sábado, 30 de abril de 2011

O herói na tumba: Ernesto Sabato morreu

Ernesto Sabato (1911 - 2011)

Não gosto de falar de autores que não costumo ler. Do argentino Ernesto Sabato, só li O escritor e seus fantasmas e Sobre heróis e tumbas. Este, um belo romance, longo, às vezes cansativo, mas representativo. Talvez eu não o tenha lido com muita coragem (é preciso coragem para ler?).

Lembro-me de muitas passagens do livro, de gente entrando e saindo de lugares, mas a maior lembrança é quando alguém, talvez o narrador, cita o nome de um jogador argentino que havia criado a bicicleta, aquela jogada de lance genial que aqui dizemos ter sido inventada por Leônidas da Silva.

Não me lembro em que página está essa passagem em Sobre heróis e tumbas, mas acho que foi ali que parei de ler.

Sabato morreu aos 99 anos, entre sexta e este sábado, 30 (faria 100 anos em 24 de junho). É considerado um dos maiores autores do século 20. Gostaria de lê-lo mais.

Em O escritor e seus fantasmas, o autor argentino diz:

“A condição mais preciosa do criador é o fanatismo. Tem de ter uma obsessão fanática, nada deve antepor-se à sua criação, deve sacrificar qualquer coisa a ela. Sem esse fanatismo nada de importante se pode fazer.”

Sobre a limitação e a força da literatura, nesse livrinho para lá de interessante sobre o ofício de escrever, Sabato também diz:

“Bastam umas poucas notas para que Debussy crie uma atmosfera sutil e inefável que um escritor não conseguirá jamais, qualquer que seja o número de páginas que escrever. Todo escritor conhece esse desalento, essa tristeza que o invade quando sente as limitações de sua arte.”

terça-feira, 26 de abril de 2011

Monteiro Lobato, o racista

Monteiro Lobato (1882 - 1948)



A coluna da Mônica Bergamo, na Ilustrada (Folha de S. Paulo) de hoje traz a seguinte nota:



CONFISSÕES DE LOBATO



A revista 'Bravo!' publica em maio cartas inéditas do escritor Monteiro Lobato. ‘Um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos livres da peste da imprensa carioca -mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva’, escreveu em 1938 o escritor, censurado pelo governo por racismo.


Isso reacende a discussão sobre o racismo de Lobato, claro. Mas qualquer sujeito mais esclarecido que entende o significado do racismo já sabia que Monteiro Lobato era racista, como muita gente das letras contemporânea sua o era, como muita gente ainda hoje também o é. A diferença é que hoje se disfarça mais, e melhor.


O próprio Leituras já havia publicado o trecho de outra carta de Lobato, retirada do livro Abdias Nascimento: o griot e as muralhas, que, por sua vez, recortara de A vida Literária no Brasil – 1900 (José Olympio, 1975), de Brito Broca.


“... Num desfile, à tarde, pela horrível rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, perpassam todas as degenerescências, todas as formas e más formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português da maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. (...) Como concertar [sic] essa gente? Como sermos gente no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui na sua inconsciente vingança!”


Fogueira


Recentemente foi criada uma celeuma em torno de um livro de Lobato (Caçadas de Pedrinho), em que se defendia sua censura por ter conteúdo racista. Alguns defendiam a censura e outros a repudiavam. Mas nós leitores sabemos que o problema é um pouco mais complexo. Não se podem queimar livros assim, como se o racismo se resolvesse com medida tão ígnea.


O racismo cínico do qual os negros brasileiros são vítimas hoje, o racismo cujo discurso penetra a alma de muitos negros como apenas uma brincadeirinha de quem ‘também tem origem negra’, é filho legítimo, talvez neto, do racismo do século XIX e seu rastro pregresso, sentimento de superioridade (por ser branco) que Lobato nutria sem sombra de dúvida.


Mas Lobato está morto como pessoa. O que permanece vivo é sua obra, e se há ali racismo, do ponto de vista do combate diário do discurso racista, pouco importa. É uma obra magnífica, como também é genial a obra de Jorge Luis Borges, outro racista sem igual, que não gostava dos judeus, nem dos negros, nem de ninguém que não tivesse sua linhagem ariana.


Em 2008, se não me engano, a própria revista Bravo! publicou uma matéria sobre Borges, em que havia a declaração dele de que os negros não sabiam criar, não tinham realizado nada de nada na história, e que, portanto, os negros não o interessavam.


Se isso não é pôr abaixo qualquer capacidade ou poder de realização dos negros, se isso não é, de igual modo, ignorar o processo histórico de contato dos africanos com a linguagem ocidental e as técnicas de produção do conhecimento e de acesso ao conhecimento ocidental já produzido (sob o jugo da escravidão, alijados durante séculos desse acesso), aí, realmente, não se sabe o que é negar o negro e sua cultura, e, então, Borges, além de gênio literário, é também um santo.


O problema é que, no caso de Lobato, querem, em vez dele (porque já morreu) colocar na fogueira sua obra, sob a alegação de que é racista. Eu, particularmente, não acho necessário. Em minhas leituras, desconfio que o autor brasileiro que mais admiro também era racista (quer dizer, exercia um tipo de racismo que rebaixava apenas os negros), João Guimarães Rosa.


Em todo caso, Lobato era racista, sim. Sua obra apresenta características esclarecedoras a esse respeito (não ouso citar nada aqui porque não tenho em mãos exemplares de seus livros). Mas minha filha (que hoje tem três anos) vai lê-lo, vai saber como se construiu o racismo brasileiro lendo as sutilezas do discurso racista em Lobato.

terça-feira, 19 de abril de 2011

É o racismo, estúpidos!

José Vicente


Abaixo um artigo de José Vicente, reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares, criada em 2003. Para se ver o fosso da diferença entre o que há aqui e nos Estados Unidos, lá a primeira universidade feita pelos negros para os negros e minorias é a Howard, de 1867.


Mas o assunto no artigo de José Vicente é outro, publicado na Folha de S. Paulo de hoje, é sobre o racismo cínico que impera no Brasil. Nossa vantagem é que nem todos os brancos sofrem desse mal.


No caso de gente como Bolsonaro e sua trupe, não há outra denominação do que a de racistas e preconceituosos (como se alguma lasca do cérebro faltasse). É o tipo que deve ser veementemente combatido toda vez que vier com asneiras. Basta!



"É o racismo, estúpidos!



JOSÉ VICENTE




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O racismo é perigosamente destrutivo e enganador; tanto quanto repudiá-lo, também é indispensável combatê-lo sem trégua e sem piedade
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Dez anos depois da primeira Conferência Mundial contra o Racismo e a Xenofobia de Durban, África do Sul, as mazelas e os perigos do racismo acenderam a luz vermelha e a ONU, instituindo 2011 como o Ano Internacional dos Afrodescendentes, volta a conclamar a comunidade de nações a se debruçar sobre os equívocos e a ineficiência das políticas antirracistas, por conta do recrudescimento dos níveis de racismo e discriminação racial contra os negros no mundo.


Recentes bananas oferecidas aos jogadores brasileiros Neymar e Roberto Carlos, as agressões verbais, os sons imitativos de macacos e as vaias das torcidas nas praças esportivas contra jogadores negros dão a dimensão da gravidade da situação, obrigando a Fifa e órgãos ligados ao esporte a tomar medidas severas para prevenção, punição e combate ao racismo, dentro e fora dos gramados.


Surrealismo, ambiguidade, hipocrisia, cinismo, desfaçatez, indiferença e tantos outros adjetivos jorram na literatura quando se analisa a tão vilipendiada trajetória do negro no Brasil. Todos apontam o racismo e ninguém consegue encontrar um racista. Junta-se a eles, a partir de agora, a estupidez.


Estúpido, este foi o adjetivo com que o líder do governo na Câmara, Cândido Vaccarezza (PT/SP), definiu seu colega Jair Bolsonaro (PP/ RJ), por ocasião de suas maldades racistas e preconceituosas contra a cantora negra Preta Gil e os homossexuais em geral por meio de veículos de comunicação de massa.


O adjetivo em questão, seguramente, pode ser estendido a seus colegas congressistas Jaime Campos (DEM/ MT), que se referiu ao ministro negro do STF, Joaquim Barbosa, como "moreno escuro", por ter esquecido seu nome, Marcos Feliciano (PSC/SP), que responsabilizou a África e os negros africanos por todos os males do mundo, e ao senador Demóstenes Torres (DEM/GO), que, no plenário do STF, disse que a mulher negra gostava de ser seviciada pelo senhor.


Como inocentes úteis, tais nada inocentes parlamentares, protegidos pela impunidade, destilam em praça pública os venenos que reservavam para ambientes privados.


Flertando com os veículos de comunicação, são a fina e rejuvenescida flor daquela corrente que faz um mau uso do direito de expressão para fins pessoais inconfessáveis, colocando o mandato popular a fomentar, voluntária ou involuntariamente, mas de modo igualmente irresponsável, o ódio racial.


Como a resultante dos estúpidos é a estupidez, a retórica dissimulada em ideia livre e democrática é, na verdade, a correia de transmissão para os também estúpidos integrantes das gangues organizadas que, em São Paulo, no ambiente cibernético e à luz do dia, pregam e praticam a perseguição, a agressão e a eliminação de negros, de judeus e de homossexuais.


É o combustível que encoraja os estúpidos das forças policiais, que, na Bahia, conforme noticiou esta Folha, dizimam a juventude negra brasileira. É o estímulo final aos seguranças de shopping centers e supermercados de grife, que vigiam os negros nas passarelas e batem em sua caras nas salas de segurança e em estacionamentos.


O racismo é perigosamente destrutivo e sutilmente enganador. Ele tateia sutilmente pelas frestas e se mistura sinuosamente como naturalidade cotidiana; tanto quanto repudiá-lo, é indispensável combatê-lo sem trégua e sem piedade.


Sem diminuí-lo e sem ignorá-lo. A ONU e a Fifa estão corretas, assim como o deputado Vaccarezza. É o racismo, estúpidos!



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JOSÉ VICENTE, advogado, mestre em administração e doutorando em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba, é reitor da Faculdade Zumbi dos Palmares."

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A Hora dos Assassinos - A missão da poesia é despertar

Recentemente saiu no Brasil um ensaio biográfico de Edmund White sobre o poeta francês Arthur Rimbaud (1854 – 1891), intitulado Rimbaud – a vida dupla de um rebelde (Companhia das Letras, 2010, tradução de Marcos Bagno). Mas a dica só fica completa se o leitor voltar um pouco no tempo e se lembrar de outro ensaio escrito pelo norte-americano Henry Miller (1891 – 1980), aquele mesmo de Nexus, Plexus e outros romances para lá de polêmicos pela linguagem de cunho escandaloso, dizem alguns.

O livro em questão é A Hora dos Assassinos: um estudo sobre Rimbaud, escrito em 1956, publicado no Brasil pela L&PM (tradução de Milton Persson, 2004). Nesse livreto de 136 páginas, Miller abre uma pequena ferida nos brios da modernidade que se conhece hoje e que na década de 1950 dava seus primeiros toques de surtos coletivos, principalmente com a Guerra Fria e a então recente explosão da bomba atômica sobre Hiroshima e Nagasaki.

Os tempos pareciam e ainda parecem (até o fim?) ser mesmo dos assassinos. A era dos poetas, da mente criativa, já tinha ido para os ares. É disso que trata o livro, enfatizando a identidade total de Miller com Rimbaud. A única parte chata é o fato de o autor se jogar a toda hora diante da luz do enfant terrible francês para sugerir que ele, Miller, era tão gênio quanto, por isso mesmo um incompreendido tal como o fora Rimbaud na sua vida conturbada.

Não que não fosse. Miller foi mesmo um autor genial, nascido no ano em que morria Rimbaud, com prosa capaz de arrebatar leitores de tudo quanto é nível e influenciar gerações. E talvez sua obra nem esteja tão ligada assim a Rimbaud, em termos de influência, a julgar pelo que diz em A sabedoria do coração (L&PM, 1986, tradução de Lya Wyler):

“Examino com assiduidade o estilo e a técnica daqueles que uma vez admirei e cultuei (...). Imitei todos os estilos na esperança de descobrir a chave do segredo torturante da arte de escrever (...). Eu fracassei. Percebi que não era nada. (...). Foi nesse ponto, em meio à estagnação do mar dos Sargaços, por assim dizer, que realmente comecei a escrever. Comecei do nada, lançando tudo ao mar, mesmo aqueles a quem mais amava.”

Transgressão

Voltando ao magnífico A Hora dos Assassinos, o protesto de Miller, em meio à homenagem a Rimbaud, numa salada de autoapreciação, é o fato de os poetas não terem mais a voz ouvida por ninguém. Nem mesmo o mestre da modernidade teve a audiência merecida em vida. Quando Miller escreveu este ensaio, Rimbaud já tinha influenciado a poesia toda, mas ainda era apenas tacitamente que dominava o reino das palavras.

Segundo Miller, as críticas eram pontuadas pelo excesso que havia na vida e na obra do grande poeta, que na fúria criativa entre os 16 e 19 anos havia dado novo rumo à poesia. “Como boêmio, é boêmio demais; como poeta, é poético demais; como pioneiro, é pioneiro demais; como contrabandista de munições, é esperto demais, e assim por diante, etc. e tal. Tudo o que fez, fez bem demais – parece ser essa a reclamação contra ele.”

Rimbaud era assim mesmo. E também o era Miller. O que vale na leitura de A Hora dos Assassinos é isso, o grito de que a missão da poesia é despertar. Neste caso, a poesia ainda vale a pena. “Ser poeta era antigamente a vocação mais sublime; hoje é a mais fútil”, reclama Miller.

Ler White, que mostra Rimbaud como um grosseirão insolente, apesar de gênio, e Miller, que sugere que a literatura ainda vale a pena porque transgride justamente para atingir a humanidade comum, é o melhor dos mundos. (Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Uma aula de estética


Não é preciso muita observação para se perceber que o público de arte, qualquer que seja ela, sempre foi muito restrito. O que mais se consome no mundo da produção cultural são argumentos em linha de montagem, tal como são feitos os best-sellers e o cinema mais visto de modo geral, ou a música mais bem enquadrada no gosto majoritário (cuja receita é repetida à exaustão), observação esta que não traz o menor juízo depreciativo, diga-se de passagem.

O objeto de arte, seja ele um livro ou mesmo uma peça de teatro, um quadro, aquele objeto que prima pela unicidade e pelo caráter estético, forjado pela técnica numa linguagem específica, este é para poucos. É assim e sempre será. Para tal público, estudantes, professores e diletantes mais interessados, há um livro já antigo, mas muito importante para se entender o processo que separa o clássico do moderno e que, ao mesmo tempo, deu à arte a cara que ela tem hoje.

O livro em questão é Arte e Beleza na Estética Medieval (Record, 2010, 352 páginas, tradução de Mario Sabino), do italiano Umberto Eco, teórico, ensaísta e romancista apaixonado pelos assuntos da Idade Média e muito competente em qualquer um dos segmentos que escreve.

Hoje em dia é fácil defender a ideia segundo a qual a arte não tem outra finalidade que não seja aquela de ser ela mesma. Mas nem sempre foi assim. Quer dizer, este pensamento corrente não foi dominante desde o princípio da arte. Nem mesmo atualmente é possível sustentar o tempo todo o discurso sobre a arte como vazio de função.

Em seu livro, publicado originalmente em 1959, Eco estende uma espécie de tapete orgânico de teorias ou semiteorias que foram debatidas na Idade das Trevas. Aliás, este epíteto não cabe no universo das artes daqueles tempos, segundo o autor de O Nome da Rosa. “Se a história dessa época é cheia de sombras e contradições, a imagem do universo que transparece pelos escritos de seus teóricos é cheia de luz e otimismo.”

Teorias

De qualquer modo, na Idade Média, o que difere das produções atuais, principalmente no que se refere às artes plásticas, é que a arte não era voltada para o puro deleite, para a fruição sem pecado das letras, das imagens, dos sons. Na prática, tinha, antes, um valor associativo, uma funcionalidade.

Em compensação, pululavam esboços de teorias. Muitos dos quais chegavam a demonstrar uma clara preocupação com a fazer artístico, imprimindo uma tentativa de entendê-lo como categoria diferente das práticas ordinárias do dia a dia, fosse ele religioso ou científico.

Eco se refere a um sem número de tratados de diferentes naturezas especulativas, como a estética encontrada nos Libri Carolini, de Teodósio de Orléans, que primava pela característica da visibilidade, pelos traços da arte figurativa. “Esse texto está cheio de observações sobre obras de arte, vasos, estuques, pinturas e miniaturas, trabalhos de ourivesaria, que revelam o gosto refinado de seu autor, acompanhadas de passagens de amor pela poesia clássica, de que é rica a renascença carolíngia”, diz.

Mas esses achados eram apenas seixos no imenso mar de sacralidade em que estava metida a arte medieval. A estética estava atrelada ao ideal divino. O que era belo, era também verdadeiro e vinha de Deus, e só o que era belo podia se destacar no encaixe das formas artísticas.

Segundo Eco, as teorias medievais eram teorias da composição e não da expressão tal como se vê a produção artística desde o Renascimento. Se o Renascimento recupera algumas tendências da arte clássica grega, retoma as ideias de Platão sem o ranço do pensamento religioso impetrado por Santo Agostinho, percebe-se que a Idade Média foi mesmo um caldeirão de variedades à parte, mas também um calabouço da doutrina cristã, dentro do qual a arte pulsava atada a correntes místicas.

Miscelânea

A mentalidade medieval, diz Eco, não via a arte como força criadora do espírito. Aquilo feito pelos artesãos, com a finalidade prática de um acento, um instrumento da lida diária, também era visto como arte, sem uma distinção teórica entre uma coisa e outra. Essa pouca consciência do “especificamente artístico” levava os grandes figurões da época a cometer misturas de gosto incompatíveis aos padrões estéticos atuais.

Segundo o autor, os colecionadores da Idade Média “enchiam indiferentemente seus tesouros de obras de arte propriamente ditas e das mais absurdas curiosidades, como transparece por inventários semelhantes ao do tesouro do duque de Berry, contendo chifres de unicórnio, o anel de noivado de São José, cocos, dentes de baleia, conchas dos sete mares (...)”.

Para finalizar seu espanto, o pesquisador italiano comenta: “Frente a coleções de três mil objetos, entre os quais setecentos quadros, um elefante embalsamado, uma hidra, um basilisco, um ovo que um abade havia encontrado dentro de um outro ovo, e maná caído durante uma carestia, é mesmo de se duvidar da pureza do gosto medieval e da sua capacidade de distinguir entre belo e curioso, arte e teratologia.”

Umberto Eco parece não conseguir esgotar a diversidade de orientações estéticas, todas juntas e misturadas. Tenta classificá-las em diferentes categorias, que não a estética. Mas ao longo de seu texto, o leitor também percebe que as iluminações eram muitas.

Tanto é que ele faz questão de ressaltar que a cultura medieval tinha sensibilidade e reagia ao belo, sim. O que não tinha era senso estético apurado, vacilava entre várias mesclas de gosto. Por outro lado, essa variedade de sentidos, dentro da qual muitos artistas ou homens de letras tentavam criar suas teorias para explicar o fenômeno da produção artística, se tornariam bem mais tarde a fonte das tendências modernistas.

Para dimensionar seu real valor, a Idade Média criou autores como François Rabelais, por exemplo, que fez da cultura popular um manancial da criatividade estética, colocando às alturas categorias como o riso, o ridículo, o feio e o grotesco. No pensamento clássico, retomado no Renascimento, essa postura de valorizar a fealdade se tornaria impensável.

O máximo que se poderia chegar era à teoria aristotélica da unidade na variedade, também vigente na estética medieval. “Também as coisas feias compõem-se na harmonia do mundo por via de proporções e contraste.” Mas a partir de Victor Hugo, Baudelaire, entre outros criadores já no século XIX, puxados por um fio de transgressão de homens como Denis de Diderot, do século XVIII, muito do que se buscou estava no grotesco de Rabelais, autor de Pantagruel.

Heranças

Umberto Eco não chega a fazer essa análise, porque não é seu objetivo. Ele se restringe a um passeio filosófico e histórico sobre as categorias da beleza e os conceitos de arte na Idade Média, mostrando os principais pontos de discussão sobre o assunto, que se revela de uma vastidão fascinante, razão pela qual o autor é apaixonado pela época.

Seu livro abocanha a voraz Idade Média de maneira magistral, consciente de não esgotar o assunto. Segundo ele, a publicação mais importante e definitiva sobre a estética medieval é do francês Edgar de Bruyne, Etudes D'esthetique Medievale, de 1946, que, além do texto na língua original, há também uma edição em espanhol, de 1994, La Estética de la Edad Média.

Mesmo não sendo a Bíblia do assunto, Arte e Beleza na Estética Medieval é um grande guia para quem quer descobrir as raízes estéticas de nossa cultura ocidental, além de ser a publicação mais acessível. O livro vai dos místicos medievais ao hermetismo neoplatônico, já despontando no Renascimento.

Com ele, o leitor intui que da mesma forma que é mentira dizer que não havia sensibilidade na Idade Média também pode ser mentirosa a afirmação de que falta aos contemporâneos esta mesma sensibilidade. É claro que na base de tudo estão Platão e Aristóteles. Eles são indispensáveis para a compreensão de qualquer época.

Embora Eco não se estenda além dos muros medievais, ele aponta um dos autores da época mais representativos em termos de teorias estéticas que legariam ao mundo contemporâneo a pluralidade das categorias da beleza, Nicolau de Cusa, um dos pensadores que mais influenciaram o francês Blaise Pascal, que por sua vez deu à luz boa parte do conteúdo existencialista cristão e da estética romântica.

Nicolau de Cusa (1401 – 1464), que viveu no alvorecer do século XV, como disse Eco, foi um filósofo cristão neoplatônico bastante original em sua ideias e argumentos. Antes de ser a luz de Pascal, com seu conceito de douta ignorância, também exerceu forte influência sobre outro espírito transgressor do ‘anos de trevas’, que foi Giordano Bruno, queimado na fogueira santa em 1600.

A principal contribuição de Nicolau de Cusa à estética medieval, que sobreviveu ao Renascimento e aos dias de hoje, com novas roupagens, foi a ideia de polidimensionalidade do real como visão de mundo. Segundo Eco, esta estética se contrapõe à clássica como estética da expressão, e desse modo se opõe também às várias correntes medievais que se contentavam com a ideia de composição.

Sua maneira de captar as coisas do mundo, sem deixar de acreditar em Deus, sem descartar o divino é algo fabuloso. “Em Nicolau de Cusa”, diz Eco, “agitam-se novos pressentimentos, o cosmo rompe-se em mil possibilidades, e o papel do homem colore-se de uma inquietude que não o abandonará mais.”

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

Serviço


Autor: Umberto Eco


Editora: Record, 2010, 352 páginas


Gênero: Estética


Preço: R$ 47,90