Em
Triste fim de Policarpo Quaresma,
Lima Barreto faz duras críticas a uma nação mestiça que quer ser branca. Seu
romance é muito mais que isso. Todo ele portanto não cabe em um espaço tão
exíguo como este. Mas cabe aqui falar desta questão cara a nós negros e à parte
da sociedade brasileira comprometida com a consciência histórica e nossa
formação identitária.
Lima
Barreto é um autor grandioso, e seu romance mais emblemático é um legado
essencial de nossa cultura. Dentro dele haverá sempre uma surpresa de abordagem
sobre diversos aspectos de nós mesmos. E dentro desse escopo, uma questão
importante e fundamental: a figura do preto que se apresenta em múltiplos
matizes e o papel da cultura negra na
formação do Brasil moderno.
A
maneira como essa presença se costura dentro do romance é sutil, mas fulcral.
Os mestiços atravessam a sociedade sem alarde: Ricardo Coração dos Outros
(“cabelo áspero”), o Major Bustamante (“aquele velho mulato”) e o tenente
Fontes (“moreno carregado”) são mestiços, mas a indicação aparece apenas uma
vez para cada um, e representa bem o modo como essa sociedade procura se
escamotear (sem levar em conta aqui o alto custo e as razões da sujeição
emocional).
Os
dois últimos já estão integrados no mundo dos brancos. Coração dos Outros, não.
Ainda precisa ascender. Ele compunha modinhas populares no violão, que na época
era visto como um instrumento de pretos e pobres, mas estava disposto a deixar
para trás sua vocação, caso recebesse alguma proposta que o colocasse entre a
alta sociedade. Eis umas das severas críticas.
Por
outro lado, temos a figura do violão, a citação de um dos mestres reais desse
instrumento, Domingos Caldas Barbosa, e do lundu (canção popular negra,
precursora do samba), a presença da tia Maria Rita, “uma preta velha, que
morava em Benfica”, que poderia arranjar uma festa na casa do general Albernaz
ao modo mais plebeu, a um modo que trouxesse o “desejo de sentir, de sonhar, de
poetar à maneira popular.”
Nessa
luta de Coração dos Outros (sobrenome que remete a uma ideia de marginalidade,
de não pertencimento, a uma carência de afeto), ele acaba maldizendo um negro
violonista que estava começando a fazer sucesso, enquanto ele, Coração dos
Outros, era esquecido. Em seu ressentimento, mestiço que era, tocando um instrumento
relegado aos negros pobres, faz uma observação que coloca a cultura negra no
cerne da sociedade. Não entendia a razão de o deixarem para trás, “ele que
trouxera para esta terra de estrangeiros a alma, o suco, a substância do país!”
Esta
observação de que o negro flexibilizou as relações sociais e depositou um tipo
de afeto, de intimidade, importante da nossa cultura hoje em dia, vale por
centenas de palavras. Lima Barreto estava à frente.
(Gilberto
G. Pereira. Publicado originalmente em O
Popular, 22/04/2014)
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