sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Grimm, uma fabulosa fauna de presas e predadores: metáfora do que somos

“Eu não acredito em monstros, a não ser que sejam pessoas.” Sean Renard, capitão da polícia de Portland, chefe de Nick Burckhardt

“Os hospitais psiquiátricos estão cheios de pessoas tentando explicar as coisas que viram e não conseguem explicar.” Monroe, relojoeiro, blutbad e amigo de Nick Burckhardt

“Tem coisas que a gente não entende nesse mundo, o que não quer dizer que não existem.” Hank, parceiro de Nick Burckhardt na polícia de Portland, depois de se iniciar no mundo Wesen

 “A realidade está aberta a interpretações.” Héctor, um chefe indígena

 
Grimm, série produzida pela NBC entre 2011 e 2017: em cartaz no SyFy, da Globosat (TV paga), de segunda à sexta, às 12:35 e às 22 horas

A série Grimm se despediu do público periódico em 2017, na sexta temporada. Mas no dia 6 deste mês fez outra despedida, saiu da grade da Netflix, e vai deixar muita gente com saudade. (O texto a seguir contém spoilers e um monte de nomes e cenas).

Grimm é uma fabulosa fauna de presas e predadores metamorfoseados de gente, o que no fundo, sabemos, é uma metáfora do que somos. Pedófilos, como o lobo mau do primeiro episódio, estupradores, assassinos, exploradores inescrupulosos e seres indefesos, eternas vítimas, desfilam na trama dessa série espetacular.

O interessante disso é que, à luz de Darwin, nós humanos somos os seres mais complexos da evolução, estamos no topo, e tudo que está para trás é um tipo de rastro que deixamos. Daí fazer muito sentido a metáfora da vida pelo viés da nossa monstruosidade escondida.

O protagonista é Nick Burckhardt (David Giuntoli), investigador da polícia e Grimm, cujos ancestrais caçavam Wesen, seres de aparência humana, mas de essência animal, de diversas espécies: leão, águia, lobo, cobra, vermes, minhocas etc. 

Só os Grimms veem essa essência, quando algum Wesen voga (aparece como é), em estado de medo ou sob forte emoção (vogam também pra todo mundo ver, mas é raro). “Um Grimm é uma pessoa que consegue ver através das trevas, alguém que vê coisas que as outras pessoas não entendem”, diz Monroe, amigo de Nick.

E se forem reais?

Produzida pela TV americana NBC, de 2011 a 2017, Grimm foi estruturada dentro dos gêneros de fantasia, policial e ação. No Brasil, a série teve o título de Grimm: contos de terror, exibida na Record, no Universal Channel e na Netflix. Saiu da grade desses canais, mas está em cartaz no SyFy, da Globosat (TV paga), de segunda à sexta, às 12:35 e às 22 horas.

O nome, obviamente, vem dos irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859), dois linguistas, poetas e escritores alemães que coletaram e organizaram vários contos de fadas na Prússia (atual Alemanha) e se imortalizaram por isso. Eles são citados na série como os primeiros ancestrais de Nick e dos raros Grimms que ainda andam por aí caçando “monstros”.

Essa origem justifica o fato de os nomes que envolvem os animais e teorias no mundo da série serem quase todos em alemão. Wesen, por exemplo, quer dizer ‘criatura’, ‘essência’, ‘natureza’, ‘caráter’, segundo o Pequeno Dicionário Michaelis Alemão-Português/Português-Alemão.

A ambientação é na cidade de Portland, no Estado de Oregon, EUA. O tempo é a contemporaneidade, começando em 2011, que é o ano de estreia da produção criada por Stephen Carpenter, Jim Kouf e David Greenwalt.

Embora os Grimm sejam impiedosos caçadores de Wesen, Nick é diferente. Ele segue a lei dos humanos (kehrseite). Prefere prender quem comete crimes, “tem distintivo e consciência”, não sente vontade de matar Wesen a torto e a direito. Quer dizer, mata muitos, mas apenas quando estes são assassinos brutais e não há o que fazer para pará-los.

A premissa que justifica a trama é colocada na boca de um dos personagens no Episódio 21 da primeira temporada: “E se todas as histórias que ouvimos não forem só histórias? E se forem reais?” Pois é. Eis a questão.

O lobo bom e a bela raposa

O personagem mais interessante da série é Monroe. Ele aparece nas primeiras cenas do primeiro episódio, e se torna um grande parceiro não oficial de Nick Burckhardt. Monroe é relojoeiro, além de Wesen. É um blutbad (piscina de sangue, em alemão), essência do lobo, mas é vegetariano, justamente porque abandonou a vida louca dos carnívoros.

Ele é engraçado, companheiro, tem um senso de humor refinado, é culto e adora música. Sobre talento genuíno, uma vez ele disse: “Talento é um dos mistérios da vida, ninguém sabe de onde vem, mas é o que nos eleva da tristeza do comum.” 

 

Toca violoncelo. Seu repertório é sofisticado. Aprecia Mozart, Bach, Brahms, Rimsky-Korsakov. Lê livros, fala alemão, e anda num fusca bege com o para-choque traseiro esquerdo cinza.


Uma vez, conversando com Rosalee, sua mulher, sobre a velhice e a solidão na morte, Monroe disse que os dois envelheceriam juntos e morreriam juntos, e então citou o trecho de um poema de W. B. Yeats: “But one man loved the pilgrim soul in you,/ and loved the sorrows of your changing face.”

Os versos são do poema “When you are old” (“Quando você estiver velha”, em tradução livre), do livro Early Poems II: The Rose, que pode ser traduzido assim (sem métrica): “Mas um homem amou a alma peregrina em você,/ e amou os sofrimentos de seu rosto mudado.” É um romântico.

Rosalee é uma fuchsbau (raposa) incrível, que sabe tudo de ervas. Mudou-se para Portland para resolver questões da morte do irmão e conheceu Monroe. Ela então decidiu continuar lá, vendendo produtos naturais para fazer todo tipo de poção mágica e unguentos.

Os dois personagens são muito bem construídos, e contam com boas atuações. Silas Weir Mitchell (Monroe) e Bree Turner (Rosalee) têm uma química que deu muito certo ao longo de todas as temporadas. Eles são um dos casais mais cativantes já vistos numa obra de ficção.

Além de Nick, que vê coisas que os outros não veem, Juliette, que é veterinária e talvez fosse ter um papel diferente na série, mas acabou se desenvolvendo de um jeito menos hortodoxo, Rosalee e Monroe, os outros coadjuvantes são Hank Griffin, policial parceiro de Nick, Wu, outro parceiro de Nick, e Trubel, uma bela e jovem Grimm que entra na trama mais tarde (Ep 19, Temp 3).  

O elenco principal ainda tem Bud Wurstner, um eisbiber (castor) amigo de Nick, medroso que só ele, mas muito família, Adalind Schade – hexenbiest (bruxa) de personalidade inconsequente, que está sempre fazendo o mal e ferrando os outros e a si mesma – e Sean Renard, chefe de Nick e um zauber-biest (bruxo) que oscila entre o bem e o mal (algo que parece ser da natureza dos bruxos).

No mundo da série

O fulcro da trama são os crimes cabeludos do ponto de vista das pessoas normais, ou seja, kehrseite (se sabem sobre os wesen, são kehrseite-Schlich-Kennen; se não sabem, são kehrseite-genträger).

Em um dos episódios, Nick investiga o tráfico de órgãos feito por Geiers (urubus), incluindo vesícula biliar humana seca, que os Wesen usam para tomar com chá branco. 

“Os Geiers praticam medicina alternativa, usando partes de animais exóticos como vesícula de urso, chifres de rinocerontes, e órgãos humanos para aprimorar criaturas. Isso funciona bem. Nossos animais exóticos são vocês” diz Monroe a Hank. 

Em outro episódio, Nick salva uma seltenvogel (pássaro raro, em alemão), quase extinto, que geralmente é mantido aprisionado como concubina ou periquito, por klaustreiches (um tipo de gato). Os klaustreiches seduzem as seltenvögel, aprisiona-as e as exploram.

O roteiro opera no registro de estereótipos. O castor é encanador, e não advogado. Hexenbiests e zauber-biests (bruxas e bruxos) é que lidam com a lei. Urubus procuram a morte, leões estão no topo. 

Mas também explora o avesso dos arquétipos, mudando o significado fabular. Logo, há o porquinho que mata lobos, a Cinderela que persegue e mata as meias-irmãs. Há o lobo bom (Monroe). 

A versão da bela adormecida também está modificada. Vem como registro de ironia à contemporaneidade, com Juliette entrando em coma por causa de um feitiço de Adalind, e Renard (que além de zauber-biest é um príncipe bastardo) tendo de se purificar para dar um beijo (puro e verdadeiro) na Juliette, despertando-a, à revelia do conhecimento de Nick.

“É um processo de purificação. A pessoa que acordá-la tem de ser puro de coração. É impossível achar alguém assim hoje em dia, então fazemos isso quimicamente”, diz a mãe de Adalind, expert na alta bruxaria.

Outra coisa importante no centro da série é o trailer herdado por Nick da sua tia Marie. É pleno de armas medievais (Besta, Kanabo, Balestra, Rifle de ogros) e de livros em vários idiomas, como árabe, japonês, alemão, espanhol, italiano, latim, descrevendo as características dos Wesen e como matá-los. 

“Este lugar é tipo o Arquivo Nacional, ou uma espécie de Smithsonian de Grimmnologia. Só o valor histórico de tudo aqui é...”, diz Monroe, devorador de cultura, completamente apaixonado pela riqueza do acervo. 

O trailer tem uma biblioteca com as crônicas dos Grimm, e agora, Nick está escrevendo as suas também. “Tem cada coisa espetacular nesse trailer”, diz Monroe (Ep 20, Temp 1). "Acho que nunca vou me cansar daqui. Eu poderia passar dias aqui”, diz Wu (Ep14, Temp4), quando se inicia no mundo especial. 

Escuridão infinita

Se por um lado, um Grimm tem o poder de ver os Wesen ao vogarem, nesse momento, eles também o reconhecem, e geralmente entram em pânico ou fúria, pois ao longo de séculos os Grimm caçavam e matavam Wesen. Agora, são raros. Para muitos, não passam de uma lenda.

“Os Grimm não tinham compaixão ou consciência. Matavam homens, mulheres, crianças, animais. Eles tinham um esquadrão da morte, e vagavam pelo interior do país cortando cabeças, arrancando olhos, braços, pernas, testículos”, diz Monroe (Ep 10, Temp 2). 

Quando um Wesen voga diante de um Grimm, vê nos olhos deste “uma escuridão infinita, e, refletida nela, vê também sua verdadeira natureza Wesen”, diz Monroe. Ou seja, vê sua própria animalidade.

Onça pintada

A série explora as diversas fábulas e todos os cantos do imaginário humano, indo da psicodelia às sondagens do inconsciente. Deve ser um prato cheio para estudiosos da psicanálise que seguem a linha de Bruno Bettelheim. Lendas de todos os continentes são abordadas.

Do Brasil, há inclusive uma que inspirara João Guimarães Rosa para um conto muito famoso, “Meu tio o Iauaretê”, que consta no livro Estas estórias, de 1968. Na série, o animal aparece como yaguareté (onça pintada, no Brasil), uma lenda guarani cujo relato diz que o yaguareté é uma pessoa encantada.

Várias outras lendas da Amazônia são narradas em Grimm, mas se fôssemos exigir precisão, queríamos a presença pelo menos do Saci Pererê, Mula Sem-Cabeça e da Iara. Sua prima, a sereia, foi lembrada.

Apesar de se intitular Grimm: contos de terror, em português, e de fato haver uma estética de fantasia com violência e certo grau de macabro, geralmente as tramas não assustam. Mas são definitivamente um thriller bem contado.

Susto e perplexidade

Como espectador, a história que mais mexeu comigo, talvez entre aí algum componente do inconsciente, foi o episódio “A Chorona”, fantasma de mulher que chora e rouba crianças (Ep 9, Temp 2). A mãe afogou os três filhos por vingança porque o marido a trocara por uma mulher mais jovem. (Quase Medeia). Como consequência, ela se matou e virou esse fantasma assustador.

Assusta-me, talvez porque seja uma história de almas. Não acredito em fantasmas, mas eles não dependem de minha crença, ou da falta dela, para existirem. Nick solucionou o caso, mas não venceu o espírito transtornado, que não era exatamente um Wesen.

Se umas histórias até assustam, outras causam perplexidade, qualidade característica do terror, como o episódio 18 da 5ª temporada, sobre uma família de barbatus ossifrage (um tipo de abutre – como o real Gypaetus barbatus), que quebram ossos para comer a medula (tutano).

Os pais são dois velhinhos que moram num trailer às margens do rio. O filho espreita vítimas à noite num dos parques da cidade, sentindo um tipo de aroma da morte. Ele as atropela várias vezes, quebra bem seus ossos e então usa sua técnica de Wesen para sugar pela boca da vítima a papa de carne e osso dissolvidos no corpo, ficando só a estrutura física de couro e pele.

O filho vai até os pais que estão de bico aberto esperando a refeição. Ele regurgita tudo no bico dos progenitores. Os pais fazem chantagem moral para cobrar comida do filho. “Você é um bom menino”, diz o pai. “O que nós faríamos sem ele?”, pergunta a velha mãe. “Passaríamos fome”, responde o velho e cansado pai.

Quando está caçando, arrastando as vítimas, o filho protesta em voz alta: “Só reclamam. Egoístas! E a minha vida? Espero que morram!” Nick e Hank descobrem quem é o sugador de tutano, e o perseguem. Ele é atropelado e morre. Os pais, velhinhos, vão reconhecer o corpo do filho todo amassado no necrotério.

“Esse é o nosso Charles”, diz o pai. “Era um menino tão bom”, diz a mãe. Quando os investigadores saem, os velhinhos olham um para o outro, ainda chorando, e a mãe diz: “Ele não pode ser desperdiçado assim.” E o velhinho: “Tem razão. Vai você primeiro.” E sugam pela boca os ossos triturados do filho.

A trama virou outra

Grimm foi espetacular até o último episódio da quarta temporada. Depois disso – salvo raras exceções, como o episódio dos barbatus ossifrage e um na sexta temporada sobre uma cigarra que hiberna enterrada no chão, junto com um corpo para se alimentar por sete anos, voltando ao mundo dos vivos por 24 horas para buscar mais um corpo –,  tornou-se apenas o resíduo de uma usina criativa e original. 

O roteiro tomou outro rumo, começou a misturar lenda com mitologia e acabou desembocando na exploração de arquétipos religiosos e premissa de física quântica. 

Os produtores gostam de saturar uma boa ideia. Uma série é uma criaturinha que vamos alimentando, e quem vê vai gostando, mas que se tornará fatalmente um monstro incontrolável.

O ideal seria parar antes, no momento exato, e não matar o monstro. Seria melhor liberar a criatura e deixá-la partir para a selva enquanto temos dela os melhores sentimentos. É raro isso acontecer. 

Geralmente, os roteiristas exploram até a última hora de criatividade e não percebem que já passaram do ponto, que a premissa original já foi pro espaço e a trama virou outra.

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