Em 1873, quando
Lima Barreto nem havia nascido, Machado de Assis cunhou o termo “instinto de
nacionalidade” para descrever o resultado da produção dos escritores românticos
brasileiros daquela época. Segundo ele, tinham boa imaginação, sabiam manejar
bem os quadros da natureza, com toques de sentimento, inserindo adequadamente
em suas obras questões políticas, sociais e de moral, mas não haviam descoberto
o Brasil real.
E olha que, na
prosa, estamos falando de José de Alencar, Franklin Távora, Bernardo Guimarães
e companhia. Nessa ocasião, Machado se referia como instinto de nacionalidade a
uma espécie de conduta que passava mais pela criatividade intuitiva de se
forjar a realidade nacional do que pelo planejamento racional, do tipo que
aprendemos com Edgar Allan Poe. Ou seja, idealizavam demais o Brasil.
Depois disso,
no ano que o próprio Machado publicava sua primeira obra-prima, Memórias póstumas
de Brás Cubas, em 1881, nascia Lima Barreto, carioca como ele, negro e de
origem pobre como ele, e que décadas mais tarde, já no alvorecer do século 20,
viria a ser festejado por muitos como o “legítimo sucessor da glória de Machado
de Assis”, segundo Francisco de Assis Barbosa, autor da biografia A vida de
Lima Barreto.
Quando Barreto
despontou como grande escritor, na segunda década do novo século, o Bruxo do
Cosme velho já tinha morrido, mas se estivesse vivo, saberia que o autor de Triste
fim de Policarpo Quaresma não só descobrira o Brasil de fato em sua obra
como ultrapassou a barreira do instinto e ofereceu ao leitor uma clareza da
ideia de nação real, criticando o esboço que já existia e apontando para como
deveria ser.
Neste romance,
aliás, nas mesmas linhas que se vê uma sátira do país que se tem, delineia-se a
figura do país que se quer. Ele retrata a realidade social com uma força que a
impulsiona para o futuro, um devir literário que garante a atualidade de seu
olhar sobre a sociedade e sobre o poder. Além disso, mostra de onde viriam os
elementos que se fundiriam e criariam os valores reais da cultura brasileira. É
neste sentido que foi apontado como pré-modernista, mas parece que agora já
está se consolidando no cânone, com justiça, como alguém acima disso.
A tríade que
coloca Lima Barreto entre os autores brasileiros mais importantes são Recordações
do escrivão Isaías Caminha, Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá e Triste
fim de Policarpo Quaresma. Não que Clara dos Anjos, publicação
póstuma, os inúmeros contos, como O homem que sabia javanês, as sátiras
arrasadoras, como em Os bruzundangas, e as demais crônicas, que causavam
admiração entre os velhos e os jovens literatos, não ajudem a compor o quadro
de sua importância. Mas esses três romances são as pilastras de sua obra.
Talvez por uma
questão de preciosismo possa se colocar Triste fim de Policarpo Quaresma
na dianteira, como a grande obra-prima. O próprio autor também o julgava assim,
dizendo em seu diário, conforme cita Assis Barbosa, que este fora escrito
“apenas com o cuidado de fazer obra de arte, sem a ideia fixa do make money
(ganhar dinheiro).” Mas os outros dois não ficam atrás.
Língua, agricultura e poder
Publicado como
folhetim em 1911, no Jornal do Comércio, no Rio de Janeiro, e em livro
em 1915, ambientado durante o governo do Marechal Floriano Peixoto (1891 -
1894) e dividido em três partes, Triste fim de Policarpo Quaresma narra
a história do major que leva o mesmo nome do título. Fala de seu nacionalismo
quixotesco, do apreço por tudo que nasce do solo brasileiro (da literatura aos
tubérculos), da maneira como ele se relaciona socialmente e com o poder, e o
modo pelo qual acabou se perdendo em seus sonhos desvairados de construir uma
nação original, sem a importação dos valores estrangeiros.
Na primeira
parte, o fio condutor das ações de Quaresma é a figura da língua, que abrange os
aspectos simbólicos da cultura, como os livros, a música, as relações sociais.
Quaresma aparece se dedicando ao estudo do tupi-guarani, alegando que este
deveria ser o idioma oficial do Brasil, e vai até as últimas consequências
tentando convencer o Estado de que essa conversão é o primeiro passo para que
sejamos uma nação de verdade.
Na casa dos 40,
Quaresma é um solteirão da classe média carioca que mora com a irmã, Adelaide,
no bairro de São Cristóvão, e trabalha no departamento administrativo do Exército
brasileiro. Não tem ambição nem de política nem de fortuna, e prefere as
amizades com a gente simples, do povo. É amigo, por exemplo, do jovem Ricardo
Coração dos Outros, violonista suburbano numa época em que o violão é
considerado coisa de preto e pobre que não tem o que fazer.
Ao cair em
desgraça e ser motivo de chacota por ter escrito acidentalmente um documento
oficial em tupi, Quaresma enlouquece, é internado em um sanatório e, ao sair,
vai morar na chácara Sossego. Lá, ele dá vazão a seus planos nacionalistas,
substituindo o cultivo do tupi pelo cultivo das plantas. Se antes achava que a
nação precisava de uma língua, agora está certo de que o país precisa de uma
agricultura forte. Vê-se em muitas dificuldades para conseguir preparar o
terreno, plantar, colher e vender seu produto. Percebe o abandono dos negros
após a abolição da escravatura e começa a ter problemas com o poder local.
É do Sossego
que Quaresma tem a notícia da revolta dos marinheiros deflagrada contra o
presidente Marechal Floriano Peixoto e se apresenta como voluntário para
combater os “inimigos da pátria”, quando tudo se põe a perder. É a terceira e
última parte do romance, em que preponderam a análise do Estado e as relações
de poder. Desse modo, Quaresma é apenas um fio que vai tecendo o social e o
político na trama. O resultado dessa tecelagem é o que importa.
A nação e seu devir
Lima Barreto
tinha um senso histórico aguçado, sabia como funcionam os mecanismos sociais
que constroem a História. A importância do primeiro capítulo de Triste fim
de Policarpo Quaresma, e a escolha do autor em começar por aí, se dá por
esta percepção. Em uma das passagens, Adelaide questiona Quaresma sobre a razão
de ele tomar aulas de violão com Ricardo Coração dos Outros, que, para ela, por
tocar um instrumento de malandro e ser mestiço, o professor também era um quase
vagabundo.
“É preconceito
supor-se que todo homem que toca violão é um desclassificado”, responde o
irmão, e em seguida cita Domingos Caldas Barbosa, figura importante da história
da música brasileira, mestre do lundu no século 18, negro que se tornou estrela
na Europa, mas ignorado no Brasil desde aquela época. Lima Barreto deve ser o
primeiro autor a pôr um branco brasileiro citando um negro. Em 2004, o
historiador da música, José Ramos Tinhorão, viria a tirar Caldas Barbosa do
ostracismo com uma biografia completa dele.
Em outro momento,
Ricardo Coração dos Outros inaugura a discussão sobre a poeticidade da modinha
e sobre a inclusão das letras das canções no status de literatura, debate que
se seguiu modernismo adentro até chegar às composições de Chico Buarque,
Caetano Veloso, Gilberto Gil, entre outros, na segunda metade do século 20 e
até hoje. Em uma conversa com Olga, a afilhada de Policarpo, Ricardo diz que os
jornais ao falarem dele e suas composições são injustos: “Todos os críticos se
atêm a essa questão de metrificação. Dizem que os meus versos não são versos...
São, sim, mas são versos para violão.”
O autor viveu
um período de entresséculos e, o que é mais importante para a criação de sua
obra, viveu entre o fim da Monarquia e as primeiras décadas da República, entre
o fim da escravidão e os anos em que não se soube o que fazer com os negros
livres, que viviam sem assistência do Estado, sem educação. “Governo não gosta
de nós”, disse o negro Felizardo, em conversa com Olga.
Triste fim de Policarpo Quaresma é fruto desse
ambiente, em que o autor questiona o poder e satiriza os costumes da burguesia
tupiniquim. As relações de interesse, o culto à cultura vazia (o amor aos
livros, sem lê-los), o racismo (negação aos negros do acesso a tudo, à terra, à
cidadania), a sujeição do mestiço, tudo isso é visível, e muita coisa permanece
atual.
Mas a crítica
política é a mais arrasadora e a mais terrivelmente parecida com nossa
realidade, desde o modus operandi, passando pela burocracia, até o modo como se
usa a máquina do Estado para se assegurar no poder. No início da revolta da
armada, diz o narrador, “mereciam as mesmas perseguições do governo um pobre
contínuo e um brilhante senador”, não eram raras as “vinganças mesquinhas, o
revide de pequenas implicâncias.”
Pois não é raro
também em nossos dias assistirmos a pitis oficiais, perseguições ordinárias das
altas instâncias do poder. Essa semelhança entre práticas tão distantes no
tempo, com recursos tecnológicos e jurídicos tão díspares, nos mostra o quanto
na essência o comportamento humano, de modo geral, e do homem de Estado,
particularmente, não varia muito. Ao mesmo tempo, isso confere a Lima Barreto o
toque do gênio, a fina argúcia, a capacidade de olhar no cerne da vida política
e extrair de lá o seu sumo máximo, o seu fel, como se verificasse com
microscópio cada um dos filamentos do DNA do poder.
Neste sentido,
Lima Barreto, que morreu em 1922, é tão fecundo quanto Machado de Assis. Viveu
menos que este, e seguiu diretrizes diferentes deste. Machado era um filósofo
por excelência, shoppenhaueriano. Barreto era um historiador à Hippolyte Taine,
influenciado também por Capistrano de Abreu. Triste fim de Policarpo
Quaresma não deixa dúvida quanto a sua importância para a literatura
brasileira. Este não é apenas o romance sobre um homem visionário, sonhador, é
sobre uma nação e seu devir.
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