segunda-feira, 9 de abril de 2018

Seis passeios pelo imaginário da cidade

Foto: Gilberto G. Pereira
Parte do Memorial & Museu Nacional do 11 de Setembro, em Nova York; ao fundo, a estação Oculus: 
“Eventos que se enquadram em um tipo específico de alteração instantânea da paisagem.”

Todo leitor de literatura, principalmente aquele de prosa, de um certo modo, é apaixonado pela história das cidades. Alguma coisa se move dentro dele. Algum dispositivo emocional, ou estético, ligado ao espaço, à ambientação, ao ir e vir de personagens dentro da narrativa, estabelece um vínculo íntimo entre o leitor e o lugar da trama.

O contrário também é certo. Arquitetos, geógrafos, sociólogos e historiadores, especialistas em questões urbanas, gostam da literatura porque ela fornece elementos concretos e visionários sobre o espaço citadino. 

Os grandes romances do século 19 e da primeira metade do século 20 fizeram isso. Só depois é que se criou a tendência da cartografia do eu, das paisagens interiores, em que pouco se deixa ver da cidade, embora muitas vezes ela esteja lá, sustentando os passos de um flâneur de almas.

O professor associado do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa), da Universidade Federal de Goiás (UFG), Tadeu Alencar Arrais, escreveu um livro delicioso de se ler, Seis modos de ver a cidade (Cânone Editorial, 2017, 174 páginas), em que traça um panorama visual das urbes e sua história, além de analisar seus aspectos de formação e deformação, construção e modificação dos espaços.

Em Seis modos de ver a cidade, o autor faz observações importantes, que para um leitor leigo interessado nas questões urbanas, querendo entender como nasce e morre uma cidade, é um ensinamento valoroso. E ele faz isso lançando mão de ferramentas como o cinema e a literatura, além de sua base de ofício, as ciências humanas, evidentemente.

Segundo Arrais, o espaço urbano em sua estrutura de fundação e crescimento, da escolha do lugar onde uma comunidade se assenta à malha de serviços e infraestrutura, pode ser lido por meio dos vetores “mapa”, “morfologia”, “ecologia”, “paisagem” e  “cotidiano”. Em cada um deles, uma análise acurada dá conta de uma série de aspectos interessantes.

Outra urbe

Começando pelos mapas, o autor nos convida a entrar na primeira avenida de seu texto evocando Ítalo Calvino, em As cidades invisíveis:

“- Resta uma que você jamais menciona.
Marco Polo abaixou a cabeça.
- Veneza – disse Khan.
Marco sorriu.
- E de que outra cidade imagina que eu estava falando?”

Esse plano geral do escrutínio feito por Arrais dá o tom de mais ou menos como o geógrafo goianiense pensa a cidade. Segundo ele, todas elas têm muitos elementos semelhantes no tocante à sua origem. Nos primórdios, os mapas davam conta desse jogo entre aproximação e distanciamento nas características das grandes urbes do mundo. Todas elas, até hoje, nascem às margens de um bom rio, caudaloso e perene (o Meia Ponte já foi algo parecido).

Os mapas descreviam as cidades antigas tendo seu desenho central encravado em colinas e rodeado de pontes, diz o autor, citando Londres, Paris, Granada e Praga do século XVI. Em torno do espaço urbano, havia o conglomerado de pontos rurais que abasteciam a cidade. “Ao desenharem os mapas, seu autores comunicavam, especialmente, o cotidiano.” 

Eles ainda existem e são muito úteis, como pontua Arrais, embora tenham migrado para a virtualidade da internet, rendendo-se completamente ao poder do Google. “Ainda é possível dizer que os mapas das cidades continuam a despertar uma primeira imagem, uma representação do desejo do viajante”, pondera o professor.

Simbioses

No capítulo sobre a morfologia, em que a análise recai sobre o relevo real do espaço, sua topografia (com sua forma em rios, morros e montanhas, floresta e campos), Arrais traça uma descrição elogiosa da escolha topográfica das cidades brasileiras. “A primeira imagem do Rio de Janeiro é, sem dúvida, topográfica, independentemente de o observador chegar por terra, pelo mar ou pelo ar.”

“A topografia turística”, continua Arrais, “representada pelo Corcovado, pela Pedra da Gávea, pela Pedra do Arpoador e pelo Pão de Açúcar, oferece aos visitantes de hoje ângulos diversos da cidade.” 

As vilas montadas no ciclo do ouro no Brasil, que dariam origem às primeiras cidades do interior do país, também são olhadas com interesse pelo geógrafo. Segundo ele, a escolha topográfica de Ouro Preto, em Minas Gerais, e Pirenópolis, em Goiás, por exemplo, passava pela questão da presença desse metal.

Dependia de uma simbiose entre geologia, relevo e água. “Naquele período, enquadravam-se perfeitamente nesse enredo morfológico que sempre despertou a ambição de desbravadores”, diz o autor. O charme dessas cidades, continua ele, “não se resume, apenas, às edificações coloniais geminadas e às ruas curvas, mas, sobretudo, ao fato de serem vigiadas por serras.” 

Arrais não toca no assunto, mas por vezes, a história se encarrega de mudar o ponto de vista do que é estrategicamente aceito em matéria de morfologia. A cidade de Goiás é uma dessas vítimas da história. Cercada por serras, foi rejeitada pelo pensamento urbanista moderno em nome de outra topografia, e aí Goiânia nasceu.

Numa intenção prosopopeica, o autor diz que as grandes cidades, de modo geral, certamente à exceção daquelas que foram fundadas (e nem cresceram) sob a égide da exploração do ouro no Brasil (por procurarem lugares entre serras), “assim como os grandes rios, tentam evitar as montanhas, preferindo as planícies, onde podem se espalhar.” 

Olhar a cidade pela sua morfologia é observar à distância, de um modo que estimule a imaginação, diz o professor. “A imagem morfológica permite especular sobre os limites de expansão do sítio urbano, as formas de circulação interna e o sistema de integração.”

Transformações

Dobrando a esquina dos vetores geográficos, quando o autor fala de técnica, ele se refere à produtividade e ao desenvolvimento, ao progresso no espaço urbano. O modo de organização social das cidades vai mudando à medida que entram no cenário das relações as novas técnicas. 

Na Idade Média, diz Arrais, “ferreiros, pedreiros, curtidores, carpinteiros, tipógrafos, tecelões, sem esquecer dos ourives e dos alfaiates ou mesmo dos açougueiros, formavam classes de prestígio na cidade.”

Depois, as oficinas e ateliês perderam espaço para as fábricas, embora não tenham sido substituídos por estas. O interessante é que, desde a Revolução Industrial, as máquinas vêm atravessando a vida humana e ocupando espaços cada vez mais fulcrais na sociedade. 

As máquinas “mudaram a forma e a velocidade das pessoas de consumir, produzir e se locomover”, comenta o autor. Segundo Arrais, as redes técnicas, como as instalações de energia, comunicação, dutos de água, esgoto e gás, entranharam em nosso cotidiano “como artérias acomodadas entre os músculos e ossos do corpo humano.”

E justamente por essa capacidade de oferecer benefícios e confortos à vida do cidadão moderno, essas redes técnicas acabam afastando-o da compreensão do mecanismo de seu funcionamento, criando o que o autor chama de “alienação técnica”.  “Todos os dias, quando acordamos, acionamos essas redes sem sequer imaginar como foram produzidas ou como funcionam”, avalia. 

Mas, como num laboratório de soro antiofídico, o mesmo elemento oferece dois lados antagônicos. “A cidade passa a ser esse lugar privilegiado, tanto para a alienação quanto para a emancipação.” E como isso ocorre? “A técnica é utilizada para ambos os propósitos. A própria inflação dos objetos técnicos e das redes reforça essa dialética entre alienação e emancipação, exigindo esforço contínuo de adaptação.”

Muitos ficam para atrás, é verdade, tanto no que diz respeito ao consumo, quanto na questão da oferta e procura de mão de obra. As inovações, no entanto, parecem vir puxando uma fileira de retardatários. “A relação (expertise e uso) é resultado direto da forma como a técnica organiza o cotidiano e interfere nas atividades de produção, consumo, lazer e comunicação”, diz Arrais.

Seis modos de ver a cidade é uma ferramenta que nos ajuda a pensar o espaço urbano, quer com seu volume de informação e articulação argumentativa, quer com o estímulo ao diálogo, à busca de novos exemplos do que foi dito e de novos paradigmas que não foram abordados. 

Exemplo de progresso técnico, a que o autor não se referiu, mas que faz todo sentido neste debate, foi a invenção do elevador moderno, por Elisha Otis, em 1853, em Nova York (Arrais cita os futuristas Os Jetsons e o elevador como conditio sine qua non da modernidade, como o meio de transporte “sem o qual, não seria possível ampliar a densidade urbana”, mas não faz referência ao fato de ter tornado Nova York a cidade que é, técnica e topograficamente). 

Essa invenção revolucionou o pensamento da engenharia civil, da arquitetura e do urbanismo, primeiro em Manhattan, depois em muitas cidades no mundo inteiro, com a vertigem dos arranha-céus. 

Antes do elevador, não era prudente erguer prédios com mais de quatro andares. Depois do elevador, Manhattan verticalizou de tal forma que se transformou num “teatro de atrações”, para utilizar aqui uma expressão de Adrián Gorelik, no prefácio ao livro de Rem Koolhaas, Nova York delirante.

Esse progresso técnico possibilitado pelo elevador, e pela riqueza do capitalismo americano, fez surgir as Torres Gêmeas, que em 2001, foi posta abaixo pelo fanatismo anti-Ocidente e anti-modernidade dos extremistas islâmicos, liderados por Osama bin Laden. Pilotos suicidas tomaram dois aviões de carreira em pleno ar, cheio de passageiros, e os chocaram contra as torres.


Texto e pretexto

A ação terrorista modificou a paisagem de Nova York. Esta parte da história é mencionada no livro de Arrais. Segundo ele, aqueles eventos de 11 de setembro de 2001 “se enquadram em um tipo específico de alteração instantânea da paisagem.” 

Os ataques terroristas daquela manhã, continua o geógrafo, “colocaram abaixo dois ícones da engenharia urbana erigidos na década de 1970. As Torres Gêmeas, singulares em tantos filmes de Hollywood, foram reduzidas a escombros, em meio ao fogo, à poeira e aos muitos corpos [mais de 3 mil]. No mesmo local, agora, encontra-se o memorial Tribute in Light (sic), cujas colunas verticais de luz insinuam-se para o céu.”

No livro de Arrais, texto e pretexto vão se criando numa simbiose semântica, em que o autor às vezes descreve o elemento temático, como morfologia, por exemplo, mas vai além da descrição (pretexto) para falar de políticas públicas ou teses urbanísticas (texto).

Às vezes, parte de questões de urbanismo, de políticas públicas (pretexto) para mostrar a complexidade da paisagem urbana e de como ela muda (texto), como no exemplo do ataque às Torres Gêmeas. Assim tão definido, uma coisa vai imbricando na outra, de modo que o tecido discursivo fica mais consistente, e sempre conciso, sempre objetivo, sem derramar palavras desnecessárias. Vê-se um pensamento sóbrio no espectro da narrativa proposta pelo autor.

Ainda sobre a paisagem, Arrais diz que um dos aspectos modernos das cidades, em termos paisagísticos, é o turismo. “A modernidade oferece uma nova experiência de cidade. Uma nova rua, um novo caminho iluminado. A própria paisagem transforma-se em objeto de consumo. A ‘cidade luz’ drena os olhares e os sonhos de consumo tanto quanto a ‘cidade maravilhosa’.”

Espetáculo e história

O último vetor geográfico criado por Arrais nos joga numa espécie de corredor do hábito urbano, o cotidiano. Arrais nos dá uma aula sobre como o cotidiano treina nosso olhar sobre a cidade e nos prende a um modo muito particular de vê-la. Por isso mesmo, a visão do morador e a do turista são tão diferentes. 

Certos elementos se tornam invisíveis ao morador, e ao turista saltam aos olhos. A história do cemitério Saints-Innocents, no centro de Paris, “localizado nas proximidades do Les Halles, na margem direita do rio Senna”, é um exemplo disso. Superlotado de corpos enterrados ali por centenas de anos em catacumbas, no século 19, foi necessária a remoção dos corpos. 

Os operários faziam isso durante a noite, acompanhados de sacerdotes e de um séquito de turistas que pagavam para assistir ao show fúnebre. “A paisagem urbana é história, mas também espetáculo para um cotidiano cada vez mais programado”, diz Arrais, que enfileira citações de escritores como Honoré de Balzac (que está na capa do livro em litogravura), Charles Baudelaire, Émile Zola, Victor Hugo, Charles Dickens etc.

Seis modos de ver a cidade é instrutivo, ilustrativo e fruitivo, com um projeto gráfico muito bem feito, e um design que agrada aos olhos do leitor. Enquanto vai construindo seu texto sobre a cidade, como conceito, e descrevendo os elementos espaciais, como fenômenos urbanos, Arrais também vai deixando esse rastro de erudição interessante, porque também é uma espécie de lastro intelectual que ele construiu.

Quando era adolescente, trabalhava na construção civil. Não diz o que fazia. Talvez fosse servente de pedreiro ou contínuo de uma empresa de engenharia. No intervalo do almoço, tinha acesso ao prédio de 14 andares que estava sendo construído.

Do alto do edifício, via Goiânia em movimento e admirava a cidade onde nasceu em 1973. A ideia principal de escrever o livro surgiu ao ver o filme Metrópolis, de Fritz Lang, de 1927. Mas os substratos vieram de leituras, do estudo da geografia e da memória do garoto olhando para a cidade e tentando entender sua engrenagem. “A cidade era aquilo. Mistura de tijolos, argamassas, aço, cobre, alumínio, azulejos, tubulações e muita gente se ocupando em preencher os espaços daquele esqueleto.”

Hoje, Arrais é doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (Niterói-RJ) e professor da UFG. Locomoveu-se pelas espessas lâminas da estratificação social. Dono de uma narrativa sóbria e culta, buscou na memória elementos que edificam sua escrita. Arrematou seu ensaio com o retorno dessa memória. É formidável ver esse tipo de vitória. Ao falar de Londres, Nova York, Rio de Janeiro, Cairo, estava falando de Goiânia.


Serviço

Livro: Seis Modos de Ver a Cidade
Autor: Tadeu Alencar Arrais
Editora: Cânone Editorial (2017, 174 páginas)
Preço: R$ 35,00

(Gilberto G. Pereira. Originalmente publicado em 8 de abril de 2018, no Jornal Opção, de Goiânia)

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