“No princípio era o verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. (...) E o verbo se fez carne e habitou entre nós.” Embora haja semelhanças, Este que aparece no Evangelho de João não é o deus crivado nas palavras da mais recente publicação do mineiro Whisner Fraga, O livro da carne (7 Letras, 2010, 80 páginas). Aqui, quem reina é um deus brincalhão, embora também saiba dar sua cota de tragédia e drama. É um deus cheio de poesia mundana, atada por tiras de fibra sagrada.
Mas também a Bíblia é um longo poema da criação, alguém pode argumentar com autoridade. E por isso mesmo, ao largo dos versos de Fraga, o sujeito poético, neste caso, o próprio deus, está imbuído de propriedades divinas do Velho Jeová e até de Cristo. No entanto, o espaço lúdico construído na geografia poética de O Livro da Carne oferece uma multiplicidade de sonhos e desejos, um turbilhão de rebeldia e senso de desconstrução, que vão além desses deuses ultrapassados.
Não é raro, neste livro insólito, o leitor se deparar com versos que renegam a velha tradição, ou que retiram dela o substrato de sua verdade, para recriar a vida, para partir praticamente do zero e criar de novo os ossos, os nervos, a carne, e talvez a inteligência. Mas aí já é exigir demais de um deus.
Os poemas são uma espécie de receita, ou ordem, conselho, todos nascem do imperativo, todos giram em torno de verbos no infinito, que é a potência determinante da linguagem verbal. “Empalhar deuses”, diz um verso. “Tolerar as feridas chamuscadas de lodo/ De deuses sem fé/ E sem divindade”, dizem outros versos. “Dois deuses cochilam no assoalho do criado”, observa o sujeito poético em outro poema.
Em “Roteiro para empreender a fuga”, vemos um exemplo de como a ideia de evangelho, ainda esconsa no testamento anterior, está inserida, como quem faz o mesmo caminho messiânico já conhecido, só que em outra dimensão. “Reter o vão/ Chacoalhar guizos de canduras/ Afivelar saudades/ Olhar derradeiro as disposições dos trigos/ recolher as tranças das rosas/ Beirar a ânsia de conter o então/ E depois.”
O desfecho do poema, que pode sugerir Moisés e seu séquito, é cheio de graça mundana, cheio de riso, quase uma pilhéria, mas, ao mesmo tempo, carregado de perplexidade e uma vontadezinha de ficar, de não ir embora: “Levar também a chave/ Para um possível retorno.”
Os títulos de cada poema são índices voltaicos que ajudam o leitor a penetrar o universo da criação desse deus que muitas vezes é puramente infantil, um deus menino. “Receita para dividir o vento”, “Roteiro para edificar o nada”, “Para ninar espíritos”, “Para prolongar infâncias”. É assim que vemos um desfile de propostas nascentes.
O arco e a lira
Uma dessas propostas explora com vigor poético a imagem de um personagem caro ao Deus hebreu e cristão, mas que também não tira o pé do terreno infantil, do imaginário de uma infância altiva e que já sabe planejar. É um poema que vale ser posto em sua totalidade aqui para a devida apreciação:
“Para escolher forquilhas”
Optar pelo galho mais alegre
De goiabeira de fim de cinza
De noite arredia
E sacis xeretas
Enfim se decidir pelo corte:
Improvável cumprir completo a vida
Esticar braços condoídos
Para teste da melhor goma
E divertir dos amigos
A penúltima manhã amarela
Não alvejar canários ou azulões
Nem estrelas
Acolher o travesseiro o estilingue
Ao presságio de outras guerras.
Quem traça esse plano não é um garoto, mas é. É e não é. É um deus menino que parece dar à luz a infância de um guerreiro, cuja primeira arma é o estilingue. Uma funda. Estamos diante de um vir-a-ser de Davi. É a recriação de um guerreiro caro a Jeová, por que ele soube conduzir o povo de Israel, embora tenha sido controverso e tenha decepcionado seu Senhor.
Este Davi, tal como aparece aqui, não está na Bíblia, claro, é fruto do novo deus. Mas seu futuro é vencer outro Golias. Sua tarefa é dormir e sonhar com a batalha e a vitória que virão. O que deve ser enxergado nesse poema, como construção poética, é essa imagem buscada, ou rebuscada, entre os objetos de infância do poeta, mas não só isso, entre elementos da cultura brasileira, do imaginário da cultura popular tupiniquim.
É bom lembrar que a literatura de Fraga faz dos mitos uma ferramenta afiada para esculpir os signos atuais. Nestes poemas de O livro da carne, o que vemos é uma extensão temática de sua prosa. Muitos versos remetem a personagens e situações já trabalhadas em livros anteriores, como Helena, que está em Abismo poente.
Sua marca segue a tradição poética. Não se alcança o significado polissêmico proposto sem a perseguição do ritmo e a disposição das palavras, suas formas dançantes e troca de sílabas ressoantes entre uma palavra e outra. Esta poesia, cheia de brincadeiras, esta experimentação poética, como um deus que brinca de criar, tem muito daquilo que se chama de sentido logopeico, em que se fincam significados substanciais.
Abismo
A denominação conceitual trabalhada por Ezra Pound nos ajuda, e muito, a fixar significados aqui. Em O livro da carne, além dos recursos vocabulares, há também a riqueza da melopeia (musicalidade) e, principalmente, a exploração fosfórica da fanopeia (condensação poética que forja o significado por meio da sugestão de imagens), porque é por ela que encontramos as figuras mais fulminantes deste livro.
Como em “Receita para tolerar a miséria do voo”:
Contra o viço e o alvoroço resedá
A transição do peito engatilhado
Atenuar a voracidade do húmus
O hostil e inquieto rumor de precariedades
O disparo vermelho
O tambor com seus desgostos giratórios
E o projétil da vez
O pulso mortificado pelo curso vacilante
Que já nem denuncia uma pista da vida
Como urubus camicases.
Depois de várias receitas sobre como criar um novo mundo de gente mais humana, resgatando um projeto divino que falhou, que malogrou entre todos os deuses do passado, o sujeito poético aparece com uma receita de acabamento final, uma sugestão de suicídio. “Receita para tolerar a miséria do voo” é, por isso mesmo, um dos poemas mais interessantes do livro, porque chega como uma espécie de abertura para o abismo da existência, porque emerge como chave para fechar o que havia sido aberto como possibilidade.
Em todo O livro da carne, as temáticas rondam os poemas como uma engrenagem de moinho. No entanto, o mais interessante é que muitas vezes as palavras dançam no interior do poema, como acontece em “Receita para tolerar a miséria do voo”. O desenho do suicídio vai surgindo justamente nessa dança fúnebre dos vocábulos.
Além do metralhar onomatopaico de ‘contra, alvoroço, transição’, e inversões silábicas entre ‘atenuar’ e ‘voracidade’, o leitor segue o drama macabro com os termos “peito engatilhado”, “rumor de precariedades” (que é a própria vida), “disparo vermelho”, “tambor” (do revólver), “projétil” e a execução final, em que o pulso fenece e já não há mais vida.
Os últimos versos desenham bem a beleza mortífera do poema: depois do tiro, o pulso, aquele que poderia conferir a vida, está como urubus camicases. O termo “urubus camicases” faz o leitor levantar os olhos e reparar o título. Ele vê ali “miséria do voo”, e se baixar vertiginosamente as vistas completará “miséria do voo da vida” e sentirá o baque da queda.
Os urubus voam alto, e só descem para saborear a morte dos outros, para comer carcaças, carniças, mas ainda assim, dão pista de vida, pelo menos a deles próprios, ou, em última hipótese, indicam que houve ali uma vida. Mas urubus camicases são urubus suicidas, eles descem do céu, em voos fulminantes, para, hipoteticamente, se racharem no chão. Não há mais nada.
Sopro de verbo
Em O livro da carne, possibilidades são o que não faltam aos poemas, que, junto ao lirismo, oferecem versos de violência e ternura, como quem quer abarcar a vida toda. Tudo é uma tentativa. A começar pela proposta de fazer versos com verbos no infinitivo para quase todas as peças. Entre uma página e outra, há ideias micros e projetos macros. Neste sentido, é um livro repleno de mundos e sonhos, em que a natureza humana se aproxima de novo da Natureza. E a magia, a artimanha, está presente em cada sopro de verbo.
Como autor, Fraga carrega uma luz literária peculiar. Escreve com absoluta consciência. E isso é bom. Para quem gosta de referências, há aqui algo que lembra Manoel de Barros. Mas parece que suas fontes estão num passado mais longínquo, como a Bíblia, a mitologia, as verdades religiosas, desbancadas em cada uma das receitas poéticas.
Estas receitas riem da febre de livros de autoajuda que inundaram o mercado editorial nos últimos anos. Mas também, se seguirmos o ritmo dos versos, sentiremos uma sensação de que estamos orando, fazendo uma prece. São preces poéticas, que acabam contrariando o sentido da vida na religião. É um novo religare. Coisa que se faz muito na literatura. Aliás, no fim das contas, a literatura é isso, uma espécie de religião ao contrário, cujos deuses são humanos demais, próximos demais de cada leitor.
Acompanhando os versos, o leitor pode chegar a uma conclusão. Talvez essas regras, essas recomendações, ou ordens presentes em O livro da carne, sejam para ele mesmo, para o próprio deus propositor da nova existência. Talvez essa escritura seja como bilhetes na porta da geladeira que as pessoas solteiras e que moram sozinhas deixam, na desculpa de ter pouca memória, mas que, no fundo, é para travar um diálogo consigo mesmas, diálogos para espantar a solidão. Todos os deuses estão sós.
Serviço
Título: O livro da carne
Autora: Whisner Fraga
Editora: 7 Letras, 2010, 80 páginas
Gênero: Poesia
Preço: R$ 28,00