quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Teoria da orelha

“O que não existe penetra até mesmo no que não tem frestas.”
Lao-Tzu



Se um dia você for à China e alguém lá, em chinês, te chamar de orelhudo, não se ofenda. A pessoa está fazendo um elogio incomensurável, um elogio do tamanho da orelha que você tem. Para se ter uma ideia do valor desse afago, o grande sábio Lao-Tzu, autor do Tao-te king, era chamado na juventude de Orelha.

Quando envelheceu ficou conhecido como Lao Dan, ou “velha orelha comprida”, que em outras palavras significa “orelhudo de idade avançada”, ou, simplesmente, “velho professor.”

Lao-Tzu era tão orelhudo que nada de sua vida real conseguiu suportar o mito criado em torno de seu elevado espírito. Reza a lenda que ao deixar a corte imperial, onde trabalhava como arquivista, viajou para as montanhas cavalgando um búfalo (“a suavidade conduzindo a força”).

Ao passar a fronteira da cidade, o guarda pediu-lhe que deixasse alguma coisinha escrita, algo que o entretivesse naqueles dias difíceis de crise no reino, de pressão política e estresse emocional, em função da deprimente situação da corte. Lao-Tzu consentiu, e ali mesmo escreveu o Tao-te king, com mais de cinco mil caracteres.

Na minha adolescência comecei a ler trechos do Tao-te king. Logo descobri certas conexões que me levaram a desconfiar da verdade do universo. Imediatamente recuei. Não por sabedoria ou por modéstia. Talvez por medo de me tornar um grande sábio. E eu não estava preparado para tanto. Algo em mim, no fundo (ou no raso) de minha alma dizia que aquele caminho era sem volta. Era alguma coisa semelhante a um barato, como uma maconha bem fumada, ou sei lá, cujo efeito seria para sempre.

Naquele momento, preferi minha ignorância, da qual nunca mais tive a oportunidade de me livrar. Ao começar a ler o Tao-te king e em seguida rejeitá-lo, criei um vazio estarrecedor em mim. Tornei-me um orelhudo de marca maior, mas não do tipo do sábio chinês, mas do tipo brasileiro mesmo. Estou no tao do não-saber, no caminho ig que não leva ao ígneo, mas à ignorância viva. “Jamais me revelarei”.

O não saber de Lao-Tzu o leva ao suportável vazio de tudo poder conter. Seu epíteto de orelhudo é porque sabia ouvir, e por isso era sábio. Minha orelha, pelo lado de cá, é tão (não tao) grande que veda a passagem do som e não me permite ouvir. Tenho duas orelhas e uma boca, mas nem por isso consigo ouvir mais e falar menos. Tagarelo mais que a Anamara do BBB.

Aquele negócio de Lao-Tzu sofrer uma crise existencial de não saber se é uma borboleta ou um homem é suspeito. Tudo é suspeito. A vida é suspeita de não ser vida. Estamos todos mortos na perspectiva infinita do tempo. ‘Viver é um troço muito perigoso’. ‘É muito esculacho nessa vida’.

Uma orelha só não faz o surdo. Um olho só não faz o cego. Uma boca só faz o maior dos estragos. Um cérebro à deriva é um búfalo no arrozal. E esse negócio de orelha faz a gente delirar mais do que o personagem de A lua vem da Ásia, o mais louco, o mais lírico, o mais escondido dos textos geniais de nossa literatura.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

O outro labirinto

Finos traços de uma vida – plena – registrados num livro, dois, três. Duzentos mil estudos não podem captar a alma de um homem, em sua inteireza. Mas uma palavra basta para a gente sondar o mistério do outro. Não quer dizer que vá encontrar a resposta, porque mistérios não têm respostas, apenas sugestões e setas que apontam para outro labirinto.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Teias invisíveis

Foto - Blog Festival de Besteiras na Imprensa
A subjetividade entre a massa: o homem periférico também tem seus tormentos

Gostei tanto do livro A psicanálise nas tramas da cidade (Casa do Psicólogo, 2009, 447 páginas) que vou falar dele mais uma vez, e depois publicar pequenos trechos, no limite da tolerância dos direitos autorais.

Primeiramente queria lembrar uma coisa. Entre os temas da cidade, um dos mais lembrados, junto com o trânsito, é a questão do invisível, tanto que há dois artigos intitulados O invisível nas cidades, de Carlos Alberto Cerqueira Lemos, e As tramas do invisível, de Plínio Montagna.

No primeiro caso, o autor fala das especulações do mercado imobiliário, conluio entre advogados e incorporadores que pressionam para modificar leis e retraçam o perfil da cidade em ações invisíveis. Mas há também o problema da rede subterrânea de esgotos, invisível à superfície, e o mau cheiro de rios poluídos e esgotos a céu aberto, cujas fontes podem até ser vistas, mas seu odor não tem imagem, e é o que mais afeta, em certos lugares.

A manifestação dos outros sentidos também é muito importante e também constituem a parte invisível das grandes cidades, como o paladar, que atrai multidões a bairros gastronômicos, como Santa Felicidade, em Curitiba, e o Bexiga, em São Paulo, ambos tradicionais redutos da culinária italiana. O sabor é invisível, aglutinando pessoas, que são corpos visíveis, mas que se tornam silhuetas à noite, à meia luz nas janelas de casa e apartamentos etc. etc.

No segundo caso, as diversas conspirações, a pulsação da vida privada, o sujeito que, ao agir, interfere na vida do outro, que interfere na vida do outro, que, na soma de mais um, dois, três, vira uma multidão invisível, formando subjetividades que influem na vida da cidade inteira. O invisível aí é sempre o impulso para a ação do sujeito, a mente trabalhando, os sentimentos atuando e sofrendo, a vida latejando a alma e se concretizando no dia a dia.

Invisível inculto

Apesar de tudo, senti falta de uma abordagem mais precisa sobre a periferia. No texto de Manoel da Costa Pinto, A estética do resto, ele lembra um fator importantíssimo: “Não se pode pensar a psicanálise sem a sociedade burguesa.” A psicanálise só sabe pensar o mundo dentro de seu círculo, carregado de saber acadêmico.

Não há um texto psicanalítico que não faça uma citação. Este é o sintoma da burguesia letrada. Não que seja ruim. É o fio da memória, a rede de informações fazendo circular e articular o conhecimento. Mas no caso de A psicanálise nas tramas da cidade, o círculo não se abre muito. Tanto é que o único texto voltado para o assunto da periferia é o do psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita, que não é psicanalista, mas fala de sua experiência com a “terapia comunitária”.

Em Memória e reconhecimento: entre os aglomerados e a pólis, o psicanalista Luís Carlos Menezes também procura situar um pouco a periferia nesse contexto, mas só um pouco, dizendo que o lugar da pólis, da cidade, portanto, é o da memória e do reconhecimento. Os espaços urbanos, no entanto, com migrações constantes, diz ele, “criam evidentemente amplas áreas desvitalizadas culturalmente. São áreas que favorecem o anonimato das pessoas, a destruição das memórias, das referências e, portanto, das possibilidades de reconhecimento.”

Apesar desta constatação, segundo a qual, a periferia (embora o autor não fale nesses termos) é um lugar destituído de cultura, uma área “desvitalizada culturalmente”, Menezes não fecha a porta e reconhece: “Mesmo nestas [áreas], por adversas que sejam as condições, não podemos negligenciar a força das capacidades criadoras de memórias e de sonhos, por caminhos os mais inesperados.” Ou seja, excluiu e depois inclui parte, deixando aberta uma via de discussão, já na conclusão do texto, como uma espécie de terceira via da psicanálise.

O problema da invisibilidade, portanto, passa pelo ciclo de palestras sobre a cidade. E nem mesmo os jornalistas, os críticos de arte e de literatura tocaram no assunto da periferia, invisível nas tramas da cidade. Não há um olhar atento, exato, sobre como a psicanálise pode agir sobre o emaranhado de almas dessa esfera de vida.

É como se a massa nos ônibus coletivos, nos trens e nos metrôs das grandes cidades, moradores de lugares distantes, não se tornassem indivíduos em tempo algum, não fossem sujeitos, não tivessem subjetividade digna de um olhar psicanalítico. Imagina uma mulher num trem lotado, sendo esfregada por tarados, sem poder se defender, e depois chega ao trabalho e o chefe confere-lhe uma cantada, um assédio moral.

É preciso lembrar: o homem periférico também tem seus tormentos. O homem comum ao extremo, que pega ônibus todo dia e vive boa parte de suas vidas dentro desses meios de transporte também sente a tensão das grandes cidades, e como sente. Mas a psicanálise, burguesa em sua origem, típica da arrogância (bem visível e passível de análise) da classe média, não foi capaz ainda, de, num esquema de conferências, falar dessa classe social.

O máximo a que chegou foi dizer que os lugares abarrotados de gente não têm cultura. E a psicanálise só age sobre a realidade cultural, ou melhor, sobre o processo de subjetivação da realidade e da cultura. É ato falho, esse esquecimento? Talvez.

Mas, ainda assim, o livro mantém-se valoroso.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Prêmio São Paulo de Literatura abre inscrições

O maior prêmio de literatura no Brasil está com as inscrições abertas, de hoje até o dia 25 de março. O Prêmio São Paulo de Literatura, realizado pela Secretaria de Estado da Cultura, que entra em sua terceira edição, vai conceder R$ 400 mil, divididos em duas categorias: R$ 200 mil para o melhor romance e R$ 200 mil para o melhor romance de autor estreante. Ambos os livros devem ter sido publicados originalmente em 2009 e em língua portuguesa.

Na primeira edição, realizada em 2008, Cristóvão Tezza levou o prêmio com o romance O filho eterno, e Tatiana Salém Levy ganhou como melhor estreante, com A chave de casa. No ano passado, foi a vez de Ronaldo Correia de Brito, com Galileia, e o estreante Altair Martins, com A parede no escuro, ganharem R$ 200 mil cada um.

O regulamento está no site da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A cidade no divã


O homem da cidade é ele próprio uma cidade inteira. Ou melhor, várias. Todas elas convivendo dentro dele, em sua memória e em sua consciência, devido aos livros que leu, às viagens que fez, às conversas que teve, tudo sendo processado e transformado pela imaginação e pela necessidade de se reinventar, que é inerente a todo ser humano.

Esse conhecimento não é novidade. Escritores e poetas notáveis já cantaram essa pedra. Pensadores da modernidade e críticos também. Basta citar Ítalo Calvino, Carlos Drummond de Andrade, Marshal Berman, Giulio Carlo Argan e Henri Lefevre.

Quando se trata de cidades grandes, esta subjetividade múltipla interessa, e muito, à psicanálise, porque se podem ver ali todos os fenômenos psíquicos originados do confronto entre sujeito e sociedade, indivíduo e coletividade, vida interior e o produto das ações humanas e dos fenômenos naturais.

Não foi por outra razão que a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), em parceria com a Federação Latino-Americana de Psicanálise (FEPAL), realizou uma série de eventos sobre a relação do homem com o espaço urbano das grandes metrópoles, que acabaram resultando num livro fascinante chamado A psicanálise nas tramas da cidade (Casa do Psicólogo, 2009, 447 páginas).

São 32 textos que procuram abranger o máximo de assuntos possível, atuais e urgentes, do ponto de vista da convivência e dos trâmites sociais inseridos no tempo e no espaço. “Cada cidade que habitamos e que nos habita é construída, assim, a partir da trama de pessoas, situações, relações, lembranças e vivências anteriores e atuais”, diz, em um dos textos, o psicanalista e médico psiquiatra gaúcho Claudio Laks Eizirik.

A alma da cidade é, portanto, a alma de todos, costurada em fios como aglomeração urbana, redes sociais, o conflito das novas gerações, a virtualidade e o sujeito, a questão da arte, o papel da memória, o exercício do medo, da sensualidade e do erotismo. Tudo isso configurado no cotidiano, em meio aos mil e um símbolos que constroem a subjetividade, que fazem do sujeito moderno um tipo célere e lotado de mundos.

É a cidade sendo analisada como organismo vivo que ela é, a cidade como portadora de vários conflitos, quase todos gerados na modernidade, potencializados na contemporaneidade, abraçados por fenômenos como violência, velocidade, consumismo, crise de identidade e outros sintomas, para utilizar aqui um jargão psicanalítico.

No artigo “Arte, psicanálise e cidade”, o psicanalista João Augusto Frayze-Pereira chama a atenção para um fator interessante em relação à velocidade nos tempos modernos, que mudou a relação do artista com a cidade, antes obra coletiva, e hoje um conjunto de individualidades jogadas no meio do tráfego caótico. A psicanálise nasceu dentro dessa nova perspectiva. A arte moderna também, como a poesia de Baudelaire, poeta francês que já se sentia perplexo diante do caos, em pleno século XIX.

Desde e a perspectiva de Baudelaire, diz Frayze-Pereira, “o homem é arremessado de encontro ao tráfego, esforçando-se não apenas por sobreviver, mas por manter a própria dignidade em meio a esse espaço caótico.” Talvez o fluxo cada vez maior de carros nas grandes cidades seja o mais emblemático desta crise pós-moderna, porque simboliza um ambiente que necessita da velocidade, recria as concepções de espaço e tempo, da mesma maneira que faz surgir uma geografia do medo e de tensões altamente inflamáveis.

Para um pedestre atravessando a rua, há sempre uma ameaça à sua integridade física. Para um motorista parado no semáforo, saindo da garagem de casa, ou entrando nela, um motorista plantado no trânsito lento de um congestionamento, há de igual modo uma sensação de perigo rondando a alma.

Tudo isso afeta todo mundo de forma direta. E desde Baudelaire, que captara isso em Spleen de Paris e em Flores do Mal, a tensão como produto da vida moderna foi potencializada. Filmes como Traffic também demonstram a que ponto chegou a vida na cidade.

Subjetividade múltipla

Outra proposta interessante do livro é sua capacidade reflexiva. Os eventos giram em torno da psicanálise, procurando mostrar como esta vê a cidade, mas também, como numa sessão de análise, abre espaço para a cidade se mostrar, ouvindo profissionais de outros horizontes.

Estão presentes (com textos ótimos) o jornalista Roberto Pompeu de Toledo, falando sobre a relação de São Paulo com as águas (problema atual e antiquíssimo), o crítico literário Manoel da Costa Pinto, que aborda o que ele chama de estética do resto, o professor de literatura José Miguel Wisnik, com o artigo “Cidade, subjetividade, poesia”, o escritor Ignácio de Loyola Brandão, com uma palestra sobre o erotismo nas ruas noturnas de São Paulo, entre vários outros nomes.

À medida que o leitor vai percorrendo os textos, na sequência ou aleatoriamente, vai se tornando o próprio objeto de análise, porque ele faz parte da cidade. É sua pele e sua alma. Ao adentrá-la nesses textos, torna-se também o analisado, dá um mergulho na subjetividade múltipla da cidade, e, desse modo, pode trazer na emersão de volta um resultado interessante de reflexão sobre si e sobre o outro.

Um exemplo desse exercício psicanalítico são os textos “Intervenções clínicas na comunidade: que psicanálise é essa?”, do psiquiatra Roberto Tykanori Kinoshita, e a entrevista com o cineasta Philippe Barcinski, “Linguagem onírica e linguagem cinematográfica”.

Kinoshita dá um testemunho objetivo, mas emocionante, de sua experiência com as comunidades periféricas. Segundo ele, a ideia de comunidade, numa primeira impressão, não existe. Não existe porque ninguém se identifica de imediato com ninguém. Nas concentrações das grandes cidades, cada um é cada um, para citar um ditado popular.

As pessoas podem até se conhecer, mas não compartilham os problemas, porque se sentem culpadas por serem pobres, sentem-se fracassadas por viverem num ambiente repleno de desgraça e acontecimentos fatídicos. Kinoshita conta que passou a aplicar um método chamado “terapia comunitária”, desenvolvido pelo psiquiatra antropólogo cearense Adalberto Barreto.

“Os psicólogos e psicanalistas arrepiam-se com essa terminologia. É estranho, à primeira vista”, diz Kinoshita, referindo-se ao fato de trabalhar o “complexo de culpa” dos moradores da periferia com a “terapia comunitária”, em que, no lugar de contar suas desgraças, compartilham as experiências de superação, gerando assim um tipo de convivência positiva que pode ser chamada de comunidade.

No artigo “Tempo e ritmo na cidade”, de Maria Helena Rego Junqueira, apenas por uma observação, o leitor consegue entender por que os psicanalistas estranham o método aplicado por Kinoshita, o único no livro a ressaltar diretamente o problema do sujeito da periferia como problema psicanalítico. É que habitualmente, diz a psicanalista, “o que ocorria, até poucos anos, era o entendimento da psicanálise como uma prática privada, exercida em consultórios particulares e destinada a pacientes com poder aquisitivo de médio a alto.”

Segundo Maria Helena, “o surgimento das clínicas sociais das instituições psicanalíticas transformou esse panorama, possibilitando que pessoas necessitadas de análise e que não tinham o poder aquisitivo suficiente pudessem encontrar uma oportunidade de atendimento.” Além disso, a psicanalista dá uma valiosa contribuição ao debate ao abordar a questão do ritmo nas grandes cidades, discussão que pode ser estendida a um centro de porte médio como Goiânia.

Segundo ela, o panorama das cidades contemporâneas, marcado por uma profunda transformação no ritmo de vida, passa pelo acumulo de tarefas, jornada de trabalho cada vez mais extensa, trânsito (sempre ele), congestionamentos, tempo perdido, consumo desenfreado e compulsivo. No pacote também surge o conflito entre a necessidade da satisfação social e, em função disso, a incapacidade de satisfação individual, porque são dois fluxos completamente diferentes.

Cinema, trânsito e psicanálise

O bate-papo com o jovem cineasta Philippe Barcinski, diretor de “Não por acaso”, mediado pelo médico psiquiatra Rogério Nogueira Coelho e Souza, é um dos pontos altos do livro. Barcinski não só dá uma aula de roteiro de cinema, analisando o funcionamento da linguagem cinematográfica, a partir de seu filme, como também analisa a estrutura mecânica de uma grande cidade como São Paulo. Mecanismos estes que interferem diretamente no comportamento do cidadão e, principalmente, do sujeito.

Para lembrar Maria Helena Rego Junqueira mais uma vez, é preciso escutar a cidade como quem escuta um rio em seu curso cotidiano. É desta escuta – de seus fluxos e entraves, expressões e dinamismo feitos de tudo quanto existe, ruídos, pessoas, carros – que nascem os sujeitos, a partir dos quais se cruzam as subjetividades.

Foi esse olhar que Barcinski lançou para compreender São Paulo e fazer “Não por acaso”, ambientado na capital paulista. Além do resultado do filme, ficou impresso na memória, e no livro, a compreensão também da cidade. Em um trecho de sua entrevista, o cineasta explica a diferença entre o trânsito do Rio de Janeiro e do da capital paulista. Os cariocas, diz Barcinski, são mais desordeiros. Bloqueiam cruzamento, param em fila dupla, estacionam o carro na calçada.

Já os paulistanos encaram o trânsito de forma mais ordeira. Veja só. Na visão de Barcinski, a tentativa de ser correto nas obrigações com o tráfego é que causa estresse nas ruas de São Paulo. Isso porque, na cidade onde se procuram cumprir as normas, quem não cumpre é duramente penalizado. No Rio, os motoristas se vingam cometendo o mesmo ato contraventor. Em São Paulo, quem comete uma irregularidade ouve buzinaço e xingamentos, quando não acontece violência maior.

Publicado originalmente no jornal Tribuna do Planalto.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O último crítico brasileiro

Wilson Martins (1921 - 2010): “Não escrevo sobre autores, escrevo sobre livros.”

“O Brasil é o único país do mundo que tem uma história da inteligência escrita por uma pessoa que não prima pela inteligência.” A frase é atribuída a Haroldo de Campos, crítico ferrenho de Wilson Martins, o suposto intelectual burro, autor do monumental História da inteligência brasileira (sete volumes) e de Pontos de vista, reunião de seus artigos para a imprensa brasileira ao longo de mais de 50 anos, em 14 volumes.

Campos, outro gigante que praticamente fundou as diretrizes de ensino de literatura na PUC de São Paulo, já morreu faz alguns anos, em 2003, e Martins acaba de morrer. Faleceu no sábado passado, 30 de janeiro, em Curitiba, cidade onde morava.

Acontece que Martins, ao contrário das invectivas de Campos, era um homem sábio, erudito e seguro do saber que detinha. Foi o primeiro estudioso brasileiro a se debruçar sobre a história da palavra escrita, traçando um perfil das cavernas das letras aos dias atuais.

Muito antes do francês Roger Chartier se tornar famoso pelos livros e palestras sobre o mesmo assunto, décadas antes do argentino Alberto Manguel conquistar o público brasileiro com o ótimo Uma história da leitura, Martins, em 1957, já havia publicado A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca, livro que merece o respeito e a atenção de quem se interessa por cultura humana.

Em 2005, numa entrevista a Norma Couri, Martins comenta o anátema de Campos. “Raciocinar por meio de insultos faz efeito, mas não significa nada.” Nessa mesma entrevista, ele ensina qual é o papel do crítico literário, numa frase também curta, também lapidar. “Não escrevo sobre autores, escrevo sobre livros.” Ou seja, um autor pode ser bom e querido de todos, mas seu próximo livro, ruim. E o fato de ser o autor quem seja não deve impedir o crítico de criticar o livro.

Em outro trecho, Martins continua a aula:

Não é um crítico que forma opinião. É um conjunto de pontos de vista. Um crítico é usado por certa camada da população que tem os mesmos gostos, identidade e ideologia. Os que pertencem a um campo diferente não se reconhecem nele. Pessoas que se dizem guiar pela crítica oral estão cometendo um erro de perspectiva: porque os amigos leram as críticas. A crítica oral é poderosa e o que se acaba formando é a média de opinião.

Wilson Martins nasceu em 1921, em São Paulo, mas foi morar em Curitiba muito jovem, onde começou a dar aulas, na Universidade Federal do Paraná. Depois foi para os Estados Unidos lecionar na Universidade de Nova York e ficou lá por mais de duas décadas. Aposentou-se e continuou atuando como crítico aqui no Brasil, escrevendo para O Globo, do Rio de Janeiro, e Gazeta do Povo, de Curitiba.

Um de seus alunos brasileiros lembra as aulas em Nova York, num texto comovente, agora após sua morte. Marcelo Tas escreveu em blog no dia 1º de fevereiro:

Em 1987, fui morar fora do Brasil, com uma bolsa da Fulbright, para estudar cinema na NYU- Universidade de Nova York. Alertado por um amigo- o designer Marcello Dantas- passei a frequentar uma concorrida aula de Literatura Brasileira, que acontecia toda semana num prediozinho antigo, de quatro andares numa travessa que levava à sempre agitada Washington Square.

Para minha surpresa, esses encontros em torno de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Aluizio Azevedo em plena Manhattan me fizeram reaprender a olhar o nosso país. O curso era ministrado pelo mestre Wilson Martins, crítico literário, que cativava a todos com sua inteligência, sagacidade e humor.

Tinha muito gringo que aprendia português só para não perder a chance de saborear os trechos dos clássicos da nossa literatura que Martins fazia questão de ler na língua pátria.

Para fechar o adeus ao mestre, segue um pequeno trecho da entrevista concedida a Norma Couri por este que talvez seja o último dos grandes críticos brasileiros.

NC - O senhor vê a literatura do Paulo Coelho como amador.

WM - Paulo Coelho não é fenômeno literário. Do ponto de vista literário ele não é nada. Como fenômeno, ele é sociológico. Responde a um estado de espírito generalizado e faz sucesso no mundo inteiro. Pega parábolas bíblicas e reescreve seculares lendas árabes, cola aquilo tudo e faz o livro. Uma espécie de vidente. A injustiça é julgar isso como literatura.

NC - Mas o senhor também criticou o Nélson Rodrigues, que era popular.

WM - Popularíssimo, ficou mais ainda depois da biografia do Ruy Castro que, na verdade, reinventou o Nélson, conferiu a ele uma estatura que ele não tinha e que sua obra, marcada pela psicanálise amadora, não justifica. É preciso esclarecer um dos grandes mal-entendidos deste século. O sucesso de Vestido de Noiva deve-se à montagem do Ziembinski. As peças do Nélson são provocativas, famílias com 15 adultérios, um caso a estudar acrescido da reconstrução que o livro do Ruy Castro executou.


Leia a entrevista na íntegra no Jornal de Poesia.