Leyla
Perrone-Moisés é boa de papo. Seu livro Mutações da literatura no século XXI
(Companhia das Letras, 2016) traz uma rara espontaneidade. Estratégica, para
falar sobre a quantas anda a literatura atual e sepultar (mas nada se sepulta
no mundo líquido) de vez a ideia de que a literatura está morrendo, de que a
literatura morreu, de que a literatura agoniza enquanto escrevo, ela abre seu primeiro
capítulo justamente desmistificando as velhas lendas nascidas no século XX, os
vaticínios da morte de tudo.
A autora
descreve e demonstra que esta espécie de lista do fim do mundo revelou-se uma
tremenda bullshit. “O fim do século XX, coincidindo com o fim de um milênio,
viu o anúncio de muitos ‘fins’: fim do Homem, fim da história, fim dos grandes
relatos, fim das utopias, fim da cultura ocidental, fim dos intelectuais, fim
da arte... Felizmente, nenhum desses ‘fins’, até agora, se concretizou.”
E aí
entra o acervo de argumentos extremamente competentes de uma pesquisadora que
ama literatura, se não ama, engana como poucos, porque o substrato de sua
escrita é seiva de amor correndo em cada página, pelas duas partes em que o
livro é dividido, e suas subdivisões em 12 capítulos.
Na
primeira parte, concentram-se elementos da crítica e da teoria. Na segunda, é
aberto o passeio pela narrativa. Não eram mortes, diz ela. Eram mutações. E aí
começa o show. Reivindica o conceito de estética como elemento central na obra
literária, porque, segundo ela, o aspecto estético perdeu terreno para os
estudos culturais e a banalização do conceito de literatura.
Leyla
estudou a fundo os manuais que tentam explicar o que é literatura, e os passa a
limpo para mostrar que eles não dão conta da explicação. Recorre às teorias
tradicionais da narrativa, já consolidadas (formalismo russo, estruturalismo,
new criticism, crítica marxista), e as depara com as teorias de autores
contemporâneos, que além de escreverem romances também enveredaram pela crítica.
Entre outros
autores contemporâneos que se arriscaram a teorizar seu metiê estão Milan
Kundera (A arte do romance), Mario Vargas Llosa (A verdade das
mentiras), Orhan Pamuk (O romancista ingênuo e o sentimental), J. M.
Coetzee (Mecanismos internos), David Lodge (Write, de 1986, The
practice of writing, de 1996, e Consciousness and the novel, de
2002),
Pós-moderno
Uma
das razões para o anúncio da morte da literatura, sobretudo do romance, segundo
Leyla, é que o mundo mudara, os parâmetros se tornaram múltiplos, e os teóricos
e autores não encontravam novas maneiras de criar, e não se sentiam à vontade
para voltar ao velho. O lançamento de livros como Ulysses, de James
Joyce, e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, contribuíram muito
para a sensação de fracasso dos posteriores.
Ou
seja, o mundo contemporâneo é maior e mais complexo. Leyla ainda chama a
atenção para o termo contemporâneo, que ela utiliza no lugar de pós-modernidade.
Em linhas gerais, no contexto do livro, a contemporaneidade é o pós-moderno,
com essa incrível complexidade e fragmentação diante da qual teóricos e
artistas se afogam. É o que veio depois que a ideia de modernidade ruiu.
Herança
Os autores
contemporâneos receberam uma herança literária, diz Leyla, e sem saber o que
fazer com essa herança a matou, mas ela não morreu bem morrida, portanto voltou
como espectro. “O espectro é o morto mal enterrado, é o passado que se recusa a
morrer.”
Ao
passar por um processo de mutação, a literatura vive nesse rio de coisas
equívocas e escorregadias. Os romancistas contemporâneos reconhecem “que o
mundo se tornou demasiado vasto, múltiplo e complexo para que o romance o
abarque como uma totalidade.” É isso que vem acontecendo, argumenta Leyla.
Logo,
a literatura não morreu, está apenas sofrendo um processo de mutação, cujo
resultado ainda não está pronto. A literatura está, portanto, num interregno. “A
literatura vive um interregno, aquele momento em que as regras antigas já não
existem e outras, na melhor das hipóteses, ainda estão em gestação.”
O
romance persiste, na produção e no consumo, apesar da fragmentação do saber e
da experiência. Isso porque “a narração continua sendo uma necessidade humana
básica”, diz Leyla. “Os homens continuam querendo saber como vivem os outros,
isto é, como se pode viver, na realidade ou na fantasia.”
Mutações da literatura no século
XXI é uma defesa da força literária na contemporaneidade. O século XXI é
abordado com seus autores principais, mas o grande lance do livro é o modo como
a autora cobre todo o século XX até chegar aos nossos dias, justamente para
demonstrar que hoje a literatura está mais viva do que nunca.
A
literatura não morreu porque sua essência é de transitoriedade, de reinterpretação.
As gerações de hoje estão reinterpretando o que foi produzido pelos gigantes
dos séculos XIX e XX, argumenta a autora.
Argumentos
Aliás,
argumento é o que não falta para Leyla Perrone-Moisés. Muita coisa na leitura de
seu livro é deliciosa. Uma das mais agradáveis é acompanhar sua série de
argumentos: a literatura sempre teve dificuldade em se autodefinir; a
literatura é plural, e deve ser estudada em sua pluralidade, pois, se ela morre
num aspecto, está viva e pronta para atender o interessado em várias outras
pontas.
A
memória da humanidade está registrada na literatura, que encerra as palavras
mais significativas da vida humana; quem não lê literatura possui um contexto
estreito do mundo; a literatura não morre porque tem a faculdade de proliferar
à custa de si mesma (intertextualidade, uma obra faz referência a outras ou a
si mesma [intratextualidade], indefinidamente).
Entre
as mutações da literatura está sua dessacralização, pois hoje “escrever não
intimida mais ninguém; publicar não é mais objeto de dúvidas metafísicas e
existenciais, é apenas uma questão de achar editor, de editar por conta própria
ou de colocar o texto na internet.”
Leyla
ainda argumenta que a principal característica da literatura contemporânea é a
de usar de modo misturado, sem nenhuma reverência, todas as características já
vistas em obras desde a antiguidade, como intertextualidade, paródia,
fragmentação, ludismo (jogos verbais), ironia, abertura do sentido do texto
(obra aberta).
Mas o
autor contemporâneo não faz isso como um amador tentando galgar degraus na
escada alheia. Faz isso de modo inovador, utilizando-se ainda de citação,
reescritura, colagem, metaliteratura, referência, alusão, pastiche, intertexto
(reescritura sem aspas). E uma coisa é clara, a literatura contemporânea
(pós-moderna) tem na ironia seu traço dominante. Outro grande traço é a
autoficção, à qual a autora dedica um capítulo inteiro.
A
criação de romances que têm “por personagem principal um ‘grande escritor’ da
época áurea da literatura”, também é típico da literatura contemporânea,
argumenta ainda a autora, tão típico que chega a ser uma espécie de subgênero.
Mas isso também não é novo, basta lembrarmos de O romance de Leonardo da
Vinci, um romance best-seller do começo do século XX, do russo Dmitry
Merezhkovsky, sobre o gênio florentino.
Literatura literária
Em
defesa da literatura como arte, Leyla utiliza termos interessantes no calor da
discussão, que partem dela mesma ou de citações de críticos renomados. Os
termos variam minimamente no significado, afinal, o que ela quer mesmo é
qualificar a literatura que vale a pena ser lida pelo que há de qualidade
estética, publicada ao longo dos séculos: alta literatura; grande literatura;
boa literatura, literatura literária; literatura da alta modernidade;
literatura do adeus; literatura de ficção; literatura exigente.
Ela
está falando de uma mesma literatura, com um tipo específico de linguagem que a
define como arte. Ou seja, para cada termo utilizado há outras formas
literárias sendo excluídas, como a de Paulo Coelho, Sidney Sheldon, John
Grishman.
Além
disso, Leyla cria particularidades interessantes para mostrar a riqueza de
diversidade de seu objeto e a dificuldade que é separar joio do trigo: literatura
difícil (alta literatura), literatura séria (a boa literatura que ganha
prêmios) e literatura de entretenimento (“best-sellers sentimentais e/ou
eróticos, a ficção fantástica com alta população de vampiros e de magos, a
narrativa policial estereotipada”).
Neste
momento, em outras palavras, ela quer dizer que não exclui do bojo da
literatura os outros produtos de baixa qualidade estética, mas que eles não
devem reivindicar mais que o título de “romance para consumo de grande público:
policiais, sentimentais, fantasiosos, psicografados, autoajuda.”
Brasileiros
Que
autores contemporâneos são exemplos da alta literatura e que tipo de narração
fazem? São muitos nomes estrangeiros e brasileiros, de acordo com as
características de cada grupo.
Entre
os autores que dão ênfase para a metaficção (ou seja, intertextualidade, que se
constrói nos entrefios das citações da tradição, da literatura anterior) estão
o espanhol Enrique Vila-Matas, o francês Michel Houellebecq e o brasileiro Ricardo
Lísias.
Quando
o assunto é autor brasileiro que desponta pela qualidade no século XXI, dois nomes
vêm na comissão de frente: Ricardo Lísias e Bernardo Carvalho. Só depois
aparecem outros autores na específica categoria de “literatura exigente”, o que
não é pouca coisa, uma vez que, ao meu ver, a autora quis dizer com esse termo a
corrente que substitui a antiga denominação “alta literatura”.
Ou
seja, “literatura exigente” é a alta literatura do século XXI. Essa corrente é
composta de autores que prolongam “a experimentação praticada na alta
modernidade sem, no entanto, repeti-la.” A literatura exigente, diz Leyla, “já
assimilou as conquistas do século passado. Seus autores não se conformam com os
limites genéricos anteriores à modernidade, mesclam todos os gêneros
livremente.”
Entre
os brasileiros inseridos nessa categoria, além de Lísias e Carvalho, estão nomes
como Carlos de Brito e Mello, André Queiroz, Julián Fuks, Evando Nascimento,
Alberto Martins e Nuno Ramos.
A
leitura de Mutações da literatura no século XXI é uma grande lição, mas
também uma viagem prazerosa. O nível de pesquisa e de leitura da autora é
incomum. É um grande diálogo e um chamamento. O livro de Leyla realmente amplia
os horizontes do leitor, e certamente, como a literatura, confere mais
qualidade na vida de quem lê.
...
Nenhum comentário:
Postar um comentário