O livro de Marcelo Gleiser, de onde foi retirado o trecho abaixo, não é de história da música, nem sequer um ensaio de crítica musical. Criação imperfeita (Record, 2010, leia resenha aqui) é sobre cosmologia, criação do universo, a complexa estrutura orgânica da vida, tudo explicado por meio dos emaranhados de teorias cosmológicas.
Mas é justamente isso que dá um sabor diferente na leitura do livro, porque podemos achar, entre um Big Bang e uma Supercorda, gotas de alma. Como a que se segue.
“Na famosa peça teatral (e também filme) Amadeus, de Peter Schaffer, o conflito entre genialidade e mediocridade, conformismo e criatividade, atinge consequências trágicas quando o compositor Antonio Salieri, desesperado, aterroriza continuamente o doentio Mozart, levando-o finalmente à morte.
“O vaidoso Salieri, inicialmente orgulhoso de seu talento como compositor, vai gradualmente perdendo o controle ao testemunhar a beleza imortal da música de Mozart. Em uma cena devastadora, Salieri presenteia uma nova composição ao seu patrono, o arqueduque austríaco e sagrado imperador romano José II.
“Mozart, retratado como um jovem irreverente com uma risada histérica, se oferece para tocá-la. Logo começa a improvisar em torno da melodia medíocre de Salieri, conferindo-lhe uma beleza inusitada.
“Os presentes, comovidos, trocam olhares incrédulos, enquanto Salieri, humilhado, mal pode conter sua ira. ‘Por que Deus concedeu tanto talento a um jovem idiota, enquanto eu, Seu devoto servo, que jurei minha castidade em troca de inspiração, nada mais crio do que estúpidas melodias?’
“Ciente de sua mediocridade, Salieri sabia que seu nome seria esquecido tão logo morresse, enquanto o de Mozart seria celebrado por séculos.”
Literatura comparada
Gleiser arranja tempo para dar um curso de literatura comparada, ocasionalmente, em Dartmouth. Na leitura de Criação imperfeita há cintilações desse entusiasmo humanista e artístico. É claro que, por força de não ser um estudioso de teoria literária, seu julgamento é diletantista.
Seu julgamento é aquilo que Compagnon chamou de senso comum, num sentido muito positivo, porque é o quiproquó da teoria, é o demônio da teoria, o que arrebenta com sábias bases teóricas. Mas, de qualquer forma, não podemos negar a grande carga de leitura e erudição do físico ao avançar nessas questões.
Voltando a seu livro, uma das teses centrais dele é o humanocentrismo, uma nova forma de abordar o antropocentrismo, conceito criado na época do Renascimento, mas posto abaixo pela revolução científica. O que Gleiser argumenta é que o homem não sai do centro do questionamento científico. “Ainda somos especiais”, diz.
O que a ciência tem de fazer é admitir que seu corpo de saber tem limites e que ela não pode alcançar tudo, diz Gleiser. A perfeição do Universo, e muito menos a perfeição da relação da vida com a Natureza, não existe. O que existe é uma série de fatores imperfeitos, acidentais, quase improváveis. E por isso mesmo, se existimos, é porque somos especiais
É a tese de Gleiser. Ela vale à medida que queremos dialogar com o autor e com outros pensadores e pesquisadores que partilham dessa tese. Caso contrário, ela não vale nada, tanto quanto a Bíblia não vale para ateus arrogantes.
“O mistério não é que um Universo especial gerou criaturas mundanas, e sim que um Universo mundano gerou criaturas especiais”, diz Gleiser em determinada passagem. Em outra, ele argumenta: “A ciência tem que ser humanizada, relacionada com a cultura em que existe.”
É por essas e outras que lemos boas passagens individuais, como o trecho citado, que abre um dos capítulos de seu livro, comentando Mozart e Salieri para, na verdade, falar de Johannes Kepler e seu professor, Michael Maestlin, que também teve essa crise de zelo e inveja em relação ao discípulo brilhante.
Um comentário:
Mais que merecida a premiação. A literatura de Raimundo Carrero é um prazer e uma lição para todos nós. Valeu, Giba!
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