O colombiano Gabriel García Márquez ampliou os horizontes da
América Latina, e ao mesmo tempo desafogou o sentimento de desespero
de nossa alma. Ao transportar os exageros da nossa realidade, os
rubores do sexo, os olores de amor e de morte de nossas entranhas, a
solidão, as tragédias anunciadas de nossa pobreza, a desgraça do
autoritarismo e a excentricidade excessiva aos olhos do Ocidente para
a literatura, ele compartilhou conosco uma maneira de fingir que o
real era pura ficção. E ao ficcionalizar a realidade, acabou
expondo-a ao mundo inteiro, com as grandezas e pequenezas de nossa
existência latina.
Sua morte, aos 87 anos, não pega a nós leitores de surpresa. Já
era anunciada desde que há pouco mais de uma semana havia deixado o
hospital na Cidade do México, cidade onde morava há 30 anos, e a
família advertia a imprensa sobre o frágil estado de saúde do
escritor. E o que permanece de seu legado também está claro. Somos
mais ricos e mais conscientes hoje do que éramos antes de ele
aparecer, sem dúvida. Somos menos solitários, mais estudados, mais
ouvidos (ainda numa equação desfavorável, mas em progresso). E o
velho Gabo, apelido de domínio público do autor de O amor nos
tempos do cólera, tem sua assinatura neste avanço.
Se a morte é para os que morrem, como registrou João Guimarães
Rosa, ainda não é dessa vez que García Márquez será esquecido.
Ele permanece em sua literatura, como todo grande escritor. Sua seara
criativa é vasta, apresentando-nos um universo complexo de
personagens em meio ao chamado realismo mágico, mas que refletia a
dureza da vida. Apesar disso, o que me encantou de pronto em sua
narrativa foram os apostos e as orações explicativas (que não
explicavam nada, afundavam-me mais na areia movediça do texto), um
mundo inteiro colocado entre vírgulas, figurando um modo adversativo
e irônico, criando uma sensação de humor e tristeza, a depender da
cena.
Em Cheiro de goiaba, livro de entrevistas concedidas ao amigo
Plinio Apuleyo Mendoza, ele diz que em seus romances não há “uma
linha que não esteja baseada na realidade.” E comenta a criação
de Remedios, a bela, personagem de Cem Anos de Solidão, quando esta
desaparece levada pelo vento no céu de Macondo. Ao tentar solucionar
de que modo Remedios subiria, ele vê do quintal de sua casa que a
vizinha, “uma negra muito grande e muito bonita que vinha lavar
roupa estava tentando estender lençóis num varal. Não podia, o
vento os levava. Então, tive uma iluminação. 'É isso', pensei.
Remedios, a bela, precisava de lençóis para subir ao céu.”
Este relato é a parte da realidade. Mas a parte da ficção é que a
vontade de fazer alguém voar como se subisse no tapete de Aladdin
veio exatamente da influência profunda que teve da leitura de As
mil e uma noites, asas emprestadas do Oriente ao jovem Gabo que
foram consteladas com as mentiras exageradas e encantadoras que
recebia das histórias de sua própria avó.
Além dos contos de Sherazade, García Márquez fez questão de
listar suas influências ocidentais, como Franz Kafka, Ernest
Hemingway e William Faulkner. Essa mistura de rigor técnico e verve
imaginativa colocou-o no elevado patamar dos grandes autores do
século 20. Ao exagero trágico-lírico dos romances já citados e de
Crônica de uma morte anunciada, A incrível e triste
história da Cândida Erêndira e sua avó desalmada, Ninguém
escreve ao coronel e tantos outros livros de contos e romances,
junta-se sua obra jornalística, tão importante quanto sua ficção,
principalmente para os apreciadores do jornalismo literário, em
publicações como a antologia Textos caribenhos.
Em todos esses textos, jornalísticos e fictícios, a presença da
solidão é a marca estética e ao mesmo tempo denunciadora de nossa
realidade. Ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982, García
Márquez demonstra como e porque escreveu o que escreveu. Segundo
ele, apenas transpôs para a ficção “uma realidade não de papel,
mas que vive dentro de nós e determina cada instante de nossas
incontáveis mortes de todos os dias.” Segundo ele, “poetas e
mendigos, músicos e profetas, guerreiros e canalhas, todas as
criaturas desta indomável realidade, temos pedido muito pouco da
imaginação, porque nosso problema crucial tem sido a falta de meios
concretos para tornar nossas vidas mais reais. Este, meus amigos, é
o cerne da nossa solidão.”
As prostitutas que lhe criaram sempre um sentimento de comiseração,
respeito e gratidão por dias solitários e tristes que ele viveu em
Cartagena de Índias, sempre tiveram lugar privilegiado em sua
literatura. Seu último romance, Memória de minhas putas tristes,
é também uma homenagem a essas “pássaras nostálgicas”, que na
trama não aparecem de fato, uma vez que o enredo se prende à
história de um nonagenário e uma adolescente cuja virgindade é
vendida a ele.
Loucos, pobres, marginalizados, homens desgarrados da vida
glamourosa, ciganos, saltimbancos, mascates, menestréis pobretões,
para estes, García Márquez, com a genialidade da linguagem que os
céus lhe deram, criou um glamour particular.
Já eu, como um testemunho de sua obra, sinto-me mais leitor porque a
li. Sinto-me mais latino-americano, mais integrado aos países
hispanos por causa dele. Sua morte é um luto pela força que nos
impõe a realidade de nossa finitude. E por isso temos de ir algum
dia. Todos nós. Esta é a única derrota imparcial a todo mundo. Mas
sua presença está na obra que deixou, que ainda pode guiar os
leitores à magia da vida. Afinal, como ele mesmo diz na
autobiografia Viver para contar: “Até o estado de derrota é
propício para a literatura. Porque não há nada deste mundo nem do
outro que não seja útil para um escritor.”
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular,
18/04/2014)
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