Segundo a escritora, jornalista e educadora carioca Rosiska Darcy de Oliveira, “nenhum espelho revela melhor a identidade que o exílio”. Talvez por isso, o primeiro texto de seu mais recente livro, Chão de terra (Rocco, 2010, 192 páginas), comece falando de uma mulher que volta às origens, depois de tanto tempo vivendo fora do Brasil.
O livro é uma coletânea de crônicas deliciosas em que a autora rememora o passado e avalia o presente, às vezes com um personagem narrando em terceira pessoa, às vezes retomando a narrativa confessional. Assim, ela vai costurando o tempo com as lembranças, vindo da infância até chegar a dias mais recentes, com um absoluto domínio do prosaico.
O interessante é que, ao fazer uma viagem para dentro de si mesma, a identidade revelada é de todos os contemporâneos. Não importa se já tenha vivido tanto quanto a autora nascida em 1944, ou seja, independente de o leitor ser jovem, uma ou outra história acaba batendo com o santo de quem lê.
O título Chão da terra recupera o velho mote mítico, segundo o qual, se tocarmos o chão com os pés nus, com as mãos ou qualquer parte do corpo, vamos resgatar o contato com a mãe Natureza e receber dela uma nova cota de vigor. O ato de tocar na madeira três vezes para isolar maus fluidos vem dessa ressonância mitológica desde Anteu.
Este era um gigante filho de Geia (ou Gaia), que recobrava as forças sempre que tocava na terra sua mãe. O herói Hércules lutou com Anteu e só o venceu depois de descobrir o truque e o suspender pela garganta até que o gigante morresse. Mas o ensinamento de que esse contato com a Natureza recobre forças continua.
Ironicamente, apesar da sabedoria popular, a recomendação dos pais ‘civilizados’ do interior e da capital é que as crianças não se afundem na terra da rua, nem dos quintais, não mergulhem na lama das chuvas, em brincadeiras aventurosas.
Nas grandes cidades, principalmente nos dias de hoje, essa recomendação é quase desnecessária, por falta de espaços e também porque se tem medo da violência de toda ordem. Neste caso, nem se adotassem tal filosofia, não se sentiriam confiantes de deliberar tal ato de liberdade a seus filhos.
Em todo caso, chafurdar na terra e brincar com os riscos causados pela Natureza é tudo que se gosta de fazer quando se vive uma infância ativa. Não era diferente com a menina que narra as crônicas nos primeiros textos do livro de Rosiska. Mas, sua mãe também a proibia de brincar na terra.
A proposta de Rosiska, ao começar justamente com o texto que leva o título do livro, reside nesse jogo de contradição (espaço geográfico, lugar da infância, terra natal, memória e espaço mítico). Dos aprendizados do chão também advém a lição dos sonhos.
Na crônica homônima, vê-se o encontro da mulher que viveu longe de seu passado e agora o reencontra. “Uma chuva banal num fim de tarde, um concerto de Rachmaninoff que ninguém tocou mas ela escutou, passos no chão molhado e, de repente, a vida, simplesmente a vida, como sempre deveria ser, e todo o resto nada mais que enganos.”
As lembranças de Rosiska fluem por esse caminho, chuviscando a memória de uma vida passada replena de acontecimentos que deram a ela a experiência necessária de afeto, de convivência e de comunicação. Em muitos outros textos vemos como trabalha a percepção infantil, em que a fantasia se alia à criatividade para criar fatos novos.
Nesses textos sobre a infância, Rosiska nos mostra como a criança cria outros modos de perceber a realidade adulta, que, por sua vez, é cheia de mentiras, de intenções dúbias. À medida que os anos passam para a autora, os textos acompanham a vida com outro olhar, numa nítida visão autobiográfica. Não sem antes o olhar sobre o meio ambiente, as questões sociais e trabalhistas e as relações humanas.
Aparências
Na crônica intitulada As turcas, por exemplo, a menina que narra fica fascinada pela cultura geral das vizinhas de quem a mãe dela quer manter distância. As turcas eram de uma “família libanesa, de imigração recente e pouco dinheiro, mas uma cultura ancestral resistente como os cedros.” Dessa relação conflituosa, a menina aprendeu o que era preconceito, mas também aprendeu a lidar com o diferente.
“Eu não sabia o que pensar das turcas, malditas na minha família, mas que ouviam músicas que me exaltavam e que aprendi a cantarolar”, diz a menina. Ela quis aprender a tocar piano com as vizinhas, mas sua mãe insistiu no veto, provocando brigas ruidosas que levaram as turcas a torceram o nariz também para a principal interessada.
“E foi assim que não toquei piano e desconfiei que minha família não gostava de gente, mesmo afável, que falava esquisito. O que redundou numa aprendizagem que me foi muito útil, já que na vida, com o passar do tempo, sempre nos transformamos nas turcas de alguém e, portanto, não me surpreendi quando, mesmo sendo afável, encontrei quem não gostasse de mim porque eu falava esquisito”, diz a menina, ou a mulher que se lembra de sua infância, cheia de aprendizados.
Além de ter um excelente texto, comprovado em suas crônicas e livros sobre sociologia da educação e em romances (regidos por outra cartilha narrativa), Rosiska tem muito o que ensinar pelo que viveu e como viveu. Estudou com Piaget, ao fazer doutorado em educação na Suíça, na Universidade de Genebra, e trabalhou com Paulo Freire.
Talvez tenha sido com esses mestres que aprendeu a se comprometer com a vida de um modo intenso. Hoje, Rosiska é atuante nas causas sociais, principalmente na área de educação e nas políticas de ações sociais. É presidente-executiva da ONG Rio Como Vamos, iniciativa que monitora e cobra a gestão municipal na cidade do Rio de Janeiro, e tem parcerias em várias outras cidades, onde se faz o mesmo, inclusive em Goiânia.
Ciúme
Em Chão de terra, suas crônicas não ficam apenas no terreno da memória. Do meio para o fim, aparecem reflexões interessantes sobre diversos temas, como o ciúme. Com clareza de espírito, a autora defende a tese de que mesmo hoje, em meio à liberalidade excessiva, o ciúme reina com domínios amplos sobre o sujeito.
“Querem me convencer de que o ciúme saiu de moda. Ao que parece, se fosse palpável estaria no museu, para o lenço de Desdêmona numa caixa de vidro iluminada.” Mas é tudo fingimento, diz a cronista. “Nasci com um detector secreto que capta desesperos surdos e mentiras bem guardadas”, diz.
“O ciúme não está em extinção”, observa. “Percebo a mulher que disfarça bem a angústia de comparar-se com outra que sabe ser mais bonita, e passa a festa toda com um jeito cool mas um olhar aflito, fazendo a ponte entre ela e seu namorado, adivinhando ou inventando o que vai na alma do sujeito, que, preocupado com o resultado do futebol, ignora a sedução ameaçadora que as mulheres bonitas exercem sobre as outras.”
E assim segue uma sucessão de crônicas que valem a leitura. Ao longo dos textos o leitor também pode se deleitar com as construções de frases bem ritmadas da autora. “As gaivotas planam elegantes, depois de um bater de asas aflito, sobre o mar de Copacabana.” Ou “Imóvel, meu balão pingava lágrimas de fogo sobre o teto da casa.”
No bojo das reflexões de Rosiska, há espaço para falar de amor, feminismo, literatura, artes em geral e identidade, onde mora o centro de sua atenção. Cada texto se lança ao leitor num viés de identidade, numa costura interessante entre consciência e situar-se no mundo. Bravo!
(Gilberto G. Pereira. Originalmente publicado na Tribuna do Planalto)
Serviço
Título: Chão de terra
Autora: Rosiska Darcy de Oliveira
Editora: Rocco, 2010, 192 páginas
Preço: R$ 28,00
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