Foto: Black History Album
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The Savoy Ball Room (1926-1943), famosa casa de jazz no Harlem: “Elas acham que eles sabem antes da música o que suas mãos e pés têm de fazer, mas essa ilusão é o impulso secreto da música” |
Se literatura é a arte de revelar destinos, Jazz (Companhia de Bolso, tradução de José Rubens Siqueira, 2009, 216 páginas), romance magistral de Toni Morrison, é uma luz poderosa dessa arte, focada sobre o universo dos negros no bairro do Harlem, em Nova York.
A primeira cena é de Violet, na casa dos 50 anos, indo ao velório para cortar o rosto da defunta Dorcas no caixão, que havia sido assassinada por Joe, também quinquagenário, marido de Violet. Dorcas tinha 19 anos, e era amante de Joe.
O que vem depois é um furor narrativo em que presente e passado se fundem, recuperando a fundo o fio fulcral de cada personagem, de onde vêm e como se colocam em Nova York, como se constroem e se destroem na cidade, como dançam a música tocada, como sentem a dura vida diária dos negros, resgatando sua história até chegar ao motivo real pelo qual Dorcas fora morta e como morrera, enquanto o destino de todos é revelado.
Publicado em 1992, um ano antes de a autora ganhar o Prêmio Nobel de Literatura, o romance é ambientado em 1926, numa época em que os negros americanos viviam o apogeu da criatividade e do exercício livre da inteligência, no movimento chamado Renascença do Harlem.
A vida dos negros não era fácil em lugar nenhum, mas no Harlem criou-se um oásis para muitos. Eles migravam do Sul em busca de oportunidades, e Nova York foi o lugar onde encontraram boas perspectivas. Nova York era a Cidade. Os negros mais brilhantes estavam no bairro que Paul Robeson, um desses gênios, chamaria de “cidade dentro de uma cidade, metrópole negra da América.”
Mas não só os deuses negros da literatura, das artes cênicas e da intelectualidade, como Alain Locke, Langston Hughes e Louis Armstrong (idas e vindas), estavam marchando para aquele nordeste. As pessoas comuns também. E é nesse universo que se inserem os personagens de Jazz.
Para estas pessoas comuns, viver no Harlem não se comparava à dureza que enfrentavam em seus lugares de origem, mas era áspero. À medida que a narradora avança sobre a conturbada relação desse triângulo amoroso, vamos descobrindo suas pegadas sobre o chão da vida.
Palavras vorazes
Em Jazz, o leitor se depara com uma força narrativa impressionante, com palavras desencadeadas como se saíssem da fissura de um átomo, aceleradas e explosivas, “palavras vorazes, atrevidas, soltas e enfurecedoras”, falando de amor, beleza, violência e sexo, racismo e exploração, pobreza, intolerância e esperança, em meio à desconfiança de que a nova atmosfera da Cidade e seu céu noturno, essa atmosfera do pecado, estivesse sendo afetada pela nova música que agora invadia a alma de todo mundo, dos adultos e das crianças, se deixasse.
Em meio a tudo isso, a condição da mulher. Em meio a tudo isso, um frêmito corre pela espinha dorsal da mulher que narra, desdobrada em duas, multiplicada em muitas, todas, todas as mulheres negras, todas as amantes, filhas, mães, amigas, todas em uníssono, e muitas vezes o leitor nem se dá conta de quem está narrando. Entre elas, só um homem narra, Joe.
A tonalidade do jazz marca o fulcro narrativo, metaforizando o sexo, o ritmo, a pulsão da existência naquele lote do mundo. “Se fechar os olhos o topo dos edifícios, mais e mais perto do que o gorro que você está usando, um céu urbano desses aperta e afasta, aperta e afasta, e me faz pensar no amor livre, mas ilegal, de namorados até serem descobertos.”
O jazz lembra esse amor louco entre Dorcas e Joe. Eis a associação tácita da narradora principal, que a rigor é Violet, a outra ponta do triângulo, a ponta mais vulnerável, a ponta mais sensível, a que eleva a Cidade e a vida na Cidade às alturas, onde tudo gira e dança ao som de um trompete imaginário. Em determinado trecho, ela diz: “Só ouvir a música era como violar a lei.” Essa música que “embriaga mais que champanhe.”
O jazz é uma mistura de sons, uma geleia bem batida e trançada com pancadas céleres e sopros ritmados, despertando desejo, emergindo o prazer pelo corpo todo. O jazz são as pessoas no auge da vida, vivendo, e é a Cidade sendo vivida, e vívida, dando vida.
O jazz é a mistura dos corpos, todos eles, formando um corpo entre tenso e sutil, um corpo maior, carregado de volúpia e energia, que se descarrega em júbilo e pecado. Nova York é o próprio jazz no romance de Morrison. Por isso mesmo, chamada de a Cidade, ganha status de personagem sedutora e má, salvadora e anjo, voluptuosa, aconchegante para quem vem de fora, cativante, avassaladora, contraditória, aprisionadora, opressora.
“A Cidade é assim de esperta: cheirosa, boa, parece obscena; envia mensagens secretas disfarçadas de sinais públicos; por aqui, abra aqui, perigo para alugar negros só solteiros à venda precisa-se de funcionária privativo stop absolutamente proibido cães no local não pague agora frango fresco entrega grátis rápida. E boa em abrir fechaduras, escurecer escadas. Encobrindo seus gemidos com os dela”, diz a narradora. “A Cidade faz você endurecer.”
Realidade
O romance pode ser dividido em dois níveis espaciais. Num primeiro nível, orbitam as figuras da mulher, a cidade, a música, a volúpia, a sedução. Num segundo, o desejo, os homens, a violência, o sexo, e tudo que não presta, incluindo o racismo que abraça a todos os negros.
No plano geral, tudo se mistura, e a música toma conta de todos, como demonstra uma cena de pessoas dançando jazz. “Debaixo da luz do teto, casais se movem como gêmeos nascidos com, se não para, o outro, sentindo a pulsação do outro como uma segunda jugular. Elas acham que eles sabem antes da música o que suas mãos e pés têm de fazer, mas essa ilusão é o impulso secreto da música.”
Neste sentido, o jazz também é personagem. Ele está sempre atravessando a ação, redimensionando os espaços, soprando vida nas ruas e nos ambientes fechados, dando sentido ao movimento das pessoas. “Quando entram, a música sobe até o teto e sai pelas janelas abertas para ventilar.” A habilidade de Morrison para dar espessura às cenas é notável.
A trama deixa emergir a realidade da Cidade, mas, sobretudo, a realidade das mulheres negras, a pobreza, a vida de trabalho duro, uma realidade nada diferente da mulher negra brasileira, nem no amor, nem na violência, muito menos na pobreza (pobres, elas usam pano de camisa velha para fazer absorvente, por exemplo).
A diferença talvez esteja no fato de a trama ser de 1926, há quase um século, portanto. A mulher negra nos EUA hoje alcançou um status novo, embora a pobreza ainda atinja muitas delas, e a violência ainda as persiga, mas há uma elite negra em que elas têm um papel fundamental em seu desenvolvimento. Diferentemente do Brasil.
As mulheres se armavam, porque, se não tivessem proteção do marido ou do dinheiro que pudesse comprar sua segurança, e não se armassem, morriam. Elas se armavam de “navalhas, de pacotes de soda cáustica, de cacos de vidro presos com fita nas mãos. (...) Qualquer outro tipo de mulher negra desarmada em 1926 estava silenciosa, louca ou morta.”
E esse era o oásis. Esse era o melhor dos mundos para os negros na América, à exceção, talvez, de Washington. Tirando esse oásis, a realidade do negro era tão dura que a tia de Dorcas, que a criou desde menina, não se via encorajada a denunciar o homem que matara sua sobrinha.
“Um homem havia entrado em sua sala e destruído sua sobrinha. A mulher dele tinha ido ao velório para atormentá-la e desonrá-la. Ela teria chamado a polícia para ambos se tudo o que sabia sobre a vida dos negros tornasse isso ao menos possível de considerar.”
No que diz respeito à realidade da mulher negra em Nova York, Dorcas é o símbolo dessa violência. Tudo aquilo que ela representa surgia na imprensa todos os dias, mas Alice, sua tia, só veio a se dar conta após o crime. “O jornal expusera algumas mulheres violadas. Homem mata esposa. Oito acusados de estupro liberados. Mulher e menina vítimas de. Mulher comete suicídio. Atacantes brancos indiciados. Cinco mulheres presas. Mulher diz que homem bate. Num ataque de raiva homem.”
Campos de violência
A música, sedutora e condutora de energia, ao mesmo tempo encantava e assustava as mulheres. Os homens estavam mergulhados nela. A música, para Alice, é a autora da libertinagem. Mas para Dorcas, é libertadora das amarras impostas pela tia, que queria salvá-la dos homens, todos eles, os negros e, sobretudo, os brancos (garotos brancos de 11 anos, fuja deles).
Como notas que se misturam em síncopes, a narrativa traz a violência contra a mulher negra, praticada por seus parceiros negros, e ao mesmo tempo expõe a violência contra os negros pelo racismo dos brancos. Os dois campos de violência dançam dentro da trama.
A doçura disso tudo não está nas extremidades, está no cerne dessa confusão. A aproximação de Joe Trace a Dorcas, por exemplo, se deu quando ela levou um fora (improviso da vida cantado no improviso do jazz) e estava se sentindo vazia, vazia de tudo, inclusive da única coisa que possuía de verdade, seu corpo, que acabara de ser rejeitado junto com todo o seu desejo de se oferecer, e ser aceita, a um homem.
Joe a observava. O improviso que condenara a menina deu a ele uma chance de sugar a juventude dela. E ele a encheu de doces e mimos, encheu-a de amor e de presentes, até que ela encheu dele.
O ritmo da narrativa é marcado pela tensão entre o corpo reprimido e a música que convida pela sua liberação de som, de vibração. Essa troca de passes, esse bailado jazzístico, acaba mostrando que a realidade dura da vida em Nova York é suave diante da brutalidade que era ser negro no Sul ou em outros lugares dos EUA. Essa parte também é a parte do cerne.
Por trás de cada nome, nos bastidores de cada personagem que surge no palco para cantar e dançar a música da vida, o seu jazz, há um lastro de dificuldade, uma base de blues, um solo forrado de tristeza, herança da escravidão, um legado de abandono e esquecimento.
São quase todos órfãos. Na história de cada um, alguma desgraça se abateu. Até mesmo Dorcas, nova-iorquina, convivia com a dor de ter perdido os pais num incêndio quando tinha seis anos. Alice tinha matado o marido, e acabara fugindo para a Cidade. “Em algum lugar em Springfield sobraram só os dentes. Talvez o crânio, por que não”. Matara por ciúme, porque o estava perdendo para outra.
O aprendizado da dor, a experiência intima de Violet também é forte. Quando criança, encontrou a mãe morta num poço de águas rasas, havia se matado. Foi criada pela avó em Rome, no Estado da Geórgia. Esse golpe do destino deixou uma sequela invisível nos seus traços externos. Violet era bonita, mas tinha problemas psiquiátricos.
Por tudo isso, pela experiência do suicídio da mãe, pela experiência do racismo, da exploração, da pobreza, Violet não quis ter filhos. “Acontecesse o que acontecesse, nenhum pezinho escuro ia descansar em cima do outro enquanto uma boca faminta dizia: Mamãe?”
Nascida na década de 1870, Violet ficava se perguntando por que a mãe se matara. A pergunta ecoa no imaginário do leitor guarnecido com a história da diáspora. “O que terá sido, eu me pergunto”, e aí é ela mesma se revelando como narradora, “a coisa única e final que ela não foi capaz de suportar ou repetir? Teria a última lavagem rasgado tanto a camisa a ponto de não dar mais para remendar e seu nome mudou para trapo? Talvez ela tenha sabido dos quatro dias de enforcamento em Rocky Mount: os homens na terça-feira, as mulheres dois dias depois. Ou teria sido a notícia do jovem tenor do coro mutilado e amarrado a um tronco?”
Dança da vida
Aos 17 anos, Violet encontrou Joe Trace. Os dois se apaixonam e começam a viver as dificuldades da vida juntos, até que vão para Nova York, onde, muitos anos depois, ele se apaixona por Dorcas. “Com ela eu era jovem, novo outra vez.” Mas, antes disso, na noite escura de sua história, Joe também se construiu como pôde.
Antes disso, antes desse amor clandestino, Joe também viveu como pôde. Era órfão. Foi criado por outros desde seu nascimento. A ausência dos pais doía tanto quanto a presença de um caco de vidro no seu pé, e ignorava este tanto quanto aquele.
Joe descobriu que era filho de uma louca que morava largada no mato como uma selvagem, e a matou. Matou-a por amor, para não vê-la sofrer, justifica-se em segredo, como mataria Dorcas por amor, para não sofrer.
Em Jazz, as famílias negras são quase todas assim, desmembradas em sua origem, sempre faltando um pai, ou uma mãe, ou ambos, e todos marcados pela violência física ou psicológica, ou algum outro tipo de violência como a exploração do trabalho do negro, a expulsão de suas terras. Mas tudo isso vem contado pelo embalo do jazz, pela dança da vida, tudo cadenciado por uma musicalidade e uma aparente alegria de viver no burburinho da Cidade.
Se se cavasse um pouco mais no terreno da história deles, chegar-se-ia ao cerne da escravidão, e à origem da diáspora, a própria África. Começava lá, na capturarão dos negros que seriam escravizados, o esfacelamento familiar, e durante a exploração escravagista continuava, separando as mães de seus filhos, as mulheres de seus maridos. E essa sina continua história adentro até chegar ao núcleo cuja desventura é narrada em Jazz.
A força narrativa, a capacidade de criar, a vitalidade estética, tudo isso dá um mergulho vertical na história dos negros nos EUA. Há um momento em que a narradora, Violet, lembra que os brancos do Sul tinham raiva dos negros por estes estarem indo para o Norte, e os brancos do Norte tinham raiva dos negros por estarem chegando.
Não há para aonde correr. Há uma tese escondida na narrativa de Jazz que tem a ver com Nova York como personagem. Trata-se do fato de ela, metáfora de toda cidade, multiplicar o eu das pessoas. A multidão que nos olha nos multiplica. A multidão que nos olha também sabe de seu papel multiplicador do racismo, tanto quanto no de combatê-lo. Por enquanto, os passos dessa dança ainda se movem para o lado da opressão.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em 10 de junho de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)
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