A coluna da Mônica Bergamo, na Ilustrada (Folha de S. Paulo) de hoje traz a seguinte nota:
“CONFISSÕES DE LOBATO
A revista 'Bravo!' publica em maio cartas inéditas do escritor Monteiro Lobato. ‘Um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos livres da peste da imprensa carioca -mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva’, escreveu em 1938 o escritor, censurado pelo governo por racismo.”
Isso reacende a discussão sobre o racismo de Lobato, claro. Mas qualquer sujeito mais esclarecido que entende o significado do racismo já sabia que Monteiro Lobato era racista, como muita gente das letras contemporânea sua o era, como muita gente ainda hoje também o é. A diferença é que hoje se disfarça mais, e melhor.
O próprio Leituras já havia publicado o trecho de outra carta de Lobato, retirada do livro Abdias Nascimento: o griot e as muralhas, que, por sua vez, recortara de A vida Literária no Brasil – 1900 (José Olympio, 1975), de Brito Broca.
“... Num desfile, à tarde, pela horrível rua Marechal Floriano, da gente que volta para os subúrbios, perpassam todas as degenerescências, todas as formas e más formas humanas – todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a escravidão, vingaram-se do português da maneira mais terrível – amulatando-o e liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui para os subúrbios à tarde. (...) Como concertar [sic] essa gente? Como sermos gente no concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui na sua inconsciente vingança!”
Fogueira
Recentemente foi criada uma celeuma em torno de um livro de Lobato (Caçadas de Pedrinho), em que se defendia sua censura por ter conteúdo racista. Alguns defendiam a censura e outros a repudiavam. Mas nós leitores sabemos que o problema é um pouco mais complexo. Não se podem queimar livros assim, como se o racismo se resolvesse com medida tão ígnea.
O racismo cínico do qual os negros brasileiros são vítimas hoje, o racismo cujo discurso penetra a alma de muitos negros como apenas uma brincadeirinha de quem ‘também tem origem negra’, é filho legítimo, talvez neto, do racismo do século XIX e seu rastro pregresso, sentimento de superioridade (por ser branco) que Lobato nutria sem sombra de dúvida.
Mas Lobato está morto como pessoa. O que permanece vivo é sua obra, e se há ali racismo, do ponto de vista do combate diário do discurso racista, pouco importa. É uma obra magnífica, como também é genial a obra de Jorge Luis Borges, outro racista sem igual, que não gostava dos judeus, nem dos negros, nem de ninguém que não tivesse sua linhagem ariana.
Em 2008, se não me engano, a própria revista Bravo! publicou uma matéria sobre Borges, em que havia a declaração dele de que os negros não sabiam criar, não tinham realizado nada de nada na história, e que, portanto, os negros não o interessavam.
Se isso não é pôr abaixo qualquer capacidade ou poder de realização dos negros, se isso não é, de igual modo, ignorar o processo histórico de contato dos africanos com a linguagem ocidental e as técnicas de produção do conhecimento e de acesso ao conhecimento ocidental já produzido (sob o jugo da escravidão, alijados durante séculos desse acesso), aí, realmente, não se sabe o que é negar o negro e sua cultura, e, então, Borges, além de gênio literário, é também um santo.
O problema é que, no caso de Lobato, querem, em vez dele (porque já morreu) colocar na fogueira sua obra, sob a alegação de que é racista. Eu, particularmente, não acho necessário. Em minhas leituras, desconfio que o autor brasileiro que mais admiro também era racista (quer dizer, exercia um tipo de racismo que rebaixava apenas os negros), João Guimarães Rosa.
Em todo caso, Lobato era racista, sim. Sua obra apresenta características esclarecedoras a esse respeito (não ouso citar nada aqui porque não tenho em mãos exemplares de seus livros). Mas minha filha (que hoje tem três anos) vai lê-lo, vai saber como se construiu o racismo brasileiro lendo as sutilezas do discurso racista em Lobato.
4 comentários:
Gostei, Gilberto! Se Monteiro Lobato tivesse deixado panfletos e manifestos, aí sim seria uma grande problema a literatura dele. Pelas declarações vê-se que ele era mais tomado por aquela igorância educada e "natural" com que um branco olhava a si e ao mundo. Nós somos o hoje e fazemos o hoje, assim escolhemos carregar ou o racismo ou a Emília e as alegrias tão interessantes de Monteiro Lobato.
Isso mesmo, Webston! Abraço!
Lendo seu texto, me peguei pensando em que, a poucos dias assisti mais uma vez o filme "bastardos inglórios" e de forma leiga e deselegante talvez, me puz a comparar o ato de marcar os nazistas com algo que os identificasse diante de todos, com o não queimar as obras de M.Lobato. A geração a frente de nós saberá distinguir mais rápido e com mais êxito o coração e intensão oculta de cada escrito até a sua época. Parabéns pelo escrito!
Obrigado Abnaildo, por me seguir (tão diferente de perseguir, né, rs) e pelo comentário também. Extamante. Não quero que me proíbam de ler Mein Kampf. Não quero que a instituição me proíba. Quero eu mesmo ter o discernimento das coisas. Se a instituição, qualquer que seja ela (Estado ou Igreja, ou Família, neste caso ainda é respeitável uma espécie de sequestro de parte daquilo que a gente sempre imagina como liberdade até os 18 anos [figura de retórica], sei lá, porque são nossos pais) quiser fazer algo pelo bom andamento da sociedade, que faça campanhas, que crie lei capazes de corrigir os que não sabem conviver nessa sociedade, né. Se a pessoa escreveu um livro que ofende um povo, que esta pessoa e este livro passem pelo crivo da crítica (e até da lei). No caso de o livro de Lobato não entrar para lista do MEC, é um direito de o coordenador do programa argumentar que não aceita o livro, mas seus argumentos ficaram aquém. Contos Gauchescos, de Simões Lopes neto também estão carregados de racismo e negação do negro e do índio, com a voz do próprio narrador, oxalá do autor, mas sem ele não teríamos Grande Sertão: veredas, de Rosa, tal como tivemos. Enfim. Obrigado, mais uma vez! Grande abraço!
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