sexta-feira, 10 de maio de 2013

A máquina da primavera ainda sorri



Em 1974, quando a guerra do Vietnã estava na agonia do fim, o poeta Ferreira Gullar lançou um livro chamado Dentro da noite veloz, com poemas engajados ideologicamente, mas que vão além disso. Em cada verso, uma carga de emoção expõe o drama humano. É o fruto de um olhar estarrecido sobre a humanidade. Um olhar voltado para a ação do homem contra seu igual, seu irmão, um olhar de espanto em meio ao sangue e à dor.

Os poemas tratam de vários conflitos e lutas, mas o Vietnã tinha um peso ali. Passou a guerra, em que muitos morreram, entre soldados e civis, muitos outros se tornaram heróis e vencidos, e a poesia de Gullar daquele livro continua atual. Basta pular as palavras de referência, e tudo continua exatamente o mesmo.

Um exemplo disso é o poema Por você por mim, em que o sujeito poético traça um paralelo entre dois ambientes: o Rio de Janeiro tranquilo, com praia e sol, onde “nenhuma ameaça pesa sobre a cidade”, e as vilas vietnamitas, como Hanoi e Haiphong, num país cujas crianças “fogem dos jardins onde açucenas pulsam como bombas-relógio (...) e a máquina da primavera danificada não consegue sorrir.”

No meio do poema, em que há mortes demais e o “motor da vida gira ao contrário”, o sujeito poético se espanta e questiona: “Como pode uma cidade resistir.” Nos dias de hoje, a mesma pergunta pode ser feita a várias cidades brasileiras, incluindo o Rio e Goiânia, afundadas na violência cotidiana com crianças sendo mortas de muitas maneiras.

Mas como o assunto é guerra, basta sairmos do Sudeste Asiático rumo ao Oriente Médio e temos Síria, em meio a uma guerra sem fim, em que crianças morrem, se perdem, fogem, enquanto os adultos se ocupam em matar e morrer também. Vemos isso em vídeos e fotos.

Numa dessas fotografias enviadas pelas agências de notícia, crianças brincam em cima de dois carros completamente destruídos por bombas, em Alepo, na Síria. No horizonte, apenas a terra devastada, um deserto de destroços que nega a vida a cada milímetro. E a gente se pergunta de onde vêm essas crianças, como é possível resistir em meio ao caos e à violência sem controle. Mas elas resistem.

A vida resiste. E isso é o que impressiona. Se pensarmos na Síria como um território tão rico de história e área de passagem de várias culturas, terreno que ecoa tantas memórias antigas, e vê-la agora toda em frangalhos, não podemos ter senão o mesmo espanto do poeta.

Se pensarmos no Oriente Médio como palco da violência, ora aqui, ora ali, homens tombando desde antes de se inventar a dinamite, mísseis inteligentes guiados pela última invenção da robótica para matar o inimigo, é espantoso ver as crianças, essa máquina da primavera, ensaiando uma pequena fé na existência, na vontade de exercitar a esperança.

Uma criança é sempre uma esperança. Essa ideia é concreta mesmo para quem nunca foi pai. E é nesses momentos que vemos que a máquina da primavera ainda consegue sonhar e sorrir. 

(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente em O Popular, 03/05/2013) 

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