Manoel de Barros não conquistou a crítica literária, ainda. Sua literatura não caiu nas graças dos acadêmicos, embora já haja trabalhos nesse sentido. Segundo ele, isso é o de menos, porque o que lhe interessa mesmo é o público leitor formado pela grande massa. O que ele quer é ser poeta popular, e isso ele já é.
Aliás, é muito mais. Manoel de Barros é hoje também um poeta de poetas. Não é para menos. Sua poesia põe de lado qualquer lembrança de leituras antigas, mesmo trabalhando os elementos mais primitivos do mundo. Tudo é novo, tudo se faz, num átimo, novidade. Ou quase tudo. Mas mesmo a popularidade entre o público leitor esperou uma caminhada de longos anos da poesia desse sulmatogrossense, que também é fazendeiro, nascido em 1916.
Seu primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado, foi publicado originalmente em 1937. De lá para cá, muitos outros cada vez mais poéticos e originais se seguiram. Mas só em meados de 1990 é que a editora Record o descobriu de fato e começou a recuperar sua obra, reeditando todos os livros, além dos inéditos subsequentes.
Talvez não por coincidência, essa ‘descoberta’ se deu logo após o jornalista e crítico literário José Castello publicar no jornal O Estado de S. Paulo uma matéria sobre o poeta do Pantanal, em 1996. Mais tarde, Castello, que também é editado pela Record, foi a Campo Grande fazer uma nova entrevista pessoalmente. Essas histórias ele conta num ensaio chamado “Retrato perdido no pântano”, do livro Inventário das Sombras.
Castello, acostumado às teias da Psicanálise, escreve um texto em que se perde para, ao mesmo tempo, procurar a si mesmo e o poeta que ele costumava ler com devoção. Enquanto viajava de avião ao Mato Groso do Sul, procurava antecipar o homem por trás da poesia, mas, até encontrá-lo de fato, o que via era um emaranhado de preconceitos.
Seguia rumo ao Pantanal entre a ansiedade de ver o artista e o receio de encontrar não mais que um caipira talentoso com as palavras, mas sem a menor ideia do que fazia. “Tentarei me agachar no quintal ao seu lado”, graceja o crítico. “Talvez esteja envolvido demais com suas galinhas”, conjetura. O que encontraria quando chegasse?, era a pergunta de Castello. “Eu esperava um homem curvado com calças arregaçadas.”
Mas não foi isso o que aconteceu. Ao chegar, Castello é recebido “por um sujeito que veste impecáveis calças sociais, camisa de linho, óculos modernos. Ele mora numa casa de arquitetura arrojada, ainda que discreta, espremida em espaços estreitos e bem planejados”, diz um jornalista perplexo e aliviado.
A quebra de expectativa de Castello entre a poesia que lia e o autor que esperava encontrar é mais ou menos a mesma experiência que o leitor tem ao ler Manoel de Barros, a cada poema. Os títulos já denunciam um caráter diferenciado de sua poesia, que faz muita gente compará-lo a Guimarães Rosa, de certa forma, equivocadamente.
Compêndio para uso dos pássaros (1960), Gramática expositiva do chão (1966), Concerto a céu aberto para solos de ave (1991), Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001) são exemplos de títulos de livros que já surgem como extensão poética dos versos encontrados lá dentro.
Laboratório
Em Poemas concebidos sem pecado, reeditado pela Record em 1999, para o leitor de hoje, é possível enxergar um futuro repleno de inquietação poética, que o autor ainda não sabe bem no que se tornaria, algo na base da transgressão moral e na contestação social, mas também no drible da gramática e do significado usual do verbo (a poesia arquitetada).
Mas uma coisa é certa e sabida. Neste livro, o poeta quer forjar a carga de sentimento, lembranças e invenções que, aos 21 anos, traz da recente infância. Todo escritor sabe que a primeira tradição do labor criativo são as reminiscências infantis. Manoel de Barros também tinha plena consciência disso.
Ele sabia que as lembranças de infância são um laboratório da escrita criativa, e com Poemas concebidos fez seu próprio laboratório. A frase do italiano Cesare Pavese, citada na orelha do livro de Barros, traduz essa intenção do fazer literário: “Não é belo ser criança, belo é, na velhice, lembrar do tempo em que éramos crianças.”
Enquanto morava no Rio de Janeiro para onde havia ido estudar Direito, Barros frequentava a Biblioteca Nacional, lia e escrevia. Foi em meio a noites alcoólicas e praias férteis que ele deu início a uma vida de escritura. Mas os costumes do campo, a lida diária, a vida (o trabalho, as brincadeiras de criança, as lendas, a saudade desse tempo), tudo está lá, como uma elaboração poética de sua infância.
Maria-pelego-preto é um aperitivo da poesia primeira de Barros, em que o leitor encontra a contestação, em meio à corrosiva dose de humor e desgraça, apenas um exemplo que fez Ismael Cardim dizer, num texto de apresentação do poeta: “A poesia de Manoel de Barros não induz ao sofrimento, embora nos agarre pelas tripas.”
Maria-pelego-preto, moça de 18 anos, era abundante de pêlos no pente.
A gente pagava para ver o fenômeno.
A moça cobria o rosto com um lençol branco e deixava pra fora só o pelego preto que se espalhava quase até pra cima do umbigo.
Era uma romaria chimite!
Na porta o pai entrevado recebendo as entradas...
Um senhor respeitável disse que aquilo era uma indignidade e um desrespeito às instituições da família e da Pátria!
Mas parece que era fome.
Ainda não está aí o salto mortal do verbo em transe, mas mantém-se intacta a crítica social, feita em 1937, que será vista em Gabriel García Márquez, matizes parecidos, com A Incrível e Triste História de Cândida Erendira e Sua Avó Desalmada, entre outros livros, e em O Baixio das Bestas, filme de Claudio Assis, de 2007.
Mais um exemplo da mesma verve é Antoninha-me-leva:
Outro caso é o de Antoninha-me-leva:
Mora num rancho no meio do mato e à noite recebe os vaqueiros tem vez de três e até quatro comitivas
Ela sozinha!
Um dia a preta Bonifácia quis ajudá-la e morreu.
Foi enterrada no terreiro com o seu casaco de flores.
Nessa noite Antoninha folgou.
Há muitas maneiras de viver mas essa de Antoninha era de morte!
Não é sectarismo, titio.
Também se é comido pelas traças, como os vestidos.
A fome não é invenção de comunistas, titio.
Experimente receber três e até quatro comitivas de boiadeiros por dia!
Desconhecedor
“Quando já maduro, Manoel enveredou pelo interior dos seres inúteis, dos lixos, dos ciscos e outras existências aparentadas com o homem”, diz Ismael Cardim. E é aí que as estripulias com a palavra começam a aparecer. “Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)”, escreve o poeta em O guardador de águas, de 1989.
“O esplendor da manhã não se abre com faca”, diz na primeira parte de O livro das Ignorãças, publicado originalmente em 1993. É um dos mais seminais de Barros, prontamente lembrado pelos leitores. “Poesia é voar fora da asa”, ensina o poeta, em cuja receita ainda é possível encontrar imperativos do tipo: “Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma”, ou “― Botar aflição nas pedras/ (Como fez Rodin).”
Nada menos ingênuo do que pensava Castello. Um poeta que se propõe a moldar o significado das palavras nesse nível, a ponto de fazer pedra se expressar que nem gente (prosopopeia mineral), não pode ser descartável como pó de prateleira. Tudo em sua poesia surge como num espanto. “O mundo não foi feito em alfabeto. Senão que/ primeiro é água e luz. Depois árvore. Depois/ lagartixas. Apareceu um homem na beira do rio.”
Embora antes também já houvesse versos tão inventivos quanto, O Livro das Ignorãças talvez seja o grande livro de Manoel de Barros, o que sistematizou seu simbolismo do chão e do mato, e o levaria para o estrelato. Aqui, a ignorância é o vazio, que por sua vez é o lugar da mente criativa, o espaço destinado a perguntas limpas de certezas e isento de grandezas impeditivas.
“Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.”
Mais adiante, uma lição absolutamente precisa de regressão para a compreensão da naturalidade das coisas:
“Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde,
no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em
nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato
sair na voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.”
Poeta e fazendeiro
Na linhagem da existência de Manoel de Barros está um nome muito conhecido dos leitores de tratados ditos sérios, aqueles que explicam os fenômenos sociais mais complexos. O economista renomado e político Roberto Campos, autor de A lanterna na popa, era seu primo. Tal como Campos, Barros também nasceu em Cuiabá, mas foi criado até a adolescência em terras sulmatogrossense.
Filho de fazendeiro, gozava de certos privilégios que outros pantaneiros não têm, ou seja, oportunidades. Seu pai o enviou para estudar na Faculdade de Direito de Niterói. Mas não frequentava as aulas. Em vez disso, ia para a Biblioteca Nacional. Chegou a se formar e se tornar advogado, mas logo sentiu o drama da falta de vocação.
“O primeiro sinal desse desarranjo veio no dia em que, diante de um juiz togado, quando se preparava para começar uma defesa, vomitou em cima do processo”, reconta Castello, em Inventário das Sombras. Barros então desistiu e, já envolvido coma poesia, foi tentar a sorte de empresário, atividade em que se deu muito bem, mas também não era o que queria fazer.
Conforme ele mesmo conta em Paixão pela palavra, uma série documental da TV Futura, ainda na casa dos 20 anos tornou-se sócio na imobiliária de um médico amigo seu. Mas depois os dois venderam a empresa valorizada, e a parte de Manoel de Barros foi gasta em viagens. Foi quando passou um ano em Nova York estudando pintura e cinema. Torrou todo o dinheiro e voltou para o Rio.
Sua propensão para a boemia já delineava uma história de fracassos. Mas a essa altura, ao seu lado, já havia uma mulher, sua companheira de toda a vida. “Se eu não tivesse me casado com a Estela, teria morrido na sarjeta”, lembra o poeta. É que nessa época de juventude sem regras, o pai de Barros morreu em Campo Grande, e o poeta e boêmio quis vender tudo no Mato Grosso do Sul e continuar no Rio de Janeiro, mas Estela disse ‘não’. E os dois foram administrar a herança.
Hoje, aos 94 anos, Barros é quem mais vende livros de poesia no país. É tema do documentário Só dez por cento é mentira, de Pedro Cezar, dá várias entrevistas e é valorizado pela nova geração de poetas como Fabrício Carpinejar, filho do grande poeta gaúcho Carlos Nejar, e o goiano Wesley Peres, cuja dissertação de mestrado na Universidade Federal de Goiás foi sobre ele.
Em 2010, a editora Leya Brasil comprou os direitos autorais que pertenciam à Record. O resultado é o relançamento de toa sua obra individualmente e um livro intitulado Poesia Completa.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em março de 2010)
Aliás, é muito mais. Manoel de Barros é hoje também um poeta de poetas. Não é para menos. Sua poesia põe de lado qualquer lembrança de leituras antigas, mesmo trabalhando os elementos mais primitivos do mundo. Tudo é novo, tudo se faz, num átimo, novidade. Ou quase tudo. Mas mesmo a popularidade entre o público leitor esperou uma caminhada de longos anos da poesia desse sulmatogrossense, que também é fazendeiro, nascido em 1916.
Seu primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado, foi publicado originalmente em 1937. De lá para cá, muitos outros cada vez mais poéticos e originais se seguiram. Mas só em meados de 1990 é que a editora Record o descobriu de fato e começou a recuperar sua obra, reeditando todos os livros, além dos inéditos subsequentes.
Talvez não por coincidência, essa ‘descoberta’ se deu logo após o jornalista e crítico literário José Castello publicar no jornal O Estado de S. Paulo uma matéria sobre o poeta do Pantanal, em 1996. Mais tarde, Castello, que também é editado pela Record, foi a Campo Grande fazer uma nova entrevista pessoalmente. Essas histórias ele conta num ensaio chamado “Retrato perdido no pântano”, do livro Inventário das Sombras.
Castello, acostumado às teias da Psicanálise, escreve um texto em que se perde para, ao mesmo tempo, procurar a si mesmo e o poeta que ele costumava ler com devoção. Enquanto viajava de avião ao Mato Groso do Sul, procurava antecipar o homem por trás da poesia, mas, até encontrá-lo de fato, o que via era um emaranhado de preconceitos.
Seguia rumo ao Pantanal entre a ansiedade de ver o artista e o receio de encontrar não mais que um caipira talentoso com as palavras, mas sem a menor ideia do que fazia. “Tentarei me agachar no quintal ao seu lado”, graceja o crítico. “Talvez esteja envolvido demais com suas galinhas”, conjetura. O que encontraria quando chegasse?, era a pergunta de Castello. “Eu esperava um homem curvado com calças arregaçadas.”
Mas não foi isso o que aconteceu. Ao chegar, Castello é recebido “por um sujeito que veste impecáveis calças sociais, camisa de linho, óculos modernos. Ele mora numa casa de arquitetura arrojada, ainda que discreta, espremida em espaços estreitos e bem planejados”, diz um jornalista perplexo e aliviado.
A quebra de expectativa de Castello entre a poesia que lia e o autor que esperava encontrar é mais ou menos a mesma experiência que o leitor tem ao ler Manoel de Barros, a cada poema. Os títulos já denunciam um caráter diferenciado de sua poesia, que faz muita gente compará-lo a Guimarães Rosa, de certa forma, equivocadamente.
Compêndio para uso dos pássaros (1960), Gramática expositiva do chão (1966), Concerto a céu aberto para solos de ave (1991), Tratado geral das grandezas do ínfimo (2001) são exemplos de títulos de livros que já surgem como extensão poética dos versos encontrados lá dentro.
Laboratório
Em Poemas concebidos sem pecado, reeditado pela Record em 1999, para o leitor de hoje, é possível enxergar um futuro repleno de inquietação poética, que o autor ainda não sabe bem no que se tornaria, algo na base da transgressão moral e na contestação social, mas também no drible da gramática e do significado usual do verbo (a poesia arquitetada).
Mas uma coisa é certa e sabida. Neste livro, o poeta quer forjar a carga de sentimento, lembranças e invenções que, aos 21 anos, traz da recente infância. Todo escritor sabe que a primeira tradição do labor criativo são as reminiscências infantis. Manoel de Barros também tinha plena consciência disso.
Ele sabia que as lembranças de infância são um laboratório da escrita criativa, e com Poemas concebidos fez seu próprio laboratório. A frase do italiano Cesare Pavese, citada na orelha do livro de Barros, traduz essa intenção do fazer literário: “Não é belo ser criança, belo é, na velhice, lembrar do tempo em que éramos crianças.”
Enquanto morava no Rio de Janeiro para onde havia ido estudar Direito, Barros frequentava a Biblioteca Nacional, lia e escrevia. Foi em meio a noites alcoólicas e praias férteis que ele deu início a uma vida de escritura. Mas os costumes do campo, a lida diária, a vida (o trabalho, as brincadeiras de criança, as lendas, a saudade desse tempo), tudo está lá, como uma elaboração poética de sua infância.
Maria-pelego-preto é um aperitivo da poesia primeira de Barros, em que o leitor encontra a contestação, em meio à corrosiva dose de humor e desgraça, apenas um exemplo que fez Ismael Cardim dizer, num texto de apresentação do poeta: “A poesia de Manoel de Barros não induz ao sofrimento, embora nos agarre pelas tripas.”
Maria-pelego-preto, moça de 18 anos, era abundante de pêlos no pente.
A gente pagava para ver o fenômeno.
A moça cobria o rosto com um lençol branco e deixava pra fora só o pelego preto que se espalhava quase até pra cima do umbigo.
Era uma romaria chimite!
Na porta o pai entrevado recebendo as entradas...
Um senhor respeitável disse que aquilo era uma indignidade e um desrespeito às instituições da família e da Pátria!
Mas parece que era fome.
Ainda não está aí o salto mortal do verbo em transe, mas mantém-se intacta a crítica social, feita em 1937, que será vista em Gabriel García Márquez, matizes parecidos, com A Incrível e Triste História de Cândida Erendira e Sua Avó Desalmada, entre outros livros, e em O Baixio das Bestas, filme de Claudio Assis, de 2007.
Mais um exemplo da mesma verve é Antoninha-me-leva:
Outro caso é o de Antoninha-me-leva:
Mora num rancho no meio do mato e à noite recebe os vaqueiros tem vez de três e até quatro comitivas
Ela sozinha!
Um dia a preta Bonifácia quis ajudá-la e morreu.
Foi enterrada no terreiro com o seu casaco de flores.
Nessa noite Antoninha folgou.
Há muitas maneiras de viver mas essa de Antoninha era de morte!
Não é sectarismo, titio.
Também se é comido pelas traças, como os vestidos.
A fome não é invenção de comunistas, titio.
Experimente receber três e até quatro comitivas de boiadeiros por dia!
Desconhecedor
“Quando já maduro, Manoel enveredou pelo interior dos seres inúteis, dos lixos, dos ciscos e outras existências aparentadas com o homem”, diz Ismael Cardim. E é aí que as estripulias com a palavra começam a aparecer. “Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)”, escreve o poeta em O guardador de águas, de 1989.
“O esplendor da manhã não se abre com faca”, diz na primeira parte de O livro das Ignorãças, publicado originalmente em 1993. É um dos mais seminais de Barros, prontamente lembrado pelos leitores. “Poesia é voar fora da asa”, ensina o poeta, em cuja receita ainda é possível encontrar imperativos do tipo: “Usar algumas palavras que ainda não tenham idioma”, ou “― Botar aflição nas pedras/ (Como fez Rodin).”
Nada menos ingênuo do que pensava Castello. Um poeta que se propõe a moldar o significado das palavras nesse nível, a ponto de fazer pedra se expressar que nem gente (prosopopeia mineral), não pode ser descartável como pó de prateleira. Tudo em sua poesia surge como num espanto. “O mundo não foi feito em alfabeto. Senão que/ primeiro é água e luz. Depois árvore. Depois/ lagartixas. Apareceu um homem na beira do rio.”
Embora antes também já houvesse versos tão inventivos quanto, O Livro das Ignorãças talvez seja o grande livro de Manoel de Barros, o que sistematizou seu simbolismo do chão e do mato, e o levaria para o estrelato. Aqui, a ignorância é o vazio, que por sua vez é o lugar da mente criativa, o espaço destinado a perguntas limpas de certezas e isento de grandezas impeditivas.
“Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.”
Mais adiante, uma lição absolutamente precisa de regressão para a compreensão da naturalidade das coisas:
“Para entrar em estado de árvore é preciso partir de
um torpor animal de lagarto às três horas da tarde,
no mês de agosto.
Em dois anos a inércia e o mato vão crescer em
nossa boca.
Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato
sair na voz.
Hoje eu desenho o cheiro das árvores.”
Poeta e fazendeiro
Na linhagem da existência de Manoel de Barros está um nome muito conhecido dos leitores de tratados ditos sérios, aqueles que explicam os fenômenos sociais mais complexos. O economista renomado e político Roberto Campos, autor de A lanterna na popa, era seu primo. Tal como Campos, Barros também nasceu em Cuiabá, mas foi criado até a adolescência em terras sulmatogrossense.
Filho de fazendeiro, gozava de certos privilégios que outros pantaneiros não têm, ou seja, oportunidades. Seu pai o enviou para estudar na Faculdade de Direito de Niterói. Mas não frequentava as aulas. Em vez disso, ia para a Biblioteca Nacional. Chegou a se formar e se tornar advogado, mas logo sentiu o drama da falta de vocação.
“O primeiro sinal desse desarranjo veio no dia em que, diante de um juiz togado, quando se preparava para começar uma defesa, vomitou em cima do processo”, reconta Castello, em Inventário das Sombras. Barros então desistiu e, já envolvido coma poesia, foi tentar a sorte de empresário, atividade em que se deu muito bem, mas também não era o que queria fazer.
Conforme ele mesmo conta em Paixão pela palavra, uma série documental da TV Futura, ainda na casa dos 20 anos tornou-se sócio na imobiliária de um médico amigo seu. Mas depois os dois venderam a empresa valorizada, e a parte de Manoel de Barros foi gasta em viagens. Foi quando passou um ano em Nova York estudando pintura e cinema. Torrou todo o dinheiro e voltou para o Rio.
Sua propensão para a boemia já delineava uma história de fracassos. Mas a essa altura, ao seu lado, já havia uma mulher, sua companheira de toda a vida. “Se eu não tivesse me casado com a Estela, teria morrido na sarjeta”, lembra o poeta. É que nessa época de juventude sem regras, o pai de Barros morreu em Campo Grande, e o poeta e boêmio quis vender tudo no Mato Grosso do Sul e continuar no Rio de Janeiro, mas Estela disse ‘não’. E os dois foram administrar a herança.
Hoje, aos 94 anos, Barros é quem mais vende livros de poesia no país. É tema do documentário Só dez por cento é mentira, de Pedro Cezar, dá várias entrevistas e é valorizado pela nova geração de poetas como Fabrício Carpinejar, filho do grande poeta gaúcho Carlos Nejar, e o goiano Wesley Peres, cuja dissertação de mestrado na Universidade Federal de Goiás foi sobre ele.
Em 2010, a editora Leya Brasil comprou os direitos autorais que pertenciam à Record. O resultado é o relançamento de toa sua obra individualmente e um livro intitulado Poesia Completa.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto, em março de 2010)
2 comentários:
Gilberto,
Lindo texto. A poesia de Manoel de Barros é indispensável e sublime. Nos remete a tudo que a natureza e o homem tem de bom a oferecer, ou seja, a cumplicidade e a simplicidade da interação.
Livro das Ignorãças é leitura obrigatória para o autoconhecimento, da natureza e do outro.
Parabéns!
Vida
Obrigado, Vida!
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