segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Território vazio - uma leitura de O mestre de go



Yasunari Kawabata foi laureado com o Prêmio Nobel de 1968 por ter conseguido expressar como poucos a essência da mente japonesa. E foi o último samurai das letras, com talhe nipônico, procurando sempre impor a coisa à palavra. Neste caso, estamos falando de caracteres, de um jogo de imagens que delineiam sua narrativa.

Ao ser vertida para as línguas ocidentais, essa narrativa deve perder um pouco de sua beleza. Mas só um pouco. Quem leu A casa das belas adormecidas, ou Beleza e tristeza, sabe bem que a sutileza na construção do mundo literário não se perde. Talvez seu livro mais japonês seja O mestre de go (Estação Liberdade, 2011, 224 páginas, tradução de Meiko Shimon, R$44,60).

Nesse romance biográfico, o autor narra os últimos dias do grande mestre Shusai de go, jogo tipicamente japonês semelhante à dama e ao xadrez, com mais peças, no entanto. O narrador, jornalista contratado para cobrir o jogo que seria, e foi, a despedida de Shusai, começa descrevendo o mestre morto, para só depois entrar nas cenas da vida.

Logo após terminar a partida de go, que se deixara vencer como símbolo da transferência de seu título à casa Hon’inbo, Shusai passa mal e morre. Essa morte é o fulcro do romance, a condutora dos frames narrativos, que vão desenhando os aspectos psicológicos do indivíduo e da própria cultura japonesa e seu padrão de comportamento.

Abstração e proximidade

A maneira como a história é narrada vai retratando o estado mental do mestre, com as vicissitudes do jogo, da longa jornada, da pressão mental que o go exige e da angústia deliberada a partir daí. A abstração, no confronto com a paisagem e os acontecimentos cotidianos, é outra característica da narrativa.

Mas a morte é a grande musa desse livro. Em uma das cenas, o narrador, chamado de Uragami, descreve o mestre morto pela fotografia. Não uma foto qualquer, mas a que ele mesmo, Uragami, tirou. “Senti-me fascinado pela face morta”, diz. Esse traço representativo traz uma série de implicações estéticas à forma do romance.

É como se o narrador não pudesse encarar a morte de frente, sem um subterfúgio. E isso suscita ao menos um tipo de reflexão no leitor, o do confronto com a realidade das coisas. Quando falamos da realidade, nossa tendência é falar de coisas vivas ou concretas, e a morte, neste caso, seria a negação do real, seria o fim do real para o espírito, pelo menos, porque a morte é o máximo da abstração.

O que se vê na presença do corpo morto é a inércia, nada mais, é a ausência de movimentação, que é o índice de vida e a própria vida. Uragami tira as fotos do morto e as analisa. “As fotos devem ter retratado a realidade”, pondera ele, com seu espírito de jornalista, de homem acostumado a fazer da vida um jogo de narração, na tentativa de capturar algum mistério.

“Era curioso também que eu pudesse analisar com maior nitidez e detalhes as fotos do que o rosto real do morto”, continua o narrador em seu estado de perplexidade. A análise do morto pela fotografia, mesmo tendo a oportunidade de olhá-lo e contemplá-lo pessoalmente (para evitar aqui um trocadilho), é que cria a situação estética da narrativa, e a beleza mórbida no texto de Kawabata.

Ao fotografar o rosto falecido do mestre, Uragami, primeiro congela a imagem daquilo que, a rigor, já está congelado, e depois a descreve. Neste momento, talvez o próprio Kawabata esteja fazendo um elogio à morte e à fotografia. Deixa suspensas algumas questões, como: essa atitude é a de retratar um homem morto ou a morte? Ele retrata a realidade do morto ou a realidade da morte?

Tudo isso vem nas primeiras páginas, o que torna seu significado ainda mais forte no espírito da narrativa. O próprio Kawabata reconheceu O mestre de go como um de seus romances mais eficientes. O livro foi publicado em 1954, elaborado a partir de uma série de reportagens que ele fizera para o jornal Mainichi, quando ainda era chamado de Tokyo Nichi-Nichi.

Poética do suicídio
A literatura de modo geral, ao falar da vida, tem a morte em grande conta. E os escritores japoneses, os mais profundos, têm essa pulsão mais acentuada, costurando com frequência a ideia de beleza com a de morte. Não por acaso, o fonema ‘shi’ serve tanto para ‘morte’ como para ‘poesia’, além do já conhecido termo para o número quatro. Mas Kawabata parece ser mais incisivo nessa questão.

Seus romances rondam a ideia de morte, como a abelha ao mel. Ele mesmo, como sujeito, mais do que como escritor, alimentava secretamente, ou inconscientemente, essa pulsão. Tanto é que em seu discurso para o Prêmio Nobel, intitulado “Japão, o belo e eu”, demonstra sua obsessão pela estética e pelo suicídio, quase como um pedido de socorro.

Nesse discurso, Kawabata mescla a ideia de beleza, do próprio Japão e da morte, mais precisamente, do suicídio, de modo muito intenso. Ele cita uma série de grandes autores japoneses, poetas e prosistas, como o monge e poeta Ryokan e o contista genial Ryunosuke Akutagawa (leia sobre ele aqui).

Os dois citados, como outros também, se suicidaram. Kawabata, em seu discurso, diz categoricamente não admirar nem ter compaixão pelo suicídio. Por que disse isso a uma plateia de notáveis, de escritores, em sua maioria, e leitores atentos, em sua totalidade, se viria, ele mesmo, a se suicidar em 1972, às vésperas de completar 73 anos de idade?

Na passagem de seu texto que condena o suicídio, lembra que Ryokan tinha 73 anos ao se suicidar. E quatro anos depois de fazer essa observação, segue o mesmo caminho. No discurso, ele também cita a nota de suicídio de Akutagawa, da qual retirou o trecho “olhos em sua última extremidade” para intitular um artigo seu. Esse trecho, diz Kawabata, “finca em mim com a maior das forças”.

Por essas e por outras mais, é possível, dentro deste romance, ver o go como um jogo que avalia a vida, em que seus jogadores também podem escolher ficar cara a cara com a morte. É como lançar estratégias, montar peças que vão tomando o território do adversário. Secretamente, no caso do romance de Kawabata, talvez esse adversário fosse a própria morte. E ela o venceu. Ou melhor, ele entregou os pontos.

Trecho

Na minha reportagem, eu havia escrito que era um fio branco da sobrancelha esquerda. No entanto, nas fotos do falecido, os fios da sobrancelha direita estavam compridos. Era impossível que tivessem crescido de repente após sua morte. Teria o mestre sobrancelhas com fios tão longos? Até parecia que houvessem ficado exagerados nas fotos, mas elas devem ter retratado a realidade.

Eu não precisava ter me preocupado tanto com o resultado das fotografias. Minha câmera Contax com lente Sonner 1,5 dispensou minha técnica e cuidados; a lente trabalhou por si e alcançou o resultado de que era capaz. Para uma lente não há distinção entre o vivo, o morto, a pessoa ou o objeto. Não há sentimentalismo nem reverência. De certo, consegui os resultados satisfatórios com a Sonner 1,5 porque não errei muito no seu manuseio. Apesar de serem fotografias de um morto, denotavam riqueza e suavidade, devido, talvez, à característica da lente.

Todavia, o que sensibilizou meu coração foi um sentimento que vinha das fotografias. Talvez houvesse isso no semblante do mestre morto que estava sendo fotografado? Era verdade que havia sentimento no rosto do falecido, e, no entanto, um morto já não possui mais sentimentos.


(Gilberto G. Pereira. Publicado originalmente na Tribuna do Planalto)

5 comentários:

jurisdrops disse...

Se a narrativa que analisa é intrigante, você a deixou ainda mais sedutora. Deu vontade de ir conferir aquele fio branco na sobrancelha esquerda...
Bom 2012!!
Abraços

Gilberto G. Pereira disse...

Obrigado, Maria! Grande abraço, feliz ano novo pra você!

Candanga disse...

Fascinante! Tenho bastante interesse pela literatura japonesa. Você já leu ou ouviu falar de "Musashi" de Eiji Yoshikawa ou "As irmãs Makioka" de Junichiro Tanizaki? Gostaria muito de saber sua opinião sobre esses livros.

Abraços.

Gilberto G. Pereira disse...

Obrigado, Julia! Já ouvi falar, mas ainda não li. Tenho imensa vontade de ler, e vou ler um dia, Tanizaki. Essa vontade nasceu quando li O sol se põe em São Paulo, do ótimo Bernardo Carvalho, que faz um elogio à literatura de Tanizaki, bem como ao Japão. Há também Voragem, que é um título maravilhoso da tradução para o português de outro romance de Tanizaki. Já Yoshikawa, não sei se lerei um dia, embora eu reconheça a importância de seus romances para o entendimento da cultura e da estética do Japão dos shoguns, dos samurais, do Japão pré Meiji.
Um abraço!

Marilia Kubota disse...

Olá, Gilberto,
gostei bastante dessa resenha. Vi que publicou na Tribuna do Planalto. Veja minha mensagem em seu email particular. um abraço,