terça-feira, 21 de maio de 2013

As obras da estupidez humana - os papiros de Herculanum

Amostra de um rolo de papiro de Herculanum


Paralelamente à vontade dos poderes que assim queimaram milhares de obras, existe uma outra causa de destruição que esquecemos muitas vezes: a incompetência, ou, por outras palavras, a estupidez humana. Nas ruínas de Herculanum, a pequena cidade romana arruinada por uma erupção do Vesúvio em 79 depois de Cristo, foi encontrado aquilo que constitui o sonho de todos os arqueólogos: uma importante biblioteca de rolos antigos.

As obras tinham-se ressentido muito com a catástrofe, evidentemente, e, de início, ninguém conseguia identificá-las. Apresentavam-se sob a forma de cilindros oblongos, mais ou menos regulares, comprimidos, semiqueimados, e confundiram-nos com pedaços de madeira carbonizados. Puseram-nos de lado e chamaram o lugar onde tinham sido encontrados de ‘loja do carpinteiro’.

Posteriormente, houve quem se apercebesse de que aqueles ‘toros’ eram formados por folhas concêntricas, que se transformaram em pó logo que se lhes tocava. Surge uma nova hipótese: tratava-se de ‘trouxas de roupas carbonizadas.’ E as obras-primas continuaram a ser lançadas ao lixo.

Finalmente, em 1783, um certo Camille Paderni, um pintor romano sem grande talento, apercebeu-se da existência de caracteres nesses fragmentos. Paderni gabou-se até morrer de ter salvo, graças à sua intuição, milhares de obras da Antiguidade. Vejamos o que na realidade sucedeu.

Depois da sua descoberta genial, Paderni juntou um monte de “toros” e dedicou-se à sua leitura. Para isso, inventou um processo cuja eficácia deixava muito a desejar. Com uma faca vulgar, cortava os cilindros em dois, no museu de Nápoles, e ia esgaravatando nos invólucros até conseguir separá-los.

Mesmo que tivesse conseguido os seus objetivos através desse método grosseiro, não obteria mais que fragmentos dispersos, difíceis de reconstituir. Efetivamente, os rolos de que se ocupou transformavam-se em cinzas. Dos oitocentos encontrados, cento e quarenta e dois foram destruídos por ele. O rei de Nápoles acabou por se opor a isso, proibindo Paderni de prosseguir as suas lamentáveis experiências.

Os sucessores do pintor não tiveram melhor sorte. O padre Antônio Piaggio de Gênova construiu uma máquina especial para desenrolar os documentos. Com ela, separava uma a uma as camadas sucessivas como se se tratasse duma cebola, introduzindo entre elas um fino cinzel, ao mesmo tempo que as aspergia com uma solução alcoolizada.

O processo, além de pouco seguro, revelou ser demasiado lento. Em quatro anos, Piaggio apenas conseguiu recopiar trinta e nove colunas dum único rolo. Durante a vida inteira, ocupou-se de dezoito manuscritos somente. Nenhum foi integralmente reconstituído e todos saíram da operação mais mutilados do que estavam antes.

No século XIX, o químico Humphrey Davy decidiu resolver o problema dos rolos que restavam. Abriu vinte e três manuscritos, à custa de novas mutilações. Reconstituiu, é certo, algumas passagens, mas falhou nos conjuntos: os rolos continuavam a sair ainda mais estragados da mão dos investigadores. Outros propuseram métodos mais ou menos sérios: injeções de parafina, lavagens com álcool, com glicerina, descolagem com a ajuda de vapor de água. Nenhum método eficaz foi descoberto.

Em 1903, um certo Carlo Marre pensou em queimar um pouco mais os rolos, em parte carbonizados. Resultado: o manuscrito 266 ardeu por completo. Um alemão, Siekler de Hildburghausen, alvitrou um método pessoal, de que resultou a destruição completa de mais sete rolos. Assim, em menos de cento e cinquenta anos, sucessivos amadores conseguiram cortar aos bocados ou reduzir a pó um tesouro que datava do século I antes de Cristo e se conservara todos aqueles séculos graças a condições excepcionais.

Uma verdadeira biblioteca romana contendo um conjunto de escritos filosóficos, sobretudo da escola de Epicuro, foi assim explorada duma forma lamentável, sendo os resultados desse esforço quase nulos.

(In: Os grandes livros misteriosos, de Guy Bechtel. Edições 70: Lisboa, 1978, pp. 350-53)

A bela passagem acima é factual, até onde se sabe. Mas poderia ser um conto de Borges. Muito bom. O livro todo é uma delícia de descobertas e fracassos do espírito. Descobertas pela escritura. Fracassos pelas investidas autoritárias do pensamento contrário, da aversão arrasadora do poder vigente, e pela estupidez humana.

Os parágrafos estão fragmentados para facilitar a leitura do navegador virtual.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

A máquina da primavera ainda sorri



Em 1974, quando a guerra do Vietnã estava na agonia do fim, o poeta Ferreira Gullar lançou um livro chamado Dentro da noite veloz, com poemas engajados ideologicamente, mas que vão além disso. Em cada verso, uma carga de emoção expõe o drama humano. É o fruto de um olhar estarrecido sobre a humanidade. Um olhar voltado para a ação do homem contra seu igual, seu irmão, um olhar de espanto em meio ao sangue e à dor.

Os poemas tratam de vários conflitos e lutas, mas o Vietnã tinha um peso ali. Passou a guerra, em que muitos morreram, entre soldados e civis, muitos outros se tornaram heróis e vencidos, e a poesia de Gullar daquele livro continua atual. Basta pular as palavras de referência, e tudo continua exatamente o mesmo.

Um exemplo disso é o poema Por você por mim, em que o sujeito poético traça um paralelo entre dois ambientes: o Rio de Janeiro tranquilo, com praia e sol, onde “nenhuma ameaça pesa sobre a cidade”, e as vilas vietnamitas, como Hanoi e Haiphong, num país cujas crianças “fogem dos jardins onde açucenas pulsam como bombas-relógio (...) e a máquina da primavera danificada não consegue sorrir.”

No meio do poema, em que há mortes demais e o “motor da vida gira ao contrário”, o sujeito poético se espanta e questiona: “Como pode uma cidade resistir.” Nos dias de hoje, a mesma pergunta pode ser feita a várias cidades brasileiras, incluindo o Rio e Goiânia, afundadas na violência cotidiana com crianças sendo mortas de muitas maneiras.

Mas como o assunto é guerra, basta sairmos do Sudeste Asiático rumo ao Oriente Médio e temos Síria, em meio a uma guerra sem fim, em que crianças morrem, se perdem, fogem, enquanto os adultos se ocupam em matar e morrer também. Vemos isso em vídeos e fotos.

Numa dessas fotografias enviadas pelas agências de notícia, crianças brincam em cima de dois carros completamente destruídos por bombas, em Alepo, na Síria. No horizonte, apenas a terra devastada, um deserto de destroços que nega a vida a cada milímetro. E a gente se pergunta de onde vêm essas crianças, como é possível resistir em meio ao caos e à violência sem controle. Mas elas resistem.

A vida resiste. E isso é o que impressiona. Se pensarmos na Síria como um território tão rico de história e área de passagem de várias culturas, terreno que ecoa tantas memórias antigas, e vê-la agora toda em frangalhos, não podemos ter senão o mesmo espanto do poeta.

Se pensarmos no Oriente Médio como palco da violência, ora aqui, ora ali, homens tombando desde antes de se inventar a dinamite, mísseis inteligentes guiados pela última invenção da robótica para matar o inimigo, é espantoso ver as crianças, essa máquina da primavera, ensaiando uma pequena fé na existência, na vontade de exercitar a esperança.

Uma criança é sempre uma esperança. Essa ideia é concreta mesmo para quem nunca foi pai. E é nesses momentos que vemos que a máquina da primavera ainda consegue sonhar e sorrir. 

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 03/05/2013)