Foto: Twitter da cantora |
“Meu coração/ anda endiabrado./ Numa hora berra!/ Noutra hora emperra,/ encurralado.” |
Quando abri o livro de poemas da
cantora e atriz Bruna Caram, Pequena poesia
passional (sem data, mas segundo seu site é de 2015), a primeira coisa que
vi foi o prefácio de Luiz Tatit (compositor e doutor em semiótica, professor da USP). Vi o prefácio mas não li de antemão, para não
me sentir influenciado pela leitura do autor de Capitu, aquela canção
poeticamente insinuante sobre o personagem de Machado de Assis.
Fui direto aos poemas. Minha
primeira pergunta às linhas de Bruna foi, obviamente, tem paixão em cada poema?
Tem. O tema da paixão às vezes vem estampado no título, como em Amor
mesmo, Amor, Coragens, Covardia, Endiabrado,
Felicidade,
Fossa,
Instável,
Inveja,
Louca,
Marra,
Medinho,
Passional,
Qualquer
coragem, Saudades, Sem-vergonha, Solidão.
Como o leitor deve ter
observado, os poemas estão distribuídos em ordem alfabética pelo título.
Obviamente, trata-se de um capricho (elemento passional) da poeta. Mas é
interessante notar o modo como ela se preocupou em organizar seus poemas numa
espécie de dualidade poética também, em que o poema anterior cria uma empatia
verbal com o poema posterior, pelo título e pelo conteúdo. Senão, vejamos:
Alívio
“O tempo passa, com ou sem você.
Isso me conforta!
Melhor que isso
só você entrando agora
por esta porta.”
Altar
“Esqueço
ao subir ao palco
de tudo que sou,
recebo
ou causo.
Me aqueço de sonho
e salto.
Só acordo na hora do aplauso.”
O alívio é uma espécie de gozo,
alcançado pelo sujeito poético no tempo, com ou sem a pessoa amada, porque no
fim das contas, o sujeito poético não a esquece. Há uma lembrança dentro da
passagem do tempo. Já no palco como altar, o sujeito poético se esquece de si
mesmo. Ali, o gozo é mais intenso. É onde o tempo não passa.
No encadeamento de outros
títulos, a dualidade é muito mais explícita: Ano novo/Antídoto;
Chuva/Cinema;
Depois/Depressa;
Desculpa/Desejo;
Direito/Direto;
Disco/Distância.
E assim por diante.
Os poemas sugerem que a paixão é
feita do cotidiano. O elemento passional é o conector da vida interior com o
mundo exterior. A poesia de Bruna Caram, neste livro, retrata objetos,
sentimentos, afetos e outras abstrações, lugares, tempo e memória como fulcrais
da vida vivida. Eles surgem nos poemas como figuras ígneas da paixão, e a paixão
passa então a ser não a busca, mas o resultado da vivência no dia a dia.
Bruna Caram traduz bem a passionalidade
em seus poemas. Citando palavras como avião, hotéis, avô, travesseiro, estrada,
canto, blues, ela traz um sentido mui pessoal (e passional), ou mui passional
(e pessoal). Parece ser ela mesma essa passionalidade. Um atributo traduzido
muito bem no título da letra de seu primeiro sucesso, Palavras do coração, cuja
composição não é sua, mas deve ter sido feita exclusivamente para ela.
Isso também explica metáforas
mais íntimas (interiores) como no poema Tempestade, em que o sujeito poético
diz ser “o lado de dentro/ da tempestade.”
Os 180 poemas de Bruna Caram,
distribuídos em 208 páginas de um livro de formato pequeno, são curtos. O maior
deles, Hotéis, com 38 versos, está ali para provar que tamanho não é
documento. Ele traz muito do cotidiano e pouco do poético.
Coragens, seu menor poema, no entanto, com
dois versos apenas, dizem mais: “Todos os sonhos reagem/ a cada nova coragem.”
O plural do título ressoa no singular do vocábulo do segundo verso sugerindo
uma sucessão de sonhos, uma vida inteira em que, dia a dia, vive-se a jornada
em busca das realizações.
Seu livro é uma produção
independente. Não tem assinatura de nenhuma editora. Os poemas, ao nascerem,
foram sendo publicados primeiro no Instagram, fotografados. Só depois, ela
decidiu que eles mereciam o nobre espaço do livro.
No conjunto, há versos muito
bons, sem dúvida. Embora, ela queira se aproximar de Manoel de Barros, pelo que
indica a epígrafe com verso do poeta sul-mato-grossense falecido em 2014, em
alguns momentos, seu modo de fazer poesia se aproxima mesmo é do de Affonso
Romano de Sant’Anna.
Em Contratempo, ela diz:
“Meu coração imenso
anda dividido
entre o meu silêncio
e o seu ruído.”
Em Louca:
“Nunca
se continha:
Vinha
Me beijava a boca
Me tomava toda
Me invadia sem calma.
Um dia
Eu totalmente louca
Ainda permitiria
Ele tocar minha alma.”
Algo da poesia minimalista e
semiótica de Paulo Leminski, alguém diria. Mas, então, o que sobra para ela
mesma, de sua verve, seu ritmo, seu mundo vocabular? Sobra tudo que há de
subjetivo e autoral. Para além de comparações, Bruna consegue boas rimas em uma
cadência cujo ritmo é o da emotividade, a justa medida de sua proposta. Como no
poema Bonita.
“Dormir com você
me deixa bonita.
Você me olha
como quem não acredita
e me beija valente.
Na hora, o mundo ferve,
nosso corpo, um no outro serve,
e o mundo serve à gente.
Você não entende.
Nem eu.
Depois acordo assim,
toda bonita,
Você também, me imita.
E ninguém explica
o que aconteceu.”
Pois bem. O que diz então Luiz
Tatit, no prefácio? Rasga elogios à poeta, claro. Mas faz isso com análise. Ele é bom.
Começa chamando a atenção para o tamanho dos poemas e já abrindo com o arremate:
“A pequena poesia é o formato ideal para a lírica moderna. Mal o tema se define
já vem o desfecho cortante desviando a linearidade da leitura.”
Tatit demonstra por que Bruna Caram
domina o ofício da poesia e como ela transita bem nesse universo da ironia
cotidiana das paixões. Joga luz sobre a capacidade da cantora de entender o
funcionalidade dos signos e de manipulá-los. Não diz que é uma grande poeta,
mas arranja-lhe um bom lugar. “Poesia boa é poesia esperta, com poucos versos
já desconcerta.” Esta é a poesia de Bruna Caram.
Serviço
Livro: Pequena poesia passional
Ano: 2015
Páginas: 208
Quanto: R$ 20
...
Um comentário:
Claro que ser grande admirador da Bruna me faz achar incríveis seus textos. Mas o que conheço dela na música sempre me faz perceber a grande capacidade de expressão, de entrega. Ótimo encontrar um texto como o seu. Que nos faz pensar na Bruna com outros pontos de vista.
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