Foto: Gilberto G. Pereira
O dicionário é importante para ajudar
a ampliar os horizontes das descobertas. Mas é
preciso buscar também a aplicabilidade da palavra.
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Dizem que na era digital, no
irreversível e impiedoso mundo da internet, os dicionários perderam o sentido
(com perdão do trocadilho). Quando queremos procurar o significado de uma palavra,
clicamos no Google e, voilà, eis que o mundo acontece diante de nós.
Não é bem assim. Primeiro porque
nem todo significado surge imediatamente na tela do Google. É preciso cruzar
dados, exercitar a inteligência, senão, mergulha-se no ramerrame das palavras,
sem penetrar na fina essência das coisas por meio de sua representação.
Por exemplo, quando buscamos o
significado de um vocábulo no Google, nem sempre aparecem todas acepções. Ficamos reféns da sinonímia. Mas as
palavras encerram significados às vezes contraditórios.
Senão, vejamos: para ‘cambito’,
o Houaiss traz sete acepções, e uma delas é especial para a cultura do Norte, Nordeste
e Centro-Oeste, significando ‘libélula’. ‘Pirosca’ é outra com díspares
significados. É um tipo de peixe, também conhecido como pirarucu (o bacalhau de
água doce), nos caudalosos rios da Região Norte e Centro-Oeste.
Mas no Dicionário Houaiss, a
única acepção para ‘pirosca’ é ‘gude’ (tanto a bolinha de vidro quanto o
próprio jogo), na fala de Minas Gerais. Não tem nada a ver uma coisa com a
outra. No entanto, se você digitar ‘pirosca’ na internet, só o peixe aparece.
Outro possível significado é o de pênis, num sentido chulo, segundo o Dicionário Aurélio.
Em segundo lugar, mesmo na
internet, as páginas especializadas em vocabulário têm valor de dicionário,
como a Wikipédia (cruzamento de dicionário, enciclopédia e manual). Sendo esta plataforma
contestável - por muitas vezes apresentar informações conflitantes sobre um
mesmo vocábulo ou verbete -, os melhores serviços deste ramo na internet (enciclopédias
e dicionários eletrônicos) não raro são pagos (o que é justo).
Inúmeros
campos
A importância do dicionário não
se dá apenas por causa do léxico, da palavra em si, mas pelos inúmeros campos
de pesquisa, cada um explorando o mesmo vocábulo de modo diferente do senso
comum. Os dicionários especializados, como os de política, psicanálise,
sociologia, por exemplo, trazem uma terminologia própria desses campos de
estudo.
Neste sentido, a importância
maior é saber como os termos se organizam, de onde vêm, para que servem, quem
os formulou. Quando você estiver lendo Bauman, e se deparar com um termo
sociológico, com o uso do dicionário de sociologia, você saberá em que linha de
pensamento o termo está sendo empregado, e se for perspicaz, vai entender
também por que Bauman o empregou.
Um dicionário especializado
sugere inclusive o grau de importância de cada entrada. Quanto mais páginas são
dedicadas a um verbete, mais importante ele terá sido na história do
pensamento.
O Dicionário de Filosofia Nicola Abbagnano, por exemplo, me dá essa
lição. Aprendi muita coisinha inútil com ele, mas também muitas informações
filosóficas importantes que, sem ele, eu teria de ler grandes tratados (e eu
não seria capaz de fazê-lo, pela falta de tempo e de energia mental). O significado
de ‘consciência’, por exemplo, cujo uso na filosofia é diferente do senso comum
e da medicina. Isso aprendi com o Abbagnano.
A
alma consigo mesma
Etimologicamente, ‘consciência’ vem
do latim, ‘conscientia’ (de conscire = estar ciente). Está registrado na
Wikipédia. Mas o Abbagnano me dá uma
definição melhor dentro da tradição filosófica, trazendo a definição que me
esclarece de vez o significado do conceito comum e filosófico.
Na primeira acepção, está a única
definição filosófica conhecida pelos gregos fundadores da filosofia
(pré-socráticos e a tríade Sócrates, Platão e Aristóteles), que é a base do
significado do senso comum: “possibilidade de dar atenção aos próprios modos de
ser e às próprias ações, bem como de exprimi-las com a linguagem.” Ou seja, é a
capacidade de perceber o mundo, no sentido de estar ciente das próprias
percepções e ideias, de não estar desmaiado, nem dormindo, bem como de usar a
linguagem para exprimir essa capacidade.
Segundo o Abbagnano, a segunda acepção traz uma nova descrição, mais
complexa, a partir dos estoicos e neoplatônicos, que vai além da compreensão da
consciência como atributo dos sentidos físicos para dar conta do mundo.
Nesta segunda acepção, o significado
de consciência é o da “relação da alma consigo mesma, de uma relação intrínseca
ao homem ‘interior’ ou ‘espiritual’, pela qual ele pode conhecer-se de modo
imediato e privilegiado e por isso julgar-se de forma infalível e segura.” Ou
seja, vai além da mediação da palavra, e alcança o que o Abbagnano chama de testemunho “de si para si”, “esfera de
interioridade” ou “interioridade da alma”.
Para descrever a primeira
acepção, o Abbagnano utiliza oito
linhas. Para a segunda, faz uso de dez páginas. Temos aí, portanto, uma noção
de por onde passa sua definição. Desde os estoicos, portanto, todos os
filósofos se ocuparam do estudo da consciência: Tomás de Aquino, Santo
Agostinho, Kant, Hegel, Husserl, Heidegger, os existencialistas e os filósofos
da mente (John Searle, Gilbert Ryle), e uma multidão de pensadores.
O Dicionário de Filosofia Nicola Abbagnano é mais complexo que isso,
obviamente, mas abre uma janela para a compreensão dos complexos termos da
linguagem filosófica.
Outra lição que ele me deu foi
sobre o significado de um dos termos mais caros à filosofia, ‘juízo’. Aprendi
que ‘juízo’ em grego é ‘krisis’. Ou seja, a filosofia nasce da crise, que é a
capacidade de separar, julgar, peneirar, crivar.
A procura amorosa da verdade
faz-se no espaço judicativo da crítica, do questionamento sem rancor. ‘Crise’,
sem dúvida, significa também um incômodo existencial, a manifestação da alma
num lugar de inquietude, procurando o lugar da estabilidade do ser (que nunca
encontra, obviamente, não na filosofia, talvez na religião).
É claro que em cima de tudo
isso, deve-se ler, mergulhar na história do pensamento para tentar, a partir
dessa leitura, construir um pensamento novo sobre o mundo em constante mudança.
Primórdios
A ideia de dicionário é
importante, mesmo que não se busquem mais suas edições físicas. Historicamente,
segundo Peter Burke, os dicionários começaram a proliferar a partir da invenção
da imprensa de Gutemberg.
“Os primeiros dicionários foram
de latim, para uso em escolas de gramática, fundadas como parte do movimento
humanista do Renascimento e frequentadas por meninos originários das classes
alta e média”, diz Burke em Uma história social dos dicionários,
artigo publicado na Folha de S. Paulo
em 3 de novembro de 2002.
Burke ainda comenta: “O primeiro
dicionário de latim-português que conheço, compilado por Cardoso, só foi
publicado em 1562. Como os estudantes conseguiam fazer suas traduções de Cícero
e Virgílio antes dessa data, não sabemos. Ou confiavam na memória ou compilavam
para si mesmos vocabulários manuscritos, que desde então se perderam.”
Atualmente, há dicionário para
tudo. Os que mais uso são os de línguas vernáculas, português-português,
inglês-inglês, como o Houaiss e o Oxford, e os bilíngues para estudar
línguas modernas como espanhol, francês, alemão, mas também tenho dicionário de
português-japonês, português-latim, e adoraria ter um de grego, mas é caro.
No caso da língua inglesa,
aprendi cedo a comparar a qualidade vocabular dos dicionários bilíngues consultando
palavras que geralmente são ignoradas, por se acharem inúteis no universo do
aprendizado imediato. Por exemplo, ‘newt’ e ‘gecko’ significam ‘lagartixa’. A
diferença é que a segunda se refere à lagartixa de parede, aquela branquinha e
horrorosa que a gente vê grudada nas paredes de casas urbanas.
Osgas,
labigós e outros bichinhos
Quando vejo um dicionário novo
de inglês, daqueles de bolso ou mini, recorro àquelas duas palavras. Geralmente,
não as encontro. E aí, julgo não ser um bom dicionário, embora, às vezes, eu
possa estar errado. Há outras palavras também que costumo cruzar.
‘Tick’, que significa
‘carrapato’ e outras coisas díspares, por exemplo, também uso nesse método de
comparar dicionários em inglês, seja bilíngue ou não. Aliás, foi por saber que
carrapato em inglês é ‘tick’ que aprendi rápido como se diz carrapato em
francês, ‘tique’.
Essas correlações, geralmente,
estão ligadas à raiz latina. E por isso, muitas palavras ficam fáceis de
assimilarmos nas outras línguas ocidentais, por saírem de uma língua próxima de
nós, como ‘anta’, que em inglês se diz ‘tapir’, como em tupi (pois não existe
anta fora da América do Sul, a não ser em cativeiro, como bicho exótico).
A lagartixinha branca a que me
referi antes, é chamada de osga em português. Uma vez, no programa Roda Viva, da
TV Cultura, em outubro de 2003, José Saramago se referiu a ela, demonstrando a
importância do vocabulário para quem quer escrever ou, de resto, apreender
melhor o mundo.
“Consultando o Dicionário Houaiss, que é magnífico, na
minha opinião, encontrei uma coisa que não consigo entender como é que passou
aos lexicólogos, que é a palavra ‘osga’” dizia Saramago. “A definição que se dá
é ‘lagartixa’. Mas ‘osga’ não é uma lagartixa. Nunca foi uma lagartixa. Não se parecem
fisicamente, nem se parecem do ponto de vista da mentalidade. A osga é um
animal com umas patas que se agarram às
paredes, coisa que a lagartixa não pode fazer.”
Sempre que Saramago vinha ao
Brasil e dava entrevista na televisão, eu o ouvia atentamente. Foi assim no Jô Soares
Onze e Meia, ao lado de Chico Buarque, em 1997, e no Roda Viva, por exemplo.
Gostava mais de ouvi-lo do que lê-lo de fato.
A osga é o que chamei acima de
lagartixinha de parede. Quando assisti ao Saramago naquela ocasião, eu já tinha
o hábito de associar a palavra ‘gecko’ à ‘osga’. Portanto, achei interessante a
descrição do autor, aprendi com isso, mas continuo com a definição que ficou em minha cabeça, embora
tendo consciência dessa dicotomia. Meu mundo enriqueceu.
Tenho consciência também que
‘newt’ não é de fato a lagartixa que conheço, que no interior do Mato Grosso,
onde vivi minha infância, era chamada de labigó, palavra que não está cunhada
no Houaiss, meu dicionário de
cabeceira. A labigó é diferente do calango, que é meio esverdeado.
A labigó é um pouco menor que o
calango, e é meio cinza-casca-de-pau. Fica o tempo todo fazendo um movimento
com a cabeça, para cima e para baixo, como se concordasse com alguma coisa, à
semelhança dos roqueiros head-bangers, só que um pouco mais acelerado.
Horizontes
das descobertas
Voltando aos dicionários, uso
muito dicionário eletrônico também. No Leituras,
há alguns links interessantes, na barra lateral direita, lá embaixo. São
gratuitos, e talvez por isso sejam imperfeitos. Não encontramos todas as
palavras que queremos. “Mas nunca vamos encontrar todas a palavras que queremos”,
nem pagando, alguém pode dizer. Às vezes o mecanismo de busca falha. É verdade.
Em todo caso, hoje está melhor que a escuridão do passado, em termos de opções.
O dicionário é importante para ajudar
a ampliar os horizontes das descobertas. É claro que depois desse aprendizado,
como na filosofia, é preciso buscar a aplicabilidade da palavra, é preciso
saber ouvir o outro, ler o outro, como me ocorreu com Saramago à distância. A vivência
da palavra, real e intelectual, é de vital importância.
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Um comentário:
Muito bom, parabéns! Pretendo espalhar o conhecimento como você, mas primeiro vou buscá-lo.
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