segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Dia D

“O amor é primo da morte
E da morte vencedor
Por mais que o matem (e matam)
A cada instante de amor” (C. Drummond. A.)

sábado, 22 de outubro de 2011

Os desbravadores de mundos



No mundo da leitura, muitas são as maneiras de se buscar um novo livro ou um novo autor. As listas são um exemplo de como as coisas podem ser facilitadas, principalmente quando o organizador é gente da melhor qualidade para indicar alguma coisa.

Não é à toa que Umberto Eco, recentemente, lançou um livro chamado A vertigem das listas, para dizer que esse tipo de exercício vem de época muito remota e sofre mudanças séculos afora. Mas o que nos interessa aqui, neste momento, é um quadro mais variado e recente, de um fenômeno novo no mercado editorial, a lista de pessoas ou acontecimentos ao longo dos tempos.

No Brasil, quem lidera esse tipo de publicação é a Difel, selo editorial da Bertrand Brasil, que por sua vez faz parte do grupo Record. Em 2001, a Difel traduziu As 100 maiores personalidades da história. No ano seguinte, publicou Os 100 livros que mais influenciaram a humanidade, do admirável Martin Seymour-Smith (1928-1998), que havia lançado seu livro na Inglaterra no ano que viera a falecer.

Depois disso, uma série de outros livros com a mesma intenção veio a público pela mesma editora, mas quase todos de edições estrangeiras diferentes, como Os 100 maiores cientistas da história, Os 100 maiores mistérios do mundo, Os 100 maiores líderes militares da história.

Recentemente saiu Os 100 maiores visionários do século XX (Difel, 2011, 452 páginas, tradução de Milton Chaves de Almeida, R$ 49), organizado por Satish Kumar e Freddie Whitefield. Neste caso, cada um dos visionários ganhou um verbete, na maioria, escrito por outros autores que têm um conhecimento profundo sobra a obra do verbetizado. Raros são as autorreferências.

O livro foi publicado originalmente pela editora da revista britânica Ressurgence, que circula há 45 anos debatendo questões sobre o meio ambiente e suas conexões com a sociedade e o modo de vida sustentável. As pessoas que aparecem na lista estão ligadas de alguma forma à publicação, ou por terem escrito artigos para ela, ou por terem sido assunto recorrente em seus editoriais.

Nomes

De Jacques Cousteau e Gandhi a Bob Dylan, o livro se divide em visionários ecológicos, espirituais e sociais. As histórias contadas ali conseguem despertar o interesse do leitor, mas muitos verbetes não dão conta de retratar a luz presente em cada um desses visionários, e mesmo o conceito de visionário fica à deriva, à espera de uma interpretação de quem lê.

Segundo os organizadores, visionários são aqueles que entenderam bem o mecanismo de opressão e das guerras que solaparam o século XX, viram com profundidade a estupidez por trás disso e quiseram denunciar, muitas vezes pagando caro pela iniciativa do protesto. Um dos casos mais conhecidos, que está na lista, é o do líder da consciência negra Martin Luther King, assassinado em 1968.

Se por um lado, alguns perfis não funcionam, como o que buscou retratar Carl Gustav Jung, por outro, quando o autor do texto consegue dar seu recado, as pessoas surgem com a força e o carisma que elas devem ter de verdade, a força que as levou para lista, e aí, é um prazer descobrir a grande aventura humana.

Há nomes que já estão na cabeça do grande público leitor. O que vale, no entanto, é enxergar os que estão distantes do nosso conhecimento, como a ecologista Terry Tempest Williams. O texto sobre ela nos convida a entrar em seu universo, e de quebra já aponta o caminho, sabendo das limitações do espaço que tem para dizer tudo sobre uma mulher fantástica.

“Se quer saber por que precisamos tanto de Terry Tempest Williams e de sua voz no mundo, leia Labor. Leia qualquer texto que ela tenha escrito, mas sobretudo esse ensaio lírico, redigido aos 44 anos, na virada do milênio, pela autora amante da natureza nascida em Utah [Estados Unidos].”

Terry é uma escritora ambientalista. Seus livros chamam a atenção para as diversas maneiras de nos conectarmos com o planeta, coisa que não conseguimos fazer mais. Sua família trabalha com instalação de tubulações no deserto, terra que ela conhece como ninguém. “Seu trabalho é tão político quanto poético”, diz Mark Tredinnick, autor do perfil de duas páginas.

“Ela tem uma eloqüência profética que permite que seus leitores – e os alunos e filhos desses leitores – imaginem que outro mundo é possível e vejam como podem, desde já, ajudá-lo a se tornar realidade”, comenta Tredinnick.

Bravura

Talvez os textos que cobrem os visionários ecológicos sejam os mais instigantes, porque retratam as pessoas menos conhecidas pela grande massa, embora muito respeitadas em seu meio e no ambiente do poder. É o caso da norte-americana Rachel Carson, que enfrentou a poderosa indústria química de defensivos agrícolas e pesticidas, como a Monsanto.

No final dos anos de 1940, havia uma política agressiva de pulverização aérea sobre cidades, fazendas e florestas com o pesticida DDT, nos Estados Unidos. Rachel era contra, e travou uma colossal batalha para impedir essa espécie de limpeza química.

Em 1962, ela publicou o livro Primavera silenciosa, chamando a atenção do mundo inteiro e principalmente da sociedade americana para os problemas que poderiam decorrer daquela política. O então presidente John F. Kennedy passou a dar mais importância ao caso.

Kennedy pediu um estudo detalhado sobre a questão do DDT. Para tanto foi criado “um comitê de investigação do uso de pesticidas, o qual produziu rapidamente um relatório criticando as indústrias químicas e endossando os pontos de vista de [Rachel] Carson.” A batalha vencida pela visionária foi de suma importância para o meio ambiente, mas a guerra continua até hoje.

No campo dos visionários espirituais há nomes como o do libanês Kahlil Gibran (1883-1931), que pedia retoricamente: “mantenham-me longe da sabedoria que não chora, da filosofia que não ri e da grandeza que não se curva diante das crianças.” Pregava a humildade, que para ele era “a interligação entre todas as coisas”.

Vivia modestamente, se dedicando apenas à vida espiritual, escrevendo livros que de alguma forma pudessem levar mensagem de conforto e sabedoria a quem precisasse. Sua frugalidade também era bastante conhecida. Recusava todos os assédios da vida confortável que lhe chegaram após a fama.

“Mesmo na década de 1920, quando a fama – e até a adulação – e alguma riqueza vieram ao seu encontro, ele continuou a morar num estúdio de cômodo único em Greenwich Village, Nova York”, diz o autor de seu perfil, Robin Waterfield.

Bom vinho

Nesse desfile de nomes, outras figuras interessantes aparecem com o crédito de visionárias e ativistas importantes, que ainda dão as cartas em nossos dias. É o caso do italiano Carlo Petrini, criador do conceito de alimentação chamado Slow Food (contrário do Fast Food) e do movimento Terra Madre, mundialmente conhecido, que valoriza a produção de alimentos orgânicos.

Petrini está na categoria de visionário social, mas poderia estar também na de ecologistas. Segundo ele, “o agrônomo que não é ambientalista é idiota, e o ambientalista que não é agrônomo é um caso triste de pessoa.”

Os 100 maiores visionários do século XX é um livro para se ler como quem garimpa em páginas, de preferência tomando um bom vinho, com a calma da degustação. É uma espécie de amostra de grandes espíritos. Quem quiser se aprofundar, que corra atrás dos que lhe chamarem mais atenção. No final, há dicas de páginas na internet de cada um.

(Gilberto G. Pereira. Íntegra do texto publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Pequeno amanhecer de compreensão



O livro Sobre a tradução (UFMG, 2011, 71 páginas, tradução de Patrícia Lavelle, R$ 24), do francês Paul Ricoeur, é um pequeno amanhecer de compreensão do outro. Morto em 2005, aos 92 anos, ele dedicou sua vida aos estudos que convergiam para a interpretação de linguagens, e foi assim que também se embrenhou nessa zona de brumas que é a relação entre nós e o estrangeiro.

A tradução, o entendimento da palavra estrangeira da melhor maneira possível, buscando a verdade do sentimento encerrado em cada vocábulo transportado, foi um dos interesses de Ricoeur, mas apenas nos últimos anos de sua longa vida é que ele veio a escrever sobre o assunto, publicando este pequeno tratado, em 2004, que agora sai no Brasil.

Professor de filosofia da Sorbonne, doutor em Letras, entre seus livros mais importantes estão A metáfora viva, Tempo e narrativa (em três volumes), e A simbologia do mal. Em Sobre a tradução, Ricoeur aponta para um caminho menos dolorido, mas não menos complexo, da profissão de traduzir. Ele começa analisando a tradução pelo viés da psicanálise, colocando-a como uma espécie de pulsão, um desejo.

Resistências

Segundo Ricoeur, traduzir um texto é um ato de mediação que se faz entre o estrangeiro, no caso, o autor, e o leitor. O tradutor está no meio desses dois extremos e precisa contentar a ambos, que resistem, tal como resiste também o próprio realizador da tradução. Tudo fica num impasse de luta, cada um no seu campo.

O autor oferece resistência por meio da língua em que escreve, com suas multiplicidades de sentido, um mundo inteiro que teria de ser transportado, conforme atesta Ricoeur neste parágrafo exemplar:

Não somente os campos semânticos não se superpõem, mas as sintaxes também não são equivalentes; as formas de construção das frases não veiculam as mesmas heranças culturais; e o que dizer das conotações meio mudas que sobrecarregam as denotações mais precisas do vocabulário de origem e flutuam de certo modo entre os signos, as frases, as sequências curtas ou longas. É a esse complexo de heterogeneidade que o texto estrangeiro deve sua resistência à tradução e, nesse sentido, sua intraduzibilidade esporádica.

O leitor consciente, por sua vez, no bojo de sua identidade cultural e nos meandros de sua própria língua que agora recebe a mensagem estrangeira, também vê com desconfiança a tradução.

“Essa resistência do lado do leitor não deve ser subestimada”, lembra Ricoeur. “A pretensão à autossuficiência e a recusa da mediação do estrangeiro nutriram em segredo muitos etnocentrismos linguísticos e, o que é mais grave, muitas pretensões à hegemonia cultural”, avalia. Mas, neste caso, ele se refere mais às culturas europeias, às línguas de lá do que ao leitor brasileiro, por exemplo, muito mais aberto à pluralidade.

Já a resistência do próprio tradutor se refere ao receio de não conseguir realizar sua tarefa. Ele “encontra essa resistência em vários estágios de seu empreendimento. Ele a encontra mesmo antes de começar sob a forma da presunção de não tradutibilidade, que o inibe antes mesmo de atacar a obra.”

As dificuldades não são poucas. Dentro da absoluta consciência do que é uma língua e do que são linguagens, o tradutor procura lidar com as múltiplas barreiras da tradução.

Aceitação

A primeira parte do livro é intitulada “Desafio e felicidade da tradução”. Mas, afinal, onde está a felicidade? Está na renúncia ao ideal da tradução perfeita. Fazer disso um luto e superá-lo pela aceitação de um traduzir possível, abrir-se às novas iluminações que puderam ser trazidas do universo estrangeiro.

Neste caso, com tal aceitação, o tradutor daria ao leitor um ganho sem perda, porque esta já estaria computada na conta do impossível.

“É justamente desse ganho sem perda”, diz Ricoeur, “que é preciso fazer o luto até a aceitação da diferença incontornável do próprio e do estrangeiro.” (...) “E é esse luto da tradução absoluta que faz a felicidade de traduzir. A felicidade de traduzir é um ganho quando, ligada à perda do absoluto linguístico, ela aceita a distância entre a adequação e a equivalência, a equivalência sem adequação.”

A felicidade, portanto, pode ser encontrada pelo tradutor no que Ricoeur chamou de hospitalidade linguística. E isso não é pouco. Segundo o filósofo, a tradução de outras línguas nos ensina, no mínimo, que “é sempre possível dizer a mesma coisa de outro modo”.

Sobre a tradução nos diz muito em poucas palavras. E ainda nos joga perguntas que podem ser úteis na hora de tentar compreender o outro: “Sem a prova do estrangeiro, seríamos sensíveis à estranheza de nossa própria língua? Sem essa prova, não seríamos ameaçados de nos fechar na amargura de um monólogo, a sós com nossos livros?”

Paul Ricoeur é um mestre da hermenêutica e dos estudos fenomenológicos. Seu livro, além de nos dar um ensinamento, acaba sendo uma espécie de consolo para quem traduz, pelo conflito de linguagens, pela sensação de inépcia por não conseguir arrastar toda a carga emotiva e toda a riqueza de símbolos que o tradutor sabe haver ali.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O divã perfeito


Há um bom tempo, a escritora portuguesa Inês Pedrosa vem emplacando seus livros na predileção do leitor brasileiro. Nos últimos anos, ela estreitou seus laços com o Brasil, a ponto de desembarcar na Bahia para ver de perto o cenário de vida e morte do Padre Antônio Vieira, visita que resultou no romance A eternidade e o desejo (2007).

Mas muito antes deste livro com o pé nos calçadões de Salvador, a autora publicara outro que pode ser a gênese dessa aproximação, um livro em que se vê a forma esplêndida de sua técnica para falar de amor e das relações humanas, para destrinchar as leis do afeto em meio à selva do desejo.

Nas tuas mãos (Alfaguara Brasil, 2011, 204 páginas, R$ 37,90) é um dos primeiros romances da autora, de 1997. O que ele traz de especial é a maneira de olhar os sentimentos de três personagens femininos, um ligado ao outro de modo completamente incomum, por meio dos quais o leitor vai sondando o universo das mulheres portuguesas.

A escrita de Inês tem esse poder, quase psicanalítico, de nos transportar para as experiências que só existem na leitura. “Eu sou do tempo da palavra. Aprendi a fazer com que as palavras deslizassem sobre o meu corpo, lentamente, como pétalas caindo no Outono”, diz Jennifer, a mais velha das três mulheres, a primeira a aparecer na trama.

Jennifer está em seu diário, e quem o lê não é aquele a quem as palavras foram destinadas. Quem o lê são os olhos perplexos dos personagens seguintes, Camila e Natália. A primeira tece comentários sobre um álbum de família que vê, é assim que ela aparece na trama, e a segunda, escreve cartas para Jennifer, que jamais receberá, cujo diário é destinado a seu grande amor, que já morreu.

As três estão nessa dança de labirinto. As três querem resolver a questão humana do afeto, querem buscar a razão do amor ou do distanciamento afetivo que a vida muitas vezes nos impõe. Ao sondar a intimidade dessas mulheres, a autora cria uma paisagem nítida do significado possível das relações humanas, que nem sempre é aquilo que aparece.

Entrelaces

Ao apaixonar-se por António, que era apaixonado por Pedro, Jennifer aceitou um casamento de fachada com o primeiro, mas experimentou a solidão do desejo enquanto acompanhava o ardente caso de amor entre os dois homens no quarto contíguo. Por ser o mais voluptuoso, numa briga de casal, Pedro saiu com uma francesa, cujo resultado foi uma filha.

A francesa era militante do Partido Comunista e não pôde ficar com a criança (Camila), doando-a oportunamente para Jennifer criar como se fosse fruto de seu casamento com António. Quando cresceu, Camila se tornou fotógrafa, e, numa viagem à África, se apaixonou por um moçambicano guerrilheiro que morreu logo em seguida à concepção de Natália. Eis o trio solidão.

Sob os entrelaces de um triângulo amoroso, por um lado, e do triângulo afetivo por outro, a autora explora a essência das relações. E faz isso num texto primoroso, que explora a musicalidade das palavras e planta na seara do verbo todo o encantamento dos personagens e suas leituras de mundo.

Cada uma delas quer dizer o que sente. Cada uma delas tem uma visão particular do amor e dos laços afetivos. Ao mesmo tempo, esse olhar lançado sobre o mundo tem o que compartilhar com a sociedade inteira, a portuguesa, claro, mas também a universal. Nenhuma delas, no entanto, fala diretamente a quem interessa ouvi-las.

Jennifer escreve o diário na velhice, Camila organiza seu álbum na meia idade, e Natália, no fulgor de seus vinte e poucos anos, escreve as cartas. Nenhuma delas tem aquela conversa face a face que lava a alma, e só lhes resta transferir o desejo, o imenso amor e o incômodo da solidão, por meio da escrita, o divã perfeito.

“As pessoas passam metade da vida a maltratar-se uma às outras, por medo e necessidade de afirmação”, diz Jennifer em seu diário. Esta verdade bem dita só pode sair de um personagem que já reconheceu seus equívocos e que, no fim das contas, já viveu o bastante para entender o razoável funcionamento da vida.

Neste caso, Inês Pedrosa, que ainda é jovem (49 anos), empresta sua fina capacidade de olhar para a velhice os atributos do personagem mais intenso do romance, o mais apaixonado, o mais lírico e o mais rancoroso. “Dizem que o amor se faz de uma comunidade de interesses subterrâneos, restos de vozes, hábitos que nos ficam da infância como uma melodia sem letra, paixões pisadas na massa funda do tempo.”

Centro e periferia

O livro de Inês também resplandece o brilho das observações sobre a sociedade portuguesa contemporânea, jogando luz sobre o passado recente. Além disso, Nas tuas mãos constrói um jogo de centro e periferia, não só em relação a própria intimidade e o outro, mas também em relação a Portugal e sua ex-colônia Moçambique, Europa e África, razão do velho mundo e o espírito africano.

Como em todo romance epistolar, o leitor aqui é um depositário de expectativas, é aquele que fica esgueirando-se para saber o que passa ao lado. E o que vemos de Portugal pela voz de Natália é um retrato cálido de uma vida aburguesada, bem diferente do que ela mesma tem a nos oferecer sobre a velha África.

Enquanto a noite avançava, os silêncios cresciam em novelos cada vez mais espessos. Lembrei-me das tardes de sábado na casa do Quicas. A porta estava sempre entreaberta, a música – invariavelmente blues – ouvia-se desde o fundo da escada. Cada um contribuía com uma bebida ou umas bolachas. Chegávamos, procurávamos uma almofada ou um canto de sofá, abastecíamo-nos de livros e revistas – o Quicas usava semanas a fio as mesmas calças de ganga preta e a mesma camisa cinzenta, mas tinha uma portentosa biblioteca de arte e banda desenhada – e ficávamos ali, lendo e ouvindo música, em silêncio, horas seguidas. E o silêncio era então um líquido quente que nos envolvia.

Tudo isso, Natália diz à Jennifer. Mas diz, talvez, mais a si mesma. Como fala consigo mesma quando tenta digerir as memórias da África paterna, que ela foi conhecer, menos por força do trabalho de arquiteta do que pelo amor ao pai que jamais conheceu, mas que estava presente sempre em suas palavras.

A África que Natália narra aqui não é mítica, é a pura realidade de uma ex-colônia, e a parte mais dura do realismo presente no livro de Inês.

À primeira vista julguei que o que ali estava, debaixo do néon da loja, em frente ao Ministério, era um monte de trapos empilhados, mas isso seria estranho numa cidade onde o lixo não chega nunca a amontoar-se, porque tudo o que uns deitam fora tem sempre, para outros, um préstimo qualquer. Um pedaço de lã esgarçada com um buraco para o pescoço pode voltar ainda a fazer as vezes de camisola, uma cadeira sem pernas transforma-se em para-vento ou lenha para a fogueira, os sapatos que sobraram de uns pés apagados por uma mina servirão ao próximo que passar no terreno de novo inocente. Na noite de Maputo, todos os montes de trapo têm gente dentro, muitas vezes ex-soldados de dez ou doze anos, que iniciaram a recruta aos cinco anos de idade, nos exércitos da Frelimo como da Renamo, pouco importa, para atirarem a matar a partir dos oito.

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)