A rica trama da trilogia 1Q84, de Haruki Murakami, gira em torno de
Tengo e Aomame. Certo parágrafo sobre a infância de Tengo é todo exterioridade.
Mas numa palavra banal, até, o leitor passa a ver tudo de modo diferente: “Para
muitas pessoas, a manhã de domingo simboliza um momento de descanso. Mas,
quando criança, Tengo nunca associou a manhã de um domingo com algo alegre.
Muito pelo contrário, os domingos sempre o deixavam triste.”
Tudo em volta é o que acontece com os
outros ou até mesmo o que acontece com Tengo. O domingo é algo exterior, não é
subjetividade, é um processo de objetivação do mundo. Tudo é fora, inclusive a
palavra alegre, que é a antítese do sentimento de Tengo, menos a palavra triste,
sua condição cabal. E o narrador pega essa mísera palavra que denota uma
interioridade, um sentimento, uma manifestação subjetiva, e a envolve numa
série inumerável de acontecimentos repetitivos no maldito domingo, um não, vários
(todos), da infância de Tengo. Nessa ocasião, ele acompanhava o pai no trabalho
de cobrança de porta em porta.
“Houvesse o que houvesse, todos os
domingos, da manhã até o entardecer, ele precisava acompanhar o pai no roteiro
de cobranças. Era uma regra imutável. Uma regra que não admitia exceção e que
não tinha margem para nenhum tipo de mudança. Mesmo gripado e tossindo sem
parar, mesmo com febre ou com dor de barriga, seu pai não o poupava. Quando
estava nesse estado, caminhando com dificuldade atrás do pai, Tengo imaginava
como seria bom desmaiar e morrer ali mesmo.”
Em outra passagem sobre Tengo, a desconstrução
que parece vir de fora, vem de dentro, e aí é mais avassalador.
“Ele não era bonito no sentido
convencional dos padrões de beleza, nem era do tipo extrovertido, e suas
conversas não eram exatamente divertidas nem interessantes. Sempre estava sem
dinheiro e suas roupas não eram boas. Mas, assim como certas plantas exalam um
aroma que atrai os insetos, ele conseguia atrair um certo tipo de mulher.”
A marca do realismo nessa trilogia de
Murakami também é interessante. Ele usa a linguagem realista como isca para
fisgar o leitor e o levar para o reino sombrio de sua ficção. Parece ser o mais
ocidental dos autores japoneses. Só parece. Assim como o Japão assimilou a
técnica de produção do fordismo para depois criar o just in time e uma série de
inovações no sistema de produção, adotou os gestos americanos, o olhar ligeiro
do mundo capitalista, mas não se sucumbiu a ele, Murakami recupera de modo
diferente, sui generis, as fábulas do Ocidente. É uma espécie de Kurosawa da
literatura.
Veja uma descrição de Aomame:
“Aomame tinha um cuidado especial com
suas refeições. Eram à base de verduras, legumes e frutos do mar,
principalmente peixes de carne branca. Quanto às carnes, comia de vez em quando
a de frango. Os ingredientes eram sempre frescos e, para temperá-los, utilizava
o mínimo de condimentos. Evitava alimentos com alto teor de gordura e
controlava a quantidade de carboidratos.”
Mas não é isso que interessa nela.
Interessa, isso, sim, sua solidão, o não dito da forma como ela se apresenta ao
mundo do leitor. Aomame é quase invisível porque é transcendental, como Tengo, eles,
opostos na forma, são íntimos, similares, na essência estranha de seres transcendentes,
de um mundo mágico, de um universo surreal, que no fim das contas é o próprio
reflexo da ficção de Murakami.
O que ele faz em sua literatura é mais ou
menos o que faz Rubem Fonseca aqui no Brasil, mas de modo diverso, claro. Ambos
se valem do real como ferramenta para transcender, para fisgar a alma do
leitor. São como demônios. Apropriam-se da alma do leitor, aproveitando sua
entrega.
É bom lembrar, no entanto, que este é
apenas um tipo de literatura. Não encerra a essência da arte, não chega sequer
ao topo, ou à ponta, dos fios que tecem a magia de narrar. Murakami parece
superar os mestres (Akutagawa e Mishima, sobretudo) na delícia da prosa, mas no
poço das verdades, onde estes estão descendo lá no fundo, aquele ainda se
engancha com as pernas pelo meio da descida.
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