eco, não via a arte como força criadora do espírito. Aquilo feito pelos artesãos, com a finalidade prática de um acento, um instrumento da lida diária, também era visto como arte, sem uma distinção teórica entre uma coisa e outra. Essa pouca consciência do “especificamente artístico” levava os grandes figurões da época a cometer misturas de gosto incompatíveis aos padrões estéticos atuais.
Segundo o autor, os colecionadores da Idade Média “enchiam indiferentemente seus tesouros de obras de arte propriamente ditas e das mais absurdas curiosidades, como transparece por inventários semelhantes ao do tesouro do duque de Berry, contendo chifres de unicórnio, o anel de noivado de São José, cocos, dentes de baleia, conchas dos sete mares (...)”.
Para finalizar seu espanto, o pesquisador italiano comenta: “Frente a coleções de três mil objetos, entre os quais setecentos quadros, um elefante embalsamado, uma hidra, um basilisco, um ovo que um abade havia encontrado dentro de um outro ovo, e maná caído durante uma carestia, é mesmo de se duvidar da pureza do gosto medieval e da sua capacidade de distinguir entre belo e curioso, arte e teratologia.”
Umberto Eco parece não conseguir esgotar a diversidade de orientações estéticas, todas juntas e misturadas. Tenta classificá-las em diferentes categorias, que não a estética. Mas ao longo de seu texto, o leitor também percebe que as iluminações eram muitas.
Tanto é que ele faz questão de ressaltar que a cultura medieval tinha sensibilidade e reagia ao belo, sim. O que não tinha era senso estético apurado, vacilava entre várias mesclas de gosto. Por outro lado, essa variedade de sentidos, dentro da qual muitos artistas ou homens de letras tentavam criar suas teorias para explicar o fenômeno da produção artística, se tornariam bem mais tarde a fonte das tendências modernistas.
Para dimensionar seu real valor, a Idade Média criou autores como François Rabelais, por exemplo, que fez da cultura popular um manancial da criatividade estética, colocando às alturas categorias como o riso, o ridículo, o feio e o grotesco. No pensamento clássico, retomado no Renascimento, essa postura de valorizar a fealdade se tornaria impensável.
O máximo que se poderia chegar era à teoria aristotélica da unidade na variedade, também vigente na estética medieval. “Também as coisas feias compõem-se na harmonia do mundo por via de proporções e contraste.” Mas a partir de Victor Hugo, Baudelaire, entre outros criadores já no século XIX, puxados por um fio de transgressão de homens como Denis de Diderot, do século XVIII, muito do que se buscou estava no grotesco de Rabelais, autor de Pantagruel.
Heranças
Umberto Eco não chega a fazer essa análise, porque não é seu objetivo. Ele se restringe a um passeio filosófico e histórico sobre as categorias da beleza e os conceitos de arte na Idade Média, mostrando os principais pontos de discussão sobre o assunto, que se revela de uma vastidão fascinante, razão pela qual o autor é apaixonado pela época.
Seu livro abocanha a voraz Idade Média de maneira magistral, consciente de não esgotar o assunto. Segundo ele, a publicação mais importante e definitiva sobre a estética medieval é do francês Edgar de Bruyne, Etudes D'esthetique Medievale, de 1946, que, além do texto na língua original, há também uma edição em espanhol, de 1994, La Estética de la Edad Média.
Mesmo não sendo a Bíblia do assunto, Arte e Beleza na Estética Medieval é um grande guia para quem quer descobrir as raízes estéticas de nossa cultura ocidental, além de ser a publicação mais acessível. O livro vai dos místicos medievais ao hermetismo neoplatônico, já despontando no Renascimento.
Com ele, o leitor intui que da mesma forma que é mentira dizer que não havia sensibilidade na Idade Média também pode ser mentirosa a afirmação de que falta aos contemporâneos esta mesma sensibilidade. É claro que na base de tudo estão Platão e Aristóteles. Eles são indispensáveis para a compreensão de qualquer época.
Embora Eco não se estenda além dos muros medievais, ele aponta um dos autores da época mais representativos em termos de teorias estéticas que legariam ao mundo contemporâneo a pluralidade das categorias da beleza, Nicolau de Cusa, um dos pensadores que mais influenciaram o francês Blaise Pascal, que por sua vez deu à luz boa parte do conteúdo existencialista cristão e da estética romântica.
Nicolau de Cusa (1401 – 1464), que viveu no alvorecer do século XV, como disse Eco, foi um filósofo cristão neoplatônico bastante original em sua ideias e argumentos. Antes de ser a luz de Pascal, com seu conceito de douta ignorância, também exerceu forte influência sobre outro espírito transgressor do ‘anos de trevas’, que foi Giordano Bruno, queimado na fogueira santa em 1600.
A principal contribuição de Nicolau de Cusa à estética medieval, que sobreviveu ao Renascimento e aos dias de hoje, com novas roupagens, foi a ideia de polidimensionalidade do real como visão de mundo. Segundo Eco, esta estética se contrapõe à clássica como estética da expressão, e desse modo se opõe também às várias correntes medievais que se contentavam com a ideia de composição.
Sua maneira de captar as coisas do mundo, sem deixar de acreditar em Deus, sem descartar o divino é algo fabuloso. “Em Nicolau de Cusa”, diz Eco, “agitam-se novos pressentimentos, o cosmo rompe-se em mil possibilidades, e o papel do homem colore-se de uma inquietude que não o abandonará mais.”
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)
Serviço
Autor: Umberto Eco
Editora: Record, 2010, 352 páginas
Gênero: Estética
Preço: R$ 47,90