Em 1974, quando a guerra do Vietnã estava
na agonia do fim, o poeta Ferreira Gullar lançou um livro chamado Dentro da noite veloz, com poemas
engajados ideologicamente, mas que vão além disso. Em cada verso, uma carga de
emoção expõe o drama humano. É o fruto de um olhar estarrecido sobre a
humanidade. Um olhar voltado para a ação do homem contra seu igual, seu irmão,
um olhar de espanto em meio ao sangue e à dor.
Os poemas tratam de vários conflitos e
lutas, mas o Vietnã tinha um peso ali. Passou a guerra, em que muitos morreram,
entre soldados e civis, muitos outros se tornaram heróis e vencidos, e a poesia
de Gullar daquele livro continua atual. Basta pular as palavras de referência,
e tudo continua exatamente o mesmo.
Um exemplo disso é o poema Por você por
mim, em que o sujeito poético traça um paralelo entre dois ambientes: o Rio de
Janeiro tranquilo, com praia e sol, onde “nenhuma ameaça pesa sobre a cidade”,
e as vilas vietnamitas, como Hanoi e Haiphong, num país cujas crianças “fogem
dos jardins onde açucenas pulsam como bombas-relógio (...) e a máquina da
primavera danificada não consegue sorrir.”
No meio do poema, em que há mortes demais
e o “motor da vida gira ao contrário”, o sujeito poético se espanta e
questiona: “Como pode uma cidade resistir.” Nos dias de hoje, a mesma pergunta
pode ser feita a várias cidades brasileiras, incluindo o Rio e Goiânia,
afundadas na violência cotidiana com crianças sendo mortas de muitas maneiras.
Mas como o assunto é guerra, basta
sairmos do Sudeste Asiático rumo ao Oriente Médio e temos Síria, em meio a uma
guerra sem fim, em que crianças morrem, se perdem, fogem, enquanto os adultos
se ocupam em matar e morrer também. Vemos isso em vídeos e fotos.
Numa dessas fotografias enviadas pelas
agências de notícia, crianças brincam em cima de dois carros completamente
destruídos por bombas, em Alepo, na Síria. No horizonte, apenas a terra
devastada, um deserto de destroços que nega a vida a cada milímetro. E a gente
se pergunta de onde vêm essas crianças, como é possível resistir em meio ao
caos e à violência sem controle. Mas elas resistem.
A vida resiste. E isso é o que
impressiona. Se pensarmos na Síria como um território tão rico de história e
área de passagem de várias culturas, terreno que ecoa tantas memórias antigas,
e vê-la agora toda em frangalhos, não podemos ter senão o mesmo espanto do
poeta.
Se pensarmos no Oriente Médio como palco
da violência, ora aqui, ora ali, homens tombando desde antes de se inventar a
dinamite, mísseis inteligentes guiados pela última invenção da robótica para
matar o inimigo, é espantoso ver as crianças, essa máquina da primavera,
ensaiando uma pequena fé na existência, na vontade de exercitar a esperança.
(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 03/05/2013)
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