Na
noite anterior àquele dia fatídico João Nuto estava bem. O bairro onde morava
era tranquilo. Ouvia-se apenas um zumbido distante de carros trafegando nas
ruas mais ao centro, ou na rodovia que levava ao litoral.
Comedido
nas palavras e na linguagem corporal, João Nuto acordava cedo, lia três, quatro
jornais e depois ia para o trabalho. Era assim a sua rotina, tão certa quanto
um relógio inglês.
Executara
as mesmas ações na manhã do dia anterior. Nem imaginava que naquela noite lhe
seria posto uma curva em seu caminho. Na tarde pregressa, ao voltar para casa,
sentia-se ótimo. Finalmente havia convencido Mara a voltar para ele. O
reencontro seria ali, em sua casa.
Dentro
daquela noite cheia de expectativas, concentrou-se nas lembranças de Mara que
mais apreciava. Adorava a voz melíflua dela e o jeito de andar – um sutil
rebolado que valorizava o vaivém dos quadris. Imaginou-a chegando, dizendo olá
com o largo sorriso, e ele ali, rodeado de música e vinho, pronto para o enlace
amoroso.
A
noite, no entanto, cada vez mais, tornava-se prenúncio de um novo dia e Mara
não chegava.
À
medida que o tempo passava, as imagens de Mara se tornavam densas, confusas, um
misto de amor e decepção condensados no áspero sabor da espera. Até que, pelo
fiapo de bom senso que lhe restava ainda, ele soube que Mara não chegaria mais.
Seu gesto de homem paciente, confiante de que eram virtude de poucos sua
ternura e sua calma, já não convencia nem a ele, mesmo que no fundo quisesse
acreditar naquele auto-embuste.
No
adiantado da noite, passou a viver um drama interior mais intenso, turbulento
demais, que o deixou confuso e com o desejo fixo no corpo e na voz da mulher
ausente. A felicidade da espera não fazia mais sentido. Sua angústia era toda Mara.
Sua vida era todo amor. Paixão indelével dedicada a ela, sem posse ao menos de
um resquício de esperança de tê-la em seus braços. Ele agora se alimentava
apenas de um fio tênue de desespero. Era isto que amarrava seus sentimentos a
Mara.
Ela
não chegara. Sequer havia telefonado para dizer alguma coisa, algo que o
deixasse saber se o imprevisto que acontecera era mesmo grande o bastante para
impedir tal encontro. Na verdade, ele não queria pensar nas razões da
negligência. Não permitia que outra violência invadisse sua alma a não ser a
tortura da espera, misturada às imagens doces de Mara.
Ficou
ali, parado, remoendo o desespero de ser esquecido. Sua cabeça fervilhava. Não
sabia o que pensar, nem o que fazer para sair daquela situação. Certamente ela
estava se divertindo em algum lugar, rebolando seu traseiro na frente de um
sujeito qualquer numa dessas baladas, imaginava ele. Ou estaria ela na cama, em
espasmos de gozo e felicidade suprema? Estaria ela agora cedendo seus gemidos,
seus gritinhos sensuais aos ouvidos de um filho da puta qualquer? Ou será que
tinha morrido a caminho do encontro, num desses corriqueiros acidentes de
trânsito? Seria isso? Por isso não chegara?
Todo
seu espírito encontrava-se, em escala crescente, comprometido com o desejo de ver
quem não queria vê-lo. Desespero de amor por você, pensava ele, sentado num
sofá de dois lugares, sozinho, de coração amarrotado, olhando fixamente uma
mancha acinzada na parede branca da sala.
Sua
cabeça parecia alojar uma chapa quente em cuja superfície se joga água fria.
Quanto maior a calmaria do lado de fora, tanto mais dentro de si mergulhava
Nuto atrás de seu objeto do desejo, e mais intensa tornava-se aquela ebulição.
Sua mente era só tumulto.
Toda
aquela solidão da casa, o silêncio do bairro onde morava e o marasmo total de
um lugar ermo não casavam bem com a agitação de seu espírito. Tudo parecia
agora insuportável dentro dele. A imagem de Mara se misturava com mais força ao
turbilhão de ideias de todos os gêneros, tempos e espaços que ocupavam seu ser.
Sentia que sua cabeça ia explodir nesse fervilhar.
Tinha
medo de que seu destino fosse a solidão das pedras, sob o bosque em que ninfas
cantavam docemente.
Mara
quentinha, debaixo das cobertas, esperando por ele. Sutiã meia-taça. Aqueles
peitos tesos, polpudos, aqueles peitos firmes, donos de si. Todo o corpo de
Mara ali. Como seria bom!
Então
se deu conta de que aquela lembrança lhe fazia mal. Levantou-se do sofá,
saltando da letargia ao controle remoto. Ligou a televisão para ver aquilo que
não o via. A TV não era muito diferente da postura de Mara em relação a ele.
Mara também não o via. Nunca o vira. Ele é que insistia naquela insanidade de
conquistar uma mulher que fazia dele fantasma.
A
princípio, seu artifício funcionou. O volume alto da TV moldava em sua mente
uma calma que o deixava ocupar seu espírito com outras tramas. Mas logo toda a
simulação foi por água abaixo. Passou a zapear canais, tentou rir, tentou
interagir, tentou existir diante daquela solidão, mas nem mesmo a algazarra de
bundas e o tilintar de taças num filme conseguiram manter o equilíbrio entre
seu rilhar interno e o que a própria televisão costuma produzir.
No
meio da madrugada, dentro da espera incessante, sua cabeça não aguentava mais.
Saiu de casa, entrou na noite, foi de bar em bar à procura de alguma coisa que
preenchesse o vazio cavado por Mara. Foi de rua em rua procurando sons. Foi de
festa em festa à cata de chiados, burburinhos, movimento e ritmo, multidão e
vidas. Visitou boates, inferninhos, festas de aniversário de pessoas que ele
nem conhecia. Experimentou todas essas manifestações de vida em silêncio
absoluto. Mas, ao mesmo tempo, trancava em si um Big Bang.
Depois
de perambular pela madrugada afora, caminhando em busca de algo desconhecido,
agora enfrentava o sol da manhã numa rua silente e deserta, a sentir o ar de um
vento frio tremelicando em sua pele. Seu drama não dormira, e ali não era
possível ficar.
Ainda
se lembrava de Mara, e o chiar de sua mente mantinha-se na mesma intensidade.
Tudo que desejava naquele momento era encontrar lugares movimentados, onde
pudesse aplainar sua própria balbúrdia com o barulho vindo de fora. Continuou a
marcha até se encontrar em pleno centro da cidade, numa rua cujas calçadas se
viam em disputas ruidosas entre transeuntes e camelôs. E foi ali que ficou. Foi
justamente ali que ele se jogou, já exausto, na esperança de atingir seu fim.
No entanto, barulho nenhum fazia mais sentido. Ele nem sabia mais a diferença
do que se passava com ele e o que se exaltava por conta dos outros. Foi aí que,
de repente, começou a falar. Desandou a proferir um discurso que tendia cada
vez mais a liberar o irreversível pathos de um amor sem controle:
“Desespero
de amor por você. Desespero. Nada mais. Desfaço os laços da vida. Desando, me
irrompo de amor por você, ó Mara. Amor que de todos os gozos foi o mais puro,
de todas as vozes foi a mais retumbante em mim. Das imagens percorridas no meu
filme foi a que mais me cativou. Desespero de amor por você. Sucumbo de vez e
não retorno à vida porque sei que a monotonia dela sem teus braços enlaçados em
mim, sem teus peitos roçando meu peito, sem tua boca alimentando meus desejos,
não me deixaria suportar o movimento do mundo, as algazarras dos passos humanos
rumo à morte. Eu não suportaria, ó Mara, esse marulhar em minha alma, quando
tenho tanto a lhe dizer. Desespero de amor por você.”
Seu
discurso variava, mas logo reduziu a poucas palavras cujo auge era a repetição
“desespero de amor por você”.
O
tempo passou.
Desde
aquele dia, quando levantou a voz para o primeiro grito e ficou conhecido como
O Doido, Mara já não existia mais. No limite da alma havia perdido-a. Tudo que
fazia agora era revolver as mesmas palavras, que ecoavam pelas ruas da cidade.
(Gilberto
G. Pereira. Curitiba/São Paulo, 5 de setembro de 2004)
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