quinta-feira, 16 de março de 2017

A experiência da metáfora

                                                                               Foto: Fapeg
Maria Zaira Turchi: “A literatura nos tira da nossa concretude mais banal, mais rotineira e nos chama a 
atenção para o sentido da vida. É um dever do Estado, e um direito do cidadão, a experiência da metáfora”    

Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), com doutorado sanduíche no Centre de Recherches Sur L’Imaginaire, Universidade de Grenoble, França, a goianiense Maria Zaira Turchi (61 anos) é uma das maiores autoridades do país em literatura infantil e juvenil.

No dia 30 de setembro de 2011, numa sexta-feira, por volta das 17:30, eu me encontrei com Maria Zaira no seu gabinete de presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (Fapeg), aqui em Goiânia, cargo que ela ocupa até hoje. Eu trabalhava no semanário Tribuna do Planalto, onde a entrevista foi publicada. Mas dada a fragilidade do arquivamento digital do jornal, o arquivo online se perdeu.

Decidi publicar de novo a entrevista no Leituras, pela sua importância no mundo da literatura. Além de presidente da Fapeg, atualmente Maria Zaira também faz parte do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap).

Com uma simpatia proporcional ao conhecimento que traz sobre o assunto, a professora conversou sobre o valor da educação e a importância dos livros e dos textos na sociedade contemporânea.

Seu domínio sobre o tema permitiu-a fazer observações precisas em relação a políticas públicas de educação, chamando a atenção de gestores públicos que se prezem para a urgência de decisões, sem uma rispidez verbal sequer. Pelo contrário, criou frases que servirão de mantra aos que se importam com a cultura: “É um dever do Estado, e um direito do cidadão, a experiência da metáfora”, disse ela.

Também falou sobre a importância do investimento em pesquisa e produção de conhecimento. “Hoje o caminho da sociedade é o caminho do conhecimento. Qualquer outra alternativa é inútil. Qualquer outra coisa se tornará obsoleta”.

Desfiando as questões da literatura infantil e juvenil com muita clareza, Maria Zaira definiu a função da leitura, vislumbrando a responsabilidade de todos na empreitada de fazer o Brasil um país de leitores.

“O mundo vai passar por impactos e transformações tremendas. O único bem que é realmente intangível, e que as políticas de educação e de formação devem buscar é o conhecimento, que passa invariavelmente pela capacidade de leitura”, disse a professora, ex-diretora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (UFG), autora de vários livros, entre eles Ferreira Gullar: a busca da poesia (1985) e Literatura e antropologia do imaginário (2003). Segue a entrevista.


A literatura infantil e a juvenil são definidas pelo quê?

Maria Zaira Turchi – Atualmente já temos uma discussão teórica muito mais avançada, que inclusive consegue elaborar um conceito de literatura infantil e juvenil diferenciado. Se tomarmos o período de Monteiro Lobato, o iniciador da literatura infanto-juvenil brasileira, e as gerações que foram formadas depois, o que havia disponível para os leitores eram livros que hoje chamamos de literatura infanto-juvenil.

Eram livros que pegavam uma faixa de leitores já com certo domínio do texto verbal, e, portanto, podiam ler histórias mais longas, como as do próprio Lobato, livros com muitas aventuras, mas com pouca ilustração.

À medida que esse mercado teve grande expansão, apareceram novos escritores, novas editoras, investindo nesse mercado, ilustradores, e esses livros foram tendo uma configuração que permite realmente estabelecer a diferença entre o que é infantil e o que é juvenil.

Que configuração seria essa?

O livro de literatura infantil, por exemplo, é mais ilustrado, com menos texto, e o escrito realmente tem como perspectiva o leitor criança. Isso não significa que se trata de literatura menor. Pelo contrário. Essa literatura pode perfeitamente ser, e é com frequência, lida e apreciada pelos adultos.

A literatura infantil hoje é marcada por um diálogo estreito entre texto, ilustração e aspectos gráficos. É o que compõe essa obra estética. Quanto mais bem feito esse diálogo, mais a obra se coloca num patamar artístico com capacidade de mobilizar o leitor para que ele mergulhe nessa fantasia.

É o livro que tem uma literariedade, podemos dizer assim?

Isso mesmo. A literariedade – aí você está trazendo uma palavra da teoria literária com a qual a gente trabalha muito – é aquilo que faz de uma obra uma obra literária. Na literatura infantil, a literariedade se manifesta nesse diálogo intenso entre o texto verbal, a ilustração e os aspectos gráficos.

Hoje, no mundo inteiro, há autores de literatura infantil muito premiados. No Brasil também. Temos escritores e ilustradores que têm sido premiados nacional e internacionalmente.

Autores como Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Lygia Bojunga, Ricardo Azevedo, Luís Camargo, e ilustradores como Ângela Lago fazem a literatura brasileira de hoje possuir um conjunto de autores e obras realmente significativos dentro desse sistema literário.

Falei da literatura infantil, e agora quero falar da juvenil. Como havia comentado, hoje já conseguimos distinguir uma coisa da outra. Hoje há um corpus diferenciado, uma produção infantil e outra juvenil, que justifica essa separação.

Na literatura juvenil, o livro vai estar mais voltado para um leitor que já tem fluência de leitura, um leitor adolescente que tem a possibilidade de leituras mais longas, com um suposto domínio do texto e com fôlego para textos maiores.

Neste caso, vamos ter textos com menos ilustração. Embora hoje, a ilustração e o aspecto gráfico sejam uma questão muito forte de mercado. A literatura para jovem também tem de incorporar essa linguagem do objeto livro, com uma capa bonita, uma ilustração bonita.

E aqui não me refiro ao ‘bonitinho’, não. Falo da ilustração que traga mais sentido, que represente um apelo para esse leitor, porque esse recurso induz também a procura de algum sentido, de alguma relação, de alguma motivação para o leitor entrar no livro.

Há livros que tratam do bullying, da homossexualidade, das escolhas e da diversidade, da questão do racismo, do preconceito, das dificuldades de crescer, das relações familiares, de carreira, de amor, das primeiras experiências e das angústias todas que são próprias da faixa etária.

Quais são os autores da nova geração que se destacam nessa categoria, ou nesse sistema?

Temos o Fernando Bonassi, jornalista que apareceu nesse cenário de 2000 para cá, a Índigo, que também é nova, o gaúcho Luis Dill, que é um escritor excelente, autor de Todos contra Dante.

Há também o Flávio Carneiro, que está com um trabalho muito interessante. Sem falar que continuam produzindo também os já consagrados como a Lygia Bojunga, que em 1982 foi laureada com o Prêmio Hans Christian Andersen, o Prêmio Nobel da literatura Infanto-Juvenil.

A literatura infantil é a que forma leitores, de fato? Ou seja, um leitor que não passa por essa fase de ler livros infantis terá mais dificuldades de se formar um leitor crítico?

A leitura na infância é fundamental. Quanto mais cedo a criança começar, melhor para ela se formar como leitor. E aí, essa leitura pode e deve ser muito variada. Devem-se incluir os livros de literatura infantil, aqueles que estão catalogados como tal, mas a criança também pode estar em contato com revistas, gibis, jornais, com tudo quanto é material impresso à volta dela.

Agora, o que a literatura pode trazer a mais? E se dediquei a minha vida inteira a ela, é porque acredito nisso. A literatura permite à criança uma expansão do seu imaginário, uma possibilidade de pensar o mundo metaforicamente, e disso todo ser humano precisa.

Levando em conta nossa realidade histórica e social, a criança no Brasil parece que lê muito e lê bem, pelo menos em comparação às fases seguintes da vida, que é onde começa o problema. O brasileiro adulto lê pouco e mal. Onde está a ruptura dessa continuidade da leitura?

Se lhe é apresentado o livro, e a possibilidade de ler e ouvir histórias, não conheço nenhuma criança que não tenha se sentido atraída por esse universo dos livros, das histórias. E aí podemos incorporar hoje tudo que a mídia nos traz. As histórias que estão no cinema, na televisão.

Quando ela tem a oportunidade de ouvir da mãe, do professor, uma história, os olhinhos brilham. E há o momento de desinteresse total, quando entra na adolescência. Jovens.

Há poucos dias, eu estava num congresso internacional sobre literatura juvenil e esse era um dos temas. Quer dizer, quando a criança entra na adolescência costuma esquecer o livro, e depois, muitas vezes, como adulto, não se torna leitor. Sobre isso, há até um livro escrito pelo francês Daniel Pennac ...

... Como um romance ...

Exatamente. Esse é o título. Era uma tentativa do Pennac de responder a essa pergunta que você me coloca. É um grande desafio. É necessária a participação ativa da escola, da família, o que nem sempre o adolescente ou o jovem vão acabar encontrando.

Se os pais não forem leitores, fica mais difícil.

Sim, e a escola tem de compensar isso. Como a escola vai compensar isso? Trazendo para o cotidiano da aula, da escola, a presença da leitura, mas uma presença ativa, que faça sentido para todo mundo. Não como o professor que manda ler em casa e depois vai cobrando esta leitura.

É preciso entender qual é o papel que a leitura tem na vida desses alunos, dos professores, como é que eles partilham livros. De fato, nem sempre se podem garantir pais leitores. Às vezes os pais trabalham o dia inteiro, podem ser trabalhadores de fábrica, de indústria, e não lidam com livro durante o dia, chegam em casa extenuados e vão dormir.

Já os professores na escola, não só o de português, mas de todas as disciplinas, deveriam ser leitores. Se os fossem, as leituras seriam partilhadas na escola. E não digo só a leitura de literatura. Como um direito, de lei. Devemos propiciar as pessoas o encontro com o livro literário. Se depois elas vão prosseguir é outra história.

Sua pergunta é procedente porque o que a gente vê hoje é esse fosso. Quer dizer, não vai para frente. E se pensarmos bem, a grande questão no Brasil, em termos de educação não resolvida, é o Ensino Médio.

Ainda não resolvemos o problema do Ensino Médio, que é o que faz essa passagem de uma literatura juvenil para uma literatura de adulto. Tampouco foi resolvida esse mesmo problema nos últimos anos do Ensino Fundamental, que vão fazer essa passagem para o Ensino Médio.

Estamos no entroncamento da origem de um novo leitor, em função das novas mídias, como os tablets, os celulares e a própria internet. Com que expectativa a senhora vê isso?

Hoje não podemos mais pensar nossa vida sem a internet, sem essas outras linguagens que estão aí e que muitas vezes têm um apelo muito mais forte do que o livro impresso. Temos de aproveitá-las para a formação do leitor.

Por interesse acadêmico, comecei a pensar em construir teoricamente o perfil desse novo leitor, comecei a entrar nesses sites de escritores, nos blogs, em que o autor vai escrever seu texto, postando e submetendo-os aos comentários. E aí, o leitor já vai dizendo “olha, gostei muito”, ou “não, essa parte não deveria ser assim”.

É muito curioso porque temos aí um novo leitor, mas também um novo autor. Com esta nova categoria autor e leitor, os direitos autorais do próprio texto podem ficar muito pulverizados. À medida que se vai postando, mudando conforme as opiniões dos vários leitores, isso acaba tendo uma coautoria. Ou seja, seria outra noção de autoria.

 “A leitura é a porta de entrada e o único caminho do conhecimento” Maria Zaira Turchi

O que é um leitor?

Maria Zaira Turchi - Só a palavra ‘leitor’ não dá conta de pensar todo esse universo. Por isso há classificações. A gente começa a criar categorias como leitor iniciante, leitor fluente, leitor crítico. Então, o que vou definir aqui é o que penso de um leitor crítico, o que se espera de qualquer pessoa que saia do Ensino Médio.

A formação do Ensino Médio deveria permitir que ao final desse período da escolaridade, tivéssemos realmente formado leitores críticos, que são aqueles capazes de ler as várias linguagens, ler bem não só o texto verbal, mas também a fotografia, o cinema, o contexto político...

Ler bem os próprios fatos ...

Isso mesmo, ler bem os fatos, interpretá-los e ter desses fatos um discurso próprio. Esse é o leitor crítico, porque é capaz de interagir com o texto literário, com o texto do jornal, com o filme, interagir com essas várias linguagens, fazendo uma construção da sua própria capacidade de falar de si mesmo nesse mundo. Esse é o leitor crítico.

Acredito que esse leitor crítico realmente deve ser o nosso objetivo quando pensamos na formação do ser humano. Hoje o caminho da sociedade é o caminho do conhecimento, qualquer outro é inútil. Qualquer outra coisa se tornará obsoleta.

O mundo vai passar por impactos e transformações tremendas. O único bem que realmente é intangível, que as políticas de educação e formação devem buscar é o conhecimento, que passa pela capacidade de leitura.

Não podemos dominar o conhecimento e alcançá-lo sem que sejamos esse leitor crítico. E os resultados de todos esses testes [como o  Exame Nacional do Ensino Médio –  Enem) estão nos mostrando que ainda falta muito.

A educação está mais democratizada, mas agora o que temos de perseguir é o conhecimento. E o conhecimento, no meu entender, só será alcançado se a gente tiver leitores críticos.

Ao longo da nossa conversa, a senhora já respondeu esta pergunta, mas gostaria que a resumisse agora. Em que a leitura pode contribuir para nossa maneira de ver e sentir o mundo, não só da literatura, mas de todas as linguagens?

A leitura é a porta de entrada e o único caminho do conhecimento. Já avançamos tanto na sofisticação das nossas línguas e das nossas linguagens que não é possível mais pensar que não temos domínio disso.

Não tem como o conhecimento prescindir da leitura, da leitura das várias línguas e das várias linguagens. A sociedade está aí o tempo inteiro, a propaganda, o cinema, tudo é linguagem. Por que se dá hoje tanta importância ao marketing político? Porque tudo isso é linguagem.

Não há como termos acesso nem ao mundo do trabalho, ao mundo do conhecimento, e agir nesse mundo, sem a leitura. A leitura é exigência de nossa sociedade contemporânea. Sem ela não há desenvolvimento, nem como pensar a sociedade.

Quanto à própria literatura, estou certa de se poder de nos transportar para outros universos, outros contextos, outros países, outras realidades de lugares que nunca talvez pudéssemos visitar se não fosse através da literatura.

Não digo apenas de lugares físicos, mas de lugares psíquicos, da nossa alma, de compreender a morte, de compreender a vida. Em tudo isso a literatura nos ajuda. A experiência de um texto literário é um direito que todo cidadão deve ter de viver. Depois, se não quiser mais, é a escolha que fará. Mas é um dever do Estado, e um direito do cidadão, a experiência da metáfora.

A literatura nos tira da nossa concretude mais banal, mais rotineira e nos chama a atenção para o sentido da vida. É isso que a literatura faz. Ela vai nos trazer as grandes questões humanas e ajudar o ser humano a construir, encontrar repostas, encontrar aconchego, consolo nessa construção que é uma construção imaginária.

O legado cultural de um povo, até hoje, vamos buscá-los no texto literário. Onde vamos buscar o legado cultural dos gregos? É na literatura que eles nos deixaram, nos textos escritos de filosofia, e por aí afora.

Quem funda a ideia de língua italiana é Dante Alighieri, na Divina comédia, que está aí sendo lida, relida e apreciada quanto tempo depois. Essas obras vão permanecendo como um grande legado cultural da humanidade, e acabam criando uma rede de sentido para as pessoas. É um direito do ser humano poder ter acesso a isso e poder mergulhar nesse universo e se descobrir leitor de literatura.

A oportunidade deve ser dada. Alguns vão mergulhar mais fundo e gostar mais, e outros menos. Mas aí será uma questão de diferença de gosto. É nisso que acredito. A literatura vai nos ajudar a nos tornar mais humanos. Ela nos chama a atenção para nossa característica de ser humano.

Temos de formar leitores. Para que o mundo possa continuar a desenvolver, avançar na ciência, na tecnologia, no conhecimento, precisamos ter leitores críticos muito bons, de todas as línguas e de todas as linguagens.


E para podermos nos tornar mais humanos, formar leitor de literatura certamente contribui muito, porque vai nos ajudar a compreender o outro, a sermos mais tolerantes, a buscarmos o respeito, a liberdade. A literatura nos permite isso.

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quarta-feira, 15 de março de 2017

Diálogo e chamamento na leitura de Mutações da literatura no século XXI, de Leyla Perrone-Moisés


Leyla Perrone-Moisés é boa de papo. Seu livro Mutações da literatura no século XXI (Companhia das Letras, 2016) traz uma rara espontaneidade. Estratégica, para falar sobre a quantas anda a literatura atual e sepultar (mas nada se sepulta no mundo líquido) de vez a ideia de que a literatura está morrendo, de que a literatura morreu, de que a literatura agoniza enquanto escrevo, ela abre seu primeiro capítulo justamente desmistificando as velhas lendas nascidas no século XX, os vaticínios da morte de tudo.

A autora descreve e demonstra que esta espécie de lista do fim do mundo revelou-se uma tremenda bullshit. “O fim do século XX, coincidindo com o fim de um milênio, viu o anúncio de muitos ‘fins’: fim do Homem, fim da história, fim dos grandes relatos, fim das utopias, fim da cultura ocidental, fim dos intelectuais, fim da arte... Felizmente, nenhum desses ‘fins’, até agora, se concretizou.”

E aí entra o acervo de argumentos extremamente competentes de uma pesquisadora que ama literatura, se não ama, engana como poucos, porque o substrato de sua escrita é seiva de amor correndo em cada página, pelas duas partes em que o livro é dividido, e suas subdivisões em 12 capítulos.

Na primeira parte, concentram-se elementos da crítica e da teoria. Na segunda, é aberto o passeio pela narrativa. Não eram mortes, diz ela. Eram mutações. E aí começa o show. Reivindica o conceito de estética como elemento central na obra literária, porque, segundo ela, o aspecto estético perdeu terreno para os estudos culturais e a banalização do conceito de literatura.

Leyla estudou a fundo os manuais que tentam explicar o que é literatura, e os passa a limpo para mostrar que eles não dão conta da explicação. Recorre às teorias tradicionais da narrativa, já consolidadas (formalismo russo, estruturalismo, new criticism, crítica marxista), e as depara com as teorias de autores contemporâneos, que além de escreverem romances também enveredaram pela crítica.

Entre outros autores contemporâneos que se arriscaram a teorizar seu metiê estão Milan Kundera (A arte do romance), Mario Vargas Llosa (A verdade das mentiras), Orhan Pamuk (O romancista ingênuo e o sentimental), J. M. Coetzee (Mecanismos internos), David Lodge (Write, de 1986, The practice of writing, de 1996, e Consciousness and the novel, de 2002),

Pós-moderno

Uma das razões para o anúncio da morte da literatura, sobretudo do romance, segundo Leyla, é que o mundo mudara, os parâmetros se tornaram múltiplos, e os teóricos e autores não encontravam novas maneiras de criar, e não se sentiam à vontade para voltar ao velho. O lançamento de livros como Ulysses, de James Joyce, e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, contribuíram muito para a sensação de fracasso dos posteriores.

Ou seja, o mundo contemporâneo é maior e mais complexo. Leyla ainda chama a atenção para o termo contemporâneo, que ela utiliza no lugar de pós-modernidade. Em linhas gerais, no contexto do livro, a contemporaneidade é o pós-moderno, com essa incrível complexidade e fragmentação diante da qual teóricos e artistas se afogam. É o que veio depois que a ideia de modernidade ruiu.

Herança

Os autores contemporâneos receberam uma herança literária, diz Leyla, e sem saber o que fazer com essa herança a matou, mas ela não morreu bem morrida, portanto voltou como espectro. “O espectro é o morto mal enterrado, é o passado que se recusa a morrer.”

Ao passar por um processo de mutação, a literatura vive nesse rio de coisas equívocas e escorregadias. Os romancistas contemporâneos reconhecem “que o mundo se tornou demasiado vasto, múltiplo e complexo para que o romance o abarque como uma totalidade.” É isso que vem acontecendo, argumenta Leyla.

Logo, a literatura não morreu, está apenas sofrendo um processo de mutação, cujo resultado ainda não está pronto. A literatura está, portanto, num interregno. “A literatura vive um interregno, aquele momento em que as regras antigas já não existem e outras, na melhor das hipóteses, ainda estão em gestação.”

O romance persiste, na produção e no consumo, apesar da fragmentação do saber e da experiência. Isso porque “a narração continua sendo uma necessidade humana básica”, diz Leyla. “Os homens continuam querendo saber como vivem os outros, isto é, como se pode viver, na realidade ou na fantasia.”

Mutações da literatura no século XXI é uma defesa da força literária na contemporaneidade. O século XXI é abordado com seus autores principais, mas o grande lance do livro é o modo como a autora cobre todo o século XX até chegar aos nossos dias, justamente para demonstrar que hoje a literatura está mais viva do que nunca.

A literatura não morreu porque sua essência é de transitoriedade, de reinterpretação. As gerações de hoje estão reinterpretando o que foi produzido pelos gigantes dos séculos XIX e XX, argumenta a autora.

Argumentos

Aliás, argumento é o que não falta para Leyla Perrone-Moisés. Muita coisa na leitura de seu livro é deliciosa. Uma das mais agradáveis é acompanhar sua série de argumentos: a literatura sempre teve dificuldade em se autodefinir; a literatura é plural, e deve ser estudada em sua pluralidade, pois, se ela morre num aspecto, está viva e pronta para atender o interessado em várias outras pontas.

A memória da humanidade está registrada na literatura, que encerra as palavras mais significativas da vida humana; quem não lê literatura possui um contexto estreito do mundo; a literatura não morre porque tem a faculdade de proliferar à custa de si mesma (intertextualidade, uma obra faz referência a outras ou a si mesma [intratextualidade], indefinidamente).

Entre as mutações da literatura está sua dessacralização, pois hoje “escrever não intimida mais ninguém; publicar não é mais objeto de dúvidas metafísicas e existenciais, é apenas uma questão de achar editor, de editar por conta própria ou de colocar o texto na internet.”

Leyla ainda argumenta que a principal característica da literatura contemporânea é a de usar de modo misturado, sem nenhuma reverência, todas as características já vistas em obras desde a antiguidade, como intertextualidade, paródia, fragmentação, ludismo (jogos verbais), ironia, abertura do sentido do texto (obra aberta).

Mas o autor contemporâneo não faz isso como um amador tentando galgar degraus na escada alheia. Faz isso de modo inovador, utilizando-se ainda de citação, reescritura, colagem, metaliteratura, referência, alusão, pastiche, intertexto (reescritura sem aspas). E uma coisa é clara, a literatura contemporânea (pós-moderna) tem na ironia seu traço dominante. Outro grande traço é a autoficção, à qual a autora dedica um capítulo inteiro.

A criação de romances que têm “por personagem principal um ‘grande escritor’ da época áurea da literatura”, também é típico da literatura contemporânea, argumenta ainda a autora, tão típico que chega a ser uma espécie de subgênero. Mas isso também não é novo, basta lembrarmos de O romance de Leonardo da Vinci, um romance best-seller do começo do século XX, do russo Dmitry Merezhkovsky, sobre o gênio florentino.

Literatura literária

Em defesa da literatura como arte, Leyla utiliza termos interessantes no calor da discussão, que partem dela mesma ou de citações de críticos renomados. Os termos variam minimamente no significado, afinal, o que ela quer mesmo é qualificar a literatura que vale a pena ser lida pelo que há de qualidade estética, publicada ao longo dos séculos: alta literatura; grande literatura; boa literatura, literatura literária; literatura da alta modernidade; literatura do adeus; literatura de ficção; literatura exigente.

Ela está falando de uma mesma literatura, com um tipo específico de linguagem que a define como arte. Ou seja, para cada termo utilizado há outras formas literárias sendo excluídas, como a de Paulo Coelho, Sidney Sheldon, John Grishman.

Além disso, Leyla cria particularidades interessantes para mostrar a riqueza de diversidade de seu objeto e a dificuldade que é separar joio do trigo: literatura difícil (alta literatura), literatura séria (a boa literatura que ganha prêmios) e literatura de entretenimento (“best-sellers sentimentais e/ou eróticos, a ficção fantástica com alta população de vampiros e de magos, a narrativa policial estereotipada”).

Neste momento, em outras palavras, ela quer dizer que não exclui do bojo da literatura os outros produtos de baixa qualidade estética, mas que eles não devem reivindicar mais que o título de “romance para consumo de grande público: policiais, sentimentais, fantasiosos, psicografados, autoajuda.”

Brasileiros

Que autores contemporâneos são exemplos da alta literatura e que tipo de narração fazem? São muitos nomes estrangeiros e brasileiros, de acordo com as características de cada grupo.

Entre os autores que dão ênfase para a metaficção (ou seja, intertextualidade, que se constrói nos entrefios das citações da tradição, da literatura anterior) estão o espanhol Enrique Vila-Matas, o francês Michel Houellebecq e o brasileiro Ricardo Lísias.

Quando o assunto é autor brasileiro que desponta pela qualidade no século XXI, dois nomes vêm na comissão de frente: Ricardo Lísias e Bernardo Carvalho. Só depois aparecem outros autores na específica categoria de “literatura exigente”, o que não é pouca coisa, uma vez que, ao meu ver, a autora quis dizer com esse termo a corrente que substitui a antiga denominação “alta literatura”.

Ou seja, “literatura exigente” é a alta literatura do século XXI. Essa corrente é composta de autores que prolongam “a experimentação praticada na alta modernidade sem, no entanto, repeti-la.” A literatura exigente, diz Leyla, “já assimilou as conquistas do século passado. Seus autores não se conformam com os limites genéricos anteriores à modernidade, mesclam todos os gêneros livremente.”

Entre os brasileiros inseridos nessa categoria, além de Lísias e Carvalho, estão nomes como Carlos de Brito e Mello, André Queiroz, Julián Fuks, Evando Nascimento, Alberto Martins e Nuno Ramos.

A leitura de Mutações da literatura no século XXI é uma grande lição, mas também uma viagem prazerosa. O nível de pesquisa e de leitura da autora é incomum. É um grande diálogo e um chamamento. O livro de Leyla realmente amplia os horizontes do leitor, e certamente, como a literatura, confere mais qualidade na vida de quem lê.


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