sábado, 16 de janeiro de 2016

Ficção política

Em A Importância do Ato de Ler, Paulo Freire deixa uma premissa fundamental na formação de leitores, segundo a qual, linguagem e realidade se prendem dinamicamente. Isso significa basicamente que aprender a ler a palavra é mais fácil quando se utiliza o mundo que o aprendiz já sabe ler (ou está aprendendo a ler, se for criança), ou seja, o mundo a seu redor.

Essa premissa serve para quase todo tipo de leitura, menos para ler de modo pleno a declaração de políticos quando falam de si mesmos à imprensa ou diretamente ao público. As duas coisas se desprendem de tal maneira que fica impossível conjugá-las, fazê-las caminharem lado a lado. Linguagem e realidade se desgrudam como elementos heterogêneos em decantação.

Trata-se de uma constatação que no fim das contas não é novidade alguma. O político sabe que falar de si para jornalistas no particular (off) ou com gravadores e câmeras ligados (on) não é o mesmo que falar de si a amigos e confidentes, na cozinha de casa, em um jantar entre amigos, numa conversa entre um “passe o sal” e uma garfada no prato principal.

Por isso mesmo, nas conversas com jornalistas, deve sempre usar a técnica de ser um outro, um ser estranho com a habilidade de fazer parecer real aquilo que declara de si mesmo, quando na verdade é pura ficção.

O último que tentou falar de si com integridade para a imprensa foi Fernando Henrique Cardoso, em 1985, e se deu mal. Na ocasião mantinha uma larga vantagem nas pesquisas na disputa pela Prefeitura de São Paulo, mas bastou dizer que era ateu (falou a verdade de si mesmo) e já era, perdeu a eleição aos 45 do segundo tempo. O resultado foi tão catastrófico que FHC mais tarde negaria até o que escrevera.

Se um político do Executivo está com medo de determinada pressão, diz algo do tipo: “Encaro isso com a coragem que Deus me deu.” Os mais ousados ficcionalizam inclusive quando falam da realidade da cidade, do Estado que administram ou da sociedade que representam. “Meu pensamento e minhas atitudes são democráticas”, dizem, quando na verdade trabalham o ano inteiro atendendo a interesses contrários aos dos cidadãos e até mesmo contrários à democracia.

Há sempre as exceções. Por isso, ao falar com um político pela primeira vez, talvez deva-se sempre perguntar em voz silenciosa: suas respostas para essas perguntas são reais ou fictícias? Quem está respondendo, é o político ou o cidadão? Como saber? Suas respostas os colocam na cozinha, em sua sala de jantar, ou numa tribuna? Que elementos podem nos guiar para a verdade de suas palavras? Que parte delas é a luz que iluminará o rastro de suas falas até chegar onde estão agora?

Entendê-los pelas palavras, como se fossem fios escassos que os tecem por inteiro, é impossível. É preciso fazer cada resposta relampejar sobre o homem, olhar com certa ternura para esses seres fora do habitat, fora do mundo político. Será que cada palavra é política? Será que cada verbo forjado na resposta é fruto da verdade líquida que rega esse jardim de traquejos? Onde está o homem aqui?

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