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Tblisi, capital da Geórgia: já era famosa pelos banhos termais na época de Pushkin, que ressalta essa qualidade em seu conto |
Aleksandr Púchkin (1799-1837) tem uma semelhança com Machado de Assis, dizem os críticos. A primeira leva de sua obra seguiu as linhas gerais da narrativa tradicional russa, mas, na segunda, mudou completamente o próprio estilo e o de seus sucessores.
Mas não é só isso que Púchkin tem de semelhante com Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho era mulato. Púchkin também. Ele era bisneto de Abraão Aníbal (1670-1762), nascido na Eritreia, escravo negro de Pedro, o Grande. Veja que esse negócio de imperador chamado Pedro nos persegue a nós negros.
Há um conto famoso de Púchkin, intitulado O negro de Pedro, o Grande, com muitas edições no Brasil (na verdade, é um romance inacabado). Mas o conto em questão neste café da manhã é Viagem a Arzrum, publicado pela Editora 34 (tradução de Cecília Rosas).
A tradutora bancou a grafia Arzrum, em vez de Erzrum, provavelmente porque assim está no alfabeto cirílico russo. O próprio narrador do conto chama a atenção para a grafia adotada: “Arzrum (incorretamente grafada de Arzerum, Erzrum, Erzron) foi fundada por volta de 415, no tempo de Teodósio II, e chamada de Teodosópolis.”
Como a observação está entre parênteses, vá saber se não é coisa da própria tradutora. Dúvida eterna. Só o que se sabe é que nos mapas modernos a grafia é Erzurum – veja Google Maps).
Publicado em 1836, o conto já mostra na introdução uma característica da prosa moderna, que é mistura de nomes e dados factuais do autor com a trama fictícia, enfatizando elementos de ironia (não ainda uma autoficção, mas seu germe, tendo o narrador, inclusive, o nome de Pouchkine).
Há um momento em que o narrador cita um poema de Aleksandr Púchkin, O Prisioneio do Cáucaso e diz “a obra é toda fraca, juvenil, incompleta; mas há muito ali fielmente intuído e expressado." E há um conde Pushkin que viaja no mesmo grupo e um soldado chamado Mikhail Puschin.
O conto é um relato de viagem que o poeta russo Pouchkine fez à Turquia, para cobrir a guerra russa-turca, em Arzrum. Nessa jornada, ele atravessa o sudeste do país, e algumas fronteiras, até chegar ao seu destino e se encontrar com o comandante das tropas russas, o conde Paskévitch.
Ele sai, então de Moscou e passa por Kaluga, Beliov, Oriol (cidade de Ivan Turguêniev), Kursk, Karkhov, Voronej, Stavropo, atravessa o rio Podkumok (com os recursos do Google Street, você olha o rio e vê que Púchkin imortalizou um rio da envergadura do Tamanduateí, ou João Leite, para quem é de Goiânia).
Alcança Vladikavkaz, atravessa o rio Terek, chega a Lars, passa pela cadeia de montanhas Darial, já na Geórgia, observa o monte Kazbek, por onde ele diz ter passado com indiferença porque queria chegar logo a Tbilisi, ou seja, atravessa toda a região do Cáucaso, espremida entre o Mar Negro e o Mar Cáspio.
Atravessou o rio Kura, que banha Tbilisi, a capital de Geórgia (“Tbilis-kalak, em georgiano significa cidade quente”, diz o narrador, que chama a cidade de Tiflis, tal como se diz em russo), e passou por Guiumri (Armênia), Kars (Turquia), avistando, dos vastos campos abertos, o monte Ararate, a mais de 100 quilômetros de distância.
Esse passeio saindo do Sudoeste da Rússia rumo à Ásia Menor, às terras da Turquia, forma uma cartografia interessante. É uma narrativa aos moldes das crônicas de viagem, com riqueza de detalhes. As impressões de lugares e costumes que ele fixa no texto ressaltam seu estilo de prosador e sua fantástica capacidade de pintar a natureza.
É um texto que deveria ser lido por todo jornalista interessado em escrever reportagens de fôlego. A viagem não é toda fictícia, porque Pushkin de fato fez um trajeto semelhante em 1829.
As gentes descritas são reais, as magníficas paisagens com seus rios, montanhas, desfiladeiros e céu azul, neve e chuva são reais, a comida, os banhos termais em Tbilisi são reais.
Acompanhe a leitura que você faz usando o Google como ferramenta de apoio. Você verá uma magnitude que os leitores do século 19 não puderam ver, só puderam sentir o impacto das palavras de Púchkin, que não é pouco.
Os personagens históricos não são inventados, como Alexandr Griboiedov, poeta e diplomata, que sofreu uma morte horrível em Teerã por fanáticos persas, cuja citação no segundo capítulo do conto é de uma beleza ímpar, pela comoção do narrador e pela descrição da personalidade do poeta morto.
“Suas capacidades como homem de estado ficavam sem uso; seu talento de poeta não era reconhecido; até sua coragem fria e brilhante esteve algum tempo sob suspeita. Alguns amigos sabiam de seu valor e viam surgir um sorriso incrédulo, esse sorriso tolo e insuportável, quando por acaso falavam sobre ele como uma pessoa extraordinária.”
O narrador passa de Kars e chega ao acampamento das tropas russas, na guerra contra os turcos, num avanço imperialista de Moscou. Essa narrativa não deixa de ser exaltação aos valores da Rússia, às suas forças armadas, sua inteligência, sua capacidade de territorialização. É a exaltação de um pensamento imperialista.
Mas, apesar desse realismo político, trata-se de uma bela peça literária pelo tratamento dado, pelos procedimentos estéticos entre o realismo e o romantismo. O que fica como memória do conto, como elemento nutritivo, é a exuberância dessa paisagem exterior da Rússia, complexa em sua formação cultural e geográfica.
A coloração social mostra uma diversidade de povos impressionante (tártaros, calmucos, nogais, circassianos, ossetas, cossacos, e mais adiante armênios, persas), por meio dos quais o narrador desfila, em sua jornada rumo a Erzurum.
Os conflitos naturais e sua beleza, no entanto, não acarretam transformações marcantes na alma do narrador, nem em subjetividade alguma. Neste sentido, pelo menos neste conto, presente no livro Nova antologia do conto russo (Ed. 34), talvez o último que ele tenha escrito, Púchkin está distante de Machado de Assis (além da distância geográfica e temporal, pois este só viria bem depois).
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