quarta-feira, 15 de março de 2017

Diálogo e chamamento na leitura de Mutações da literatura no século XXI, de Leyla Perrone-Moisés


Leyla Perrone-Moisés é boa de papo. Seu livro Mutações da literatura no século XXI (Companhia das Letras, 2016) traz uma rara espontaneidade. Estratégica, para falar sobre a quantas anda a literatura atual e sepultar (mas nada se sepulta no mundo líquido) de vez a ideia de que a literatura está morrendo, de que a literatura morreu, de que a literatura agoniza enquanto escrevo, ela abre seu primeiro capítulo justamente desmistificando as velhas lendas nascidas no século XX, os vaticínios da morte de tudo.

A autora descreve e demonstra que esta espécie de lista do fim do mundo revelou-se uma tremenda bullshit. “O fim do século XX, coincidindo com o fim de um milênio, viu o anúncio de muitos ‘fins’: fim do Homem, fim da história, fim dos grandes relatos, fim das utopias, fim da cultura ocidental, fim dos intelectuais, fim da arte... Felizmente, nenhum desses ‘fins’, até agora, se concretizou.”

E aí entra o acervo de argumentos extremamente competentes de uma pesquisadora que ama literatura, se não ama, engana como poucos, porque o substrato de sua escrita é seiva de amor correndo em cada página, pelas duas partes em que o livro é dividido, e suas subdivisões em 12 capítulos.

Na primeira parte, concentram-se elementos da crítica e da teoria. Na segunda, é aberto o passeio pela narrativa. Não eram mortes, diz ela. Eram mutações. E aí começa o show. Reivindica o conceito de estética como elemento central na obra literária, porque, segundo ela, o aspecto estético perdeu terreno para os estudos culturais e a banalização do conceito de literatura.

Leyla estudou a fundo os manuais que tentam explicar o que é literatura, e os passa a limpo para mostrar que eles não dão conta da explicação. Recorre às teorias tradicionais da narrativa, já consolidadas (formalismo russo, estruturalismo, new criticism, crítica marxista), e as depara com as teorias de autores contemporâneos, que além de escreverem romances também enveredaram pela crítica.

Entre outros autores contemporâneos que se arriscaram a teorizar seu metiê estão Milan Kundera (A arte do romance), Mario Vargas Llosa (A verdade das mentiras), Orhan Pamuk (O romancista ingênuo e o sentimental), J. M. Coetzee (Mecanismos internos), David Lodge (Write, de 1986, The practice of writing, de 1996, e Consciousness and the novel, de 2002),

Pós-moderno

Uma das razões para o anúncio da morte da literatura, sobretudo do romance, segundo Leyla, é que o mundo mudara, os parâmetros se tornaram múltiplos, e os teóricos e autores não encontravam novas maneiras de criar, e não se sentiam à vontade para voltar ao velho. O lançamento de livros como Ulysses, de James Joyce, e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, contribuíram muito para a sensação de fracasso dos posteriores.

Ou seja, o mundo contemporâneo é maior e mais complexo. Leyla ainda chama a atenção para o termo contemporâneo, que ela utiliza no lugar de pós-modernidade. Em linhas gerais, no contexto do livro, a contemporaneidade é o pós-moderno, com essa incrível complexidade e fragmentação diante da qual teóricos e artistas se afogam. É o que veio depois que a ideia de modernidade ruiu.

Herança

Os autores contemporâneos receberam uma herança literária, diz Leyla, e sem saber o que fazer com essa herança a matou, mas ela não morreu bem morrida, portanto voltou como espectro. “O espectro é o morto mal enterrado, é o passado que se recusa a morrer.”

Ao passar por um processo de mutação, a literatura vive nesse rio de coisas equívocas e escorregadias. Os romancistas contemporâneos reconhecem “que o mundo se tornou demasiado vasto, múltiplo e complexo para que o romance o abarque como uma totalidade.” É isso que vem acontecendo, argumenta Leyla.

Logo, a literatura não morreu, está apenas sofrendo um processo de mutação, cujo resultado ainda não está pronto. A literatura está, portanto, num interregno. “A literatura vive um interregno, aquele momento em que as regras antigas já não existem e outras, na melhor das hipóteses, ainda estão em gestação.”

O romance persiste, na produção e no consumo, apesar da fragmentação do saber e da experiência. Isso porque “a narração continua sendo uma necessidade humana básica”, diz Leyla. “Os homens continuam querendo saber como vivem os outros, isto é, como se pode viver, na realidade ou na fantasia.”

Mutações da literatura no século XXI é uma defesa da força literária na contemporaneidade. O século XXI é abordado com seus autores principais, mas o grande lance do livro é o modo como a autora cobre todo o século XX até chegar aos nossos dias, justamente para demonstrar que hoje a literatura está mais viva do que nunca.

A literatura não morreu porque sua essência é de transitoriedade, de reinterpretação. As gerações de hoje estão reinterpretando o que foi produzido pelos gigantes dos séculos XIX e XX, argumenta a autora.

Argumentos

Aliás, argumento é o que não falta para Leyla Perrone-Moisés. Muita coisa na leitura de seu livro é deliciosa. Uma das mais agradáveis é acompanhar sua série de argumentos: a literatura sempre teve dificuldade em se autodefinir; a literatura é plural, e deve ser estudada em sua pluralidade, pois, se ela morre num aspecto, está viva e pronta para atender o interessado em várias outras pontas.

A memória da humanidade está registrada na literatura, que encerra as palavras mais significativas da vida humana; quem não lê literatura possui um contexto estreito do mundo; a literatura não morre porque tem a faculdade de proliferar à custa de si mesma (intertextualidade, uma obra faz referência a outras ou a si mesma [intratextualidade], indefinidamente).

Entre as mutações da literatura está sua dessacralização, pois hoje “escrever não intimida mais ninguém; publicar não é mais objeto de dúvidas metafísicas e existenciais, é apenas uma questão de achar editor, de editar por conta própria ou de colocar o texto na internet.”

Leyla ainda argumenta que a principal característica da literatura contemporânea é a de usar de modo misturado, sem nenhuma reverência, todas as características já vistas em obras desde a antiguidade, como intertextualidade, paródia, fragmentação, ludismo (jogos verbais), ironia, abertura do sentido do texto (obra aberta).

Mas o autor contemporâneo não faz isso como um amador tentando galgar degraus na escada alheia. Faz isso de modo inovador, utilizando-se ainda de citação, reescritura, colagem, metaliteratura, referência, alusão, pastiche, intertexto (reescritura sem aspas). E uma coisa é clara, a literatura contemporânea (pós-moderna) tem na ironia seu traço dominante. Outro grande traço é a autoficção, à qual a autora dedica um capítulo inteiro.

A criação de romances que têm “por personagem principal um ‘grande escritor’ da época áurea da literatura”, também é típico da literatura contemporânea, argumenta ainda a autora, tão típico que chega a ser uma espécie de subgênero. Mas isso também não é novo, basta lembrarmos de O romance de Leonardo da Vinci, um romance best-seller do começo do século XX, do russo Dmitry Merezhkovsky, sobre o gênio florentino.

Literatura literária

Em defesa da literatura como arte, Leyla utiliza termos interessantes no calor da discussão, que partem dela mesma ou de citações de críticos renomados. Os termos variam minimamente no significado, afinal, o que ela quer mesmo é qualificar a literatura que vale a pena ser lida pelo que há de qualidade estética, publicada ao longo dos séculos: alta literatura; grande literatura; boa literatura, literatura literária; literatura da alta modernidade; literatura do adeus; literatura de ficção; literatura exigente.

Ela está falando de uma mesma literatura, com um tipo específico de linguagem que a define como arte. Ou seja, para cada termo utilizado há outras formas literárias sendo excluídas, como a de Paulo Coelho, Sidney Sheldon, John Grishman.

Além disso, Leyla cria particularidades interessantes para mostrar a riqueza de diversidade de seu objeto e a dificuldade que é separar joio do trigo: literatura difícil (alta literatura), literatura séria (a boa literatura que ganha prêmios) e literatura de entretenimento (“best-sellers sentimentais e/ou eróticos, a ficção fantástica com alta população de vampiros e de magos, a narrativa policial estereotipada”).

Neste momento, em outras palavras, ela quer dizer que não exclui do bojo da literatura os outros produtos de baixa qualidade estética, mas que eles não devem reivindicar mais que o título de “romance para consumo de grande público: policiais, sentimentais, fantasiosos, psicografados, autoajuda.”

Brasileiros

Que autores contemporâneos são exemplos da alta literatura e que tipo de narração fazem? São muitos nomes estrangeiros e brasileiros, de acordo com as características de cada grupo.

Entre os autores que dão ênfase para a metaficção (ou seja, intertextualidade, que se constrói nos entrefios das citações da tradição, da literatura anterior) estão o espanhol Enrique Vila-Matas, o francês Michel Houellebecq e o brasileiro Ricardo Lísias.

Quando o assunto é autor brasileiro que desponta pela qualidade no século XXI, dois nomes vêm na comissão de frente: Ricardo Lísias e Bernardo Carvalho. Só depois aparecem outros autores na específica categoria de “literatura exigente”, o que não é pouca coisa, uma vez que, ao meu ver, a autora quis dizer com esse termo a corrente que substitui a antiga denominação “alta literatura”.

Ou seja, “literatura exigente” é a alta literatura do século XXI. Essa corrente é composta de autores que prolongam “a experimentação praticada na alta modernidade sem, no entanto, repeti-la.” A literatura exigente, diz Leyla, “já assimilou as conquistas do século passado. Seus autores não se conformam com os limites genéricos anteriores à modernidade, mesclam todos os gêneros livremente.”

Entre os brasileiros inseridos nessa categoria, além de Lísias e Carvalho, estão nomes como Carlos de Brito e Mello, André Queiroz, Julián Fuks, Evando Nascimento, Alberto Martins e Nuno Ramos.

A leitura de Mutações da literatura no século XXI é uma grande lição, mas também uma viagem prazerosa. O nível de pesquisa e de leitura da autora é incomum. É um grande diálogo e um chamamento. O livro de Leyla realmente amplia os horizontes do leitor, e certamente, como a literatura, confere mais qualidade na vida de quem lê.


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