segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Complexo de Eco (conto)


Na noite anterior àquele dia fatídico João Nuto estava bem. O bairro onde morava era tranquilo. Ouvia-se apenas um zumbido distante de carros trafegando nas ruas mais ao centro, ou na rodovia que levava ao litoral.

Comedido nas palavras e na linguagem corporal, João Nuto acordava cedo, lia três, quatro jornais e depois ia para o trabalho. Era assim a sua rotina, tão certa quanto um relógio inglês.

Executara as mesmas ações na manhã do dia anterior. Nem imaginava que naquela noite lhe seria posto uma curva em seu caminho. Na tarde pregressa, ao voltar para casa, sentia-se ótimo. Finalmente havia convencido Mara a voltar para ele. O reencontro seria ali, em sua casa.

Dentro daquela noite cheia de expectativas, concentrou-se nas lembranças de Mara que mais apreciava. Adorava a voz melíflua dela e o jeito de andar – um sutil rebolado que valorizava o vaivém dos quadris. Imaginou-a chegando, dizendo olá com o largo sorriso, e ele ali, rodeado de música e vinho, pronto para o enlace amoroso.

A noite, no entanto, cada vez mais, tornava-se prenúncio de um novo dia e Mara não chegava.
À medida que o tempo passava, as imagens de Mara se tornavam densas, confusas, um misto de amor e decepção condensados no áspero sabor da espera. Até que, pelo fiapo de bom senso que lhe restava ainda, ele soube que Mara não chegaria mais. Seu gesto de homem paciente, confiante de que eram virtude de poucos sua ternura e sua calma, já não convencia nem a ele, mesmo que no fundo quisesse acreditar naquele auto-embuste.

No adiantado da noite, passou a viver um drama interior mais intenso, turbulento demais, que o deixou confuso e com o desejo fixo no corpo e na voz da mulher ausente. A felicidade da espera não fazia mais sentido. Sua angústia era toda Mara. Sua vida era todo amor. Paixão indelével dedicada a ela, sem posse ao menos de um resquício de esperança de tê-la em seus braços. Ele agora se alimentava apenas de um fio tênue de desespero. Era isto que amarrava seus sentimentos a Mara.

Ela não chegara. Sequer havia telefonado para dizer alguma coisa, algo que o deixasse saber se o imprevisto que acontecera era mesmo grande o bastante para impedir tal encontro. Na verdade, ele não queria pensar nas razões da negligência. Não permitia que outra violência invadisse sua alma a não ser a tortura da espera, misturada às imagens doces de Mara.

Ficou ali, parado, remoendo o desespero de ser esquecido. Sua cabeça fervilhava. Não sabia o que pensar, nem o que fazer para sair daquela situação. Certamente ela estava se divertindo em algum lugar, rebolando seu traseiro na frente de um sujeito qualquer numa dessas baladas, imaginava ele. Ou estaria ela na cama, em espasmos de gozo e felicidade suprema? Estaria ela agora cedendo seus gemidos, seus gritinhos sensuais aos ouvidos de um filho da puta qualquer? Ou será que tinha morrido a caminho do encontro, num desses corriqueiros acidentes de trânsito? Seria isso? Por isso não chegara?

Todo seu espírito encontrava-se, em escala crescente, comprometido com o desejo de ver quem não queria vê-lo. Desespero de amor por você, pensava ele, sentado num sofá de dois lugares, sozinho, de coração amarrotado, olhando fixamente uma mancha acinzada na parede branca da sala.

Sua cabeça parecia alojar uma chapa quente em cuja superfície se joga água fria. Quanto maior a calmaria do lado de fora, tanto mais dentro de si mergulhava Nuto atrás de seu objeto do desejo, e mais intensa tornava-se aquela ebulição. Sua mente era só tumulto.

Toda aquela solidão da casa, o silêncio do bairro onde morava e o marasmo total de um lugar ermo não casavam bem com a agitação de seu espírito. Tudo parecia agora insuportável dentro dele. A imagem de Mara se misturava com mais força ao turbilhão de ideias de todos os gêneros, tempos e espaços que ocupavam seu ser. Sentia que sua cabeça ia explodir nesse fervilhar.

Tinha medo de que seu destino fosse a solidão das pedras, sob o bosque em que ninfas cantavam docemente.

Mara quentinha, debaixo das cobertas, esperando por ele. Sutiã meia-taça. Aqueles peitos tesos, polpudos, aqueles peitos firmes, donos de si. Todo o corpo de Mara ali. Como seria bom!

Então se deu conta de que aquela lembrança lhe fazia mal. Levantou-se do sofá, saltando da letargia ao controle remoto. Ligou a televisão para ver aquilo que não o via. A TV não era muito diferente da postura de Mara em relação a ele. Mara também não o via. Nunca o vira. Ele é que insistia naquela insanidade de conquistar uma mulher que fazia dele fantasma.

A princípio, seu artifício funcionou. O volume alto da TV moldava em sua mente uma calma que o deixava ocupar seu espírito com outras tramas. Mas logo toda a simulação foi por água abaixo. Passou a zapear canais, tentou rir, tentou interagir, tentou existir diante daquela solidão, mas nem mesmo a algazarra de bundas e o tilintar de taças num filme conseguiram manter o equilíbrio entre seu rilhar interno e o que a própria televisão costuma produzir.

No meio da madrugada, dentro da espera incessante, sua cabeça não aguentava mais. Saiu de casa, entrou na noite, foi de bar em bar à procura de alguma coisa que preenchesse o vazio cavado por Mara. Foi de rua em rua procurando sons. Foi de festa em festa à cata de chiados, burburinhos, movimento e ritmo, multidão e vidas. Visitou boates, inferninhos, festas de aniversário de pessoas que ele nem conhecia. Experimentou todas essas manifestações de vida em silêncio absoluto. Mas, ao mesmo tempo, trancava em si um Big Bang.

Depois de perambular pela madrugada afora, caminhando em busca de algo desconhecido, agora enfrentava o sol da manhã numa rua silente e deserta, a sentir o ar de um vento frio tremelicando em sua pele. Seu drama não dormira, e ali não era possível ficar.

Ainda se lembrava de Mara, e o chiar de sua mente mantinha-se na mesma intensidade. Tudo que desejava naquele momento era encontrar lugares movimentados, onde pudesse aplainar sua própria balbúrdia com o barulho vindo de fora. Continuou a marcha até se encontrar em pleno centro da cidade, numa rua cujas calçadas se viam em disputas ruidosas entre transeuntes e camelôs. E foi ali que ficou. Foi justamente ali que ele se jogou, já exausto, na esperança de atingir seu fim. No entanto, barulho nenhum fazia mais sentido. Ele nem sabia mais a diferença do que se passava com ele e o que se exaltava por conta dos outros. Foi aí que, de repente, começou a falar. Desandou a proferir um discurso que tendia cada vez mais a liberar o irreversível pathos de um amor sem controle:

“Desespero de amor por você. Desespero. Nada mais. Desfaço os laços da vida. Desando, me irrompo de amor por você, ó Mara. Amor que de todos os gozos foi o mais puro, de todas as vozes foi a mais retumbante em mim. Das imagens percorridas no meu filme foi a que mais me cativou. Desespero de amor por você. Sucumbo de vez e não retorno à vida porque sei que a monotonia dela sem teus braços enlaçados em mim, sem teus peitos roçando meu peito, sem tua boca alimentando meus desejos, não me deixaria suportar o movimento do mundo, as algazarras dos passos humanos rumo à morte. Eu não suportaria, ó Mara, esse marulhar em minha alma, quando tenho tanto a lhe dizer. Desespero de amor por você.”

Seu discurso variava, mas logo reduziu a poucas palavras cujo auge era a repetição “desespero de amor por você”.

O tempo passou.

Desde aquele dia, quando levantou a voz para o primeiro grito e ficou conhecido como O Doido, Mara já não existia mais. No limite da alma havia perdido-a. Tudo que fazia agora era revolver as mesmas palavras, que ecoavam pelas ruas da cidade.

(Gilberto G. Pereira. Curitiba/São Paulo, 5 de setembro de 2004)

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