“Um
trabalho fundamental, extremamente importante e original na bibliografia de
nossa língua.” O que dizer depois desse trecho de uma carta assinada pelo
mestre da lexicografia e da filologia Antonio Houaiss, enviado a Adovaldo
Fernandes Sampaio, sobre seu livro Línguas
e Dialetos Românicos e Germânicos?
Em
2010, o livro foi relançado pela editora Kelps (7ª edição, 350 páginas,
acrescido de um opúsculo de 96 páginas que conta as línguas germânicas), por
meio da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Goiânia. O que dizer? Talvez
declarar o reconhecimento de não se ter nem mesmo ouvido falar de várias línguas
citadas nessa publicação exemplar.
Mas
isso, também um professor da Universidade de Bristol, Inglaterra, doutor no
assunto, já tratou de ressaltar, em 1996, pouco tempo após o lançamento da
primeira edição. “Fiquei impressionado com o fato de você ter distinguido uma
grande gama de dialetos e línguas singulares, muitas das quais jamais ouvi
falar”, diz o professor em carta ao autor.
O
mais original do trabalho de Sampaio é a proposta. Ele enviou um questionário a
421 pessoas falantes dessas línguas regionais, o que possibilitou a contagem de
cada um dos idiomas românicos e germânicos, chegando a mais de 170 (dos quais
cerca de 120 são de origem românica, ou seja, latina,como o português e o
picardo).
Para
atualizar a existência delas, o autor se valeu de um artifício canônico, que
lhe deu asas para sobrevoar os pormenores das línguas estudadas. Pediu a cada
um dos questionados que escrevesse o Pai-Nosso e a Ave-Maria em sua língua
materna. O resultado foi esse delicioso roteiro de mundos.
Armada
Algumas
dessas línguas podem ser consideradas dialetos. E Sampaio, sabiamente, cita a
palavra em seu título, para não assustar ninguém. Mas ele sabe que, a rigor,
toda língua pode ser um dialeto, e vice versa, dependendo da exploração de seu
conteúdo linguístico, do resguardo legal que há por trás de sua configuração
nacional, do valor cultural e da quantidade de pessoas que falam.
Mas
depende principalmente da nação que a defende. “Uma língua é um dialeto com
exército e marinha”, disse Max Weinreich (1893 - 1969), linguista judeu letão,
que citava um autor anônimo numa conferência internacional. Em relação ao valor
de cada uma, Sampaio assinala: “As línguas pertencem ao patrimônio da
Humanidade, e nenhuma é pobre nem insignificante.”
Dentro
desta perspectiva, manter um idioma vivo é uma luta, principalmente para as
pequenas nações, que muitas vezes nem Estado têm. Testemunhar em seu tempo uma
língua agonizar não é dos melhores sentimentos. “É uma pena que em vários
países, as línguas estejam desaparecendo”, lamenta o autor na introdução.
Seu
livro testemunha esse luto por meio de uma carta retirada de Le Judéo-espagnol,
de Haïm Vidal-Séphiha, escrita em judeo-espanhol, língua falada entre os
sefarditas, ou seja, judeus que habitaram a península ibérica até o final do
século XV, quando foram expulsos pelos espanhóis. Segundo Sampaio, essa língua
é falada até hoje, inclusive com a circulação de jornais em Israel e na
Turquia.
A
carta, Letras a um pintor, de Marcel Cohen, diz o seguinte: Karo Antonyo, /
Kero escrivirte en djudyo / antes ke no kede nada / del avlar de mis padres. /
No sabes, Antonyo, / lo ke es morire una lingua. / Es komo kedarse soliko en el
silensyo / kada diya ke el Dyo da, / komo estar sikileozo / sin saver porke.”
(A
tradução provavelmente é de Sampaio, embora não seja mencionado o tradutor):
“Caro Antonio: Quero escrever-te em judeo-espanhol antes que não reste mais
nada da língua de meus pais. Não sabes, Antônio, o que é a morte de uma língua.
É como ficar sozinho no silêncio cada um dos dias que Deus nos dá, (é) como
ficar triste sem saber por quê...”
O
livro de Sampaio vale pelo fascinante universo das línguas que o autor consegue
imprimir. É algo semelhante ao que fez Charles Berlitz, com o seu As Línguas do Mundo, com a diferença
de, neste caso, pôr o leitor na roda de histórias sobre os idiomas mais falados
no planeta.
Domínio
Até
mesmo uma pessoa monolíngue é capaz de se encantar com o som estranho de uma
língua que ela ouve pela primeira vez. Que dirá do charme das decodificações e
o prazer da descoberta de um novo universo de valores, de sentimentos e de
compreensão do real, quando se aprende outra língua? É ter acesso ao outro,
aproximar-se humanamente do outro. É um novo acesso ao real.
Conhecer
a língua do outro significa adquirir a responsabilidade de ajudar uma cultura
inteira a se manter viva, a se perpetuar, ou de conquistar o outro para
aniquilá-lo. Isso vai depender das intenções de quem aprende a língua. A última
opção foi o que fez Fernão Cortez, como vários conquistadores de mundos.
Cortez
e sua súcia aprenderam a língua dos astecas para ter acesso ao seu modo de
pensar, e em seguida os dominou e os aniquilou. Aqui no Brasil, aconteceu a
mesma coisa com os indígenas. “A língua sempre foi a companheira do império”,
disse Antonio de Nebrija, que em 1492 publicou a Gramática de Língua Espanhola,
a primeira de um idioma europeu moderno.
Conhecer
a língua do outro também oferece a oportunidade de se fazer amizade e ampliar
profundamente os horizontes. Quando duas pessoas se entendem, costuma-se dizer
que “falam a mesma língua”, o que significa uma espécie de acesso livre de um
ao universo particular do outro. O livro de Adovaldo oferece essa oportunidade
introdutória de um conhecimento profundo.
Línguas e Dialetos também dá a oportunidade de conhecermos um pouco mais
daquilo que é nosso berço etnolinguístico. No caso do Brasil, o que falta agora
é um trabalho diferenciado como este, com chaves de fácil manipulação, no
horizonte das línguas africanas das quais somos herdeiros, e o mesmo para as
línguas indígenas que têm na raiz parte de nossa origem e de nosso arquétipo
linguístico.
Nesses
dois últimos casos, o acesso ainda é feito de fios fracos, quer pela falta de
um sistema escrito elaborado, por parte de algumas línguas, quer pelo
preconceito e falta de interesse, por parte dos estudiosos.
BOX
Trecho
de Ave-Maria em:
Português
Ave,
Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco;
bendita
sois vós entre as mulheres,
e
bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus.
Murciano
[língua românica]
Dios
te sarve, Maria, renchia eres e jracia,
ir
Siñor está contigo,
bindita
tu eres d’entre toas las mujeres
y
bindito er fruto e tu buche, Jesules.
Estremenho
[língua românica]
Dios
te salvi, María, enllena estás de gracia.
El
Señol es contigu, bendita tu entri toas las mujeres,
y
benditu el frutu Del tu vientri, Jesús.
Bislamá
[língua germânica]
Meri,
i gud yu glad, God i mekem i gud tumas long yu.
Hem
i stap wetem yu.
Hem
i blessem yu moa long olgeta Woman.
Hem
i blessem Jisas tu, Pikinini blong yu.
Tittschu
[língua germânica]
Ech
tiö tech griezu Maria, vallje gratsia,
der
Ljebun Got isch bet diér.
Du
bescht bénedirte em allje d wiber,
Und
bénedirz isch di schu Jesus.
Serviço
Título:
Línguas e Dialetos Românicos e
Germânicos
Autor:
Adovaldo Fernandes Sampaio
Editora:
Kelps, 2010, 446 páginas
Gênero:
Linguística
Preço:
R$ 60
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