quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

O fechamento da Cosac Naify

                                   Crédito: Site da Cosac Naify
Detalhe de uma sala da editora, que fica na Vila Buarque

OBS: Este texto foi publicado em 2015, pela ocasião do fechamento da editora Cosac Naify. Ao atualizá-lo, ele apareceu com nova data, sem registrar a data da publicação original.

Dá uma dor no coração ver a Cosac Naify fechando as portas assim, dando adeus ao mercado, só porque o dono, parece, cansou de brincar de marchand dos livros. Parece ter sido isso, é o que dizem, com a facilidade tal como se abrem e fecham os olhos. Mas vi Charles Cosac na televisão se defendendo das acusações de que ele não tem o direito de fechar a editora desse modo. E ele se defende bem. Acho que fico com ele, apesar dos pesares. O dinheiro é dele, a vida é dele, o negócio é dele.

Ao longo desses quase vinte anos de produção, Charles Cosac investiu cerca de US$ 70 milhões na editora, que mudou a cara do mercado editorial brasileiro. Vi esse valor na imprensa, e não fiquei sabendo se o montante é o total de investimentos, junto com o bilionário Michael Naify, que mora em Nova York, e era sócio de Charles, ou se era só a parte deste, conhecido pela imprensa como o milionário excêntrico de família sírio-libanesa que estudou artes em São Petersburgo, na Rússia, que também é colecionador e que decidiu aplicar sua grana em um projeto de editora por amor aos livros. Na imprensa também (Carta Capital) diz-se que a editora tem uma dívida de R$ 70 milhões.

Na Cosac Naify, tudo era diferente, das capas, às fonts empregadas, passando pela escolha dos títulos que seriam publicados, o cuidado com o papel, com as ilustrações, com a tradução, com a revisão. Começou em 1997 (sua breve história é contada no site da própria editora), publicando livros de arte, e terminou com um catálogo fabuloso e um grupo de autores que se destacavam, vencendo prêmios, como o São Paulo de Literatura, em que Estêvão Azevedo venceu com Tempo de espalhar pedras como o melhor livro do ano, cujo resultado foi divulgado no mesmo dia em que a editora anunciava seu fechamento, 30 de novembro.

Existem umas pendengas trabalhistas e sociais das quais Charles Cosac parece não querer fugir. Falou mui serenamente na televisão sobre sua decisão. Em entrevista ao programa Globo News Literatura, do canal Globo News, disse que não se trata de falência, nem de ser uma vítima direta da crise que assola o país.

Disse que vai fechar porque o projeto inicial está sofrendo ameaça de alterações pelas circunstâncias do mercado, e que não quer que isso aconteça. O dólar está alto, e por isso não pode mais imprimir na China na qualidade que o projeto editorial requer. As gráficas no Brasil encareceram demais. As livrarias só aceitam vender por consignação, não compram mais livros, e só pagam a parte da editora 90 dias após as vendas dos livros nas lojas.

Mas Lucia Riff, a agente literária mais influente do mercado editorial brasileiro, que já foi sócia inclusive da lendária Carmen Balcells (que agenciou nomes como García Márquez e Vargas Llosa), não se convenceu das explicações de Charles Cosac. Ficou mais que decepcionada, ficou brava e foi dura. No mesmo programa Globo News Literatura, disse que Charles Cosac não tem o direito de fazer isso.

Mesmo que cumpra com seus compromissos trabalhistas com os cerca de 80 funcionários da casa, diz Riff, ainda há os contratos para  publicação de novos títulos. Neste caso, o empresário vai deixar os autores na mão. É claro que é a opinião dela. Não se sabe que articulação no mercado Charles Cosac vai fazer para não deixar seus autores com publicações previstas na mão, mas é uma possibilidade e uma dura realidade que está sempre prevista de ocorrer no Brasil.

O fato é que, em um momento de fragilidade pela qual o país passa com tantas desgraças mais avassaladoras do que o fechamento de uma editora, os leitores e amantes de livros de modo geral estão tristes com esta notícia. É como se alguém tivesse sentindo uma dor no corpo terrível, em função de um acidente ou uma doença, e aí, o tempo fecha, outrem diz “vai chover”, e este alguém desaba no choro.

Não há uma data específica para o desaparecimento dos livros nas livrarias. Mas o trabalho de edição, segundo o empresário, já está encerrado, com a exceção do de alguns títulos em finalização. No site da editora, há um anúncio de desconto de 20% sobre qualquer título.

Tenho vários livros com o selo Cosac Naify. Fico triste também com esta notícia. Mas como diz um ditado em espanhol, talvez argentino, que aprendi com uma certa escritora brasileira do Sul: “Llovió, pasó!”.

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terça-feira, 16 de janeiro de 2024

JOÃO GUIMARÃES ROSA E A EXPANSÃO DO ESTÉTICO

Ler prosa sem acompanhar o fio da história é entediante para qualquer leitor, até mesmo para aqueles que procuram no texto a qualidade estética, o cerne do trabalho literário, que vai além do enredo em si.

Essa relação leitor/texto, no entanto, é diferente na leitura da poesia, porque entra em jogo a questão da sonoridade, do ritmo, do encantamento dos versos, além do teor central, que é a condensação, a alta voltagem concentrada nas linhas poéticas.

Mas em Guimarães Rosa, as convenções de leitura em prosa vão por terra. Em seus contos e romances, o texto é um mar de poesia. São águas poéticas em ondas revestidas de prosa. Tudo está ali: a condensação, o jogo de palavras, a musicalidade finamente trabalhada, o máximo no mínimo e a expansão do estético.

Basta a leitura de um conto de Primeiras Estórias, de um trecho de Grande Sertão: Veredas, ou de qualquer outro livro de Rosa, para o leitor se deixar mergulhar na poeticidade do texto e surgir de lá como quem traz ricos tesouros de linguagem, pronto para sentir-pensar.

sábado, 24 de dezembro de 2022

A noite de Elie Wiesel

 

As tropas americanas, da 80ª Divisão de Infantaria, entraram no Campo de Buchenwald, em 16 de abril de 1945, para resgatar os prisioneiros, e os fotografaram. Elie Wiesel está na segunda fileira, de baixo pra cima, o sétimo a partir da esquerda. Fonte: Digital Public Library of America


O contexto era o do nazismo, da perseguição aos judeus, da violência brutal, dos assassinatos misturados em ódio e diversão. O que um menino podia fazer? Como você reagiria?

 

O trecho abaixo é parte da introdução de Night (1958), livro de memórias de Elie Wiesel (1928-2016), Prêmio Nobel da Paz de 1986, sobrevivente dos campos de concentração nazistas. (A tradução do trecho é minha).

 

 

“Lembro-me daquela noite, foi a mais hedionda de minha vida:

 

‘…Eliezer, venha aqui, quero te dizer uma coisa... Só você... Venha, não me deixe só... Eliezer…’ [dizia, em ídiche].

 

Ouvia sua voz, captava o sentido de suas palavras e a trágica dimensão do momento, mas fiquei quieto.

 

Era seu último pedido, desejando que eu estivesse do seu lado em sua agonia, no momento que sua alma era arrancada de seu corpo dilacerado – e ainda assim não atendi seu desejo.

 

Eu estava com medo.

 

Com medo das porradas.

 

Foi por isso que fiquei mudo para seus gritos.

 

Em vez de sacrificar minha vida miserável e correr para junto dele, segurando sua mão, confortando-o, mostrando que ele não fora abandonado, que eu estava com ele, que eu sentia sua dor, fiquei quieto e mudo, pedindo a Deus que fizesse meu pai parar de chamar meu nome, que o fizesse parar de gritar. De tanto medo que eu tinha de me submeter à ira da SS.

 

Meu pai, de fato, não estava mais consciente. Apesar disso, sua voz assustadoramente suplicante continuava rompendo o silêncio e clamando por mim, por ninguém mais além de mim. 

 

‘E então?’ O soldado da SS tinha irrompido em fúria, e acertava meu pai na cabeça: ‘Fique quieto, velho! Fique quieto!’

 

Meu pai não sentia mais o impacto das bastonadas. Eu sim. E apesar disso, eu não reagia. Deixei a SS espancar meu pai. Eu o deixei sozinho, nas garras da morte. Pior: eu estava zangado com ele por fazer barulho, por ter gritado, por provocar a ira da SS.

 

‘Eliezer! Eliezer! Venha, não me deixe só...’

 

Sua voz tinha me alcançado de tão longe e de tão perto. Mas não me mexi.

 

Nunca vou me perdoar por isso. 

 

E também jamais perdoarei o mundo por ter-me empurrado contra o muro, por ter feito de mim um estranho, por ter despertado em mim os instintos mais baixos, mais primitivos.

 

Sua última palavra foi meu nome. Uma súplica. E não fui capaz de atendê-lo.”


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quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Freud deveria voltar

 


Em 2020, a Netflix lançou uma minissérie intitulada Freud. Foi uma das melhores coisas de streaming daquele ano que viria a ser assolado pela pandemia. Fiquei esperando uma segunda temporada, mas não apareceu até agora. Enquanto espero, escrevo sobre o que vi.

 

É sintomático que a primeira cena da série é de charlatanismo. Não deixa de ser um chiste interessante (eu morri de rir). Aliás, o primeiro episódio intitulado Histeria é pródigo em chistes, ao mesmo tempo que a trama vai mergulhando no lado sombrio do humano. Será que o roteirista chefe dessa bagaça faz análise? Claro que sim.

 

Freud é um thriller psíquico em que a investigação dos atos violentos, de assassinatos, estupros e tais, no meio de um problema político envolvendo os laços de poder do império austro-húngaro, se intercala à investigação dos negócios da alma e a busca de um lugar ao sol pelo jovem psiquiatra. 

 

Num ambiente de mães corajosas e pais repressores, Sigmund Freud (Robert Finster), com dificuldade para pagar o aluguel, tomando chá de cocaína o tempo inteiro, tenta se estabelecer como psiquiatra, buscando um diferencial na careira como médico de comportamento.

 

Ele se apresenta para a anfitriã de uma festa, a condessa Sophia (bela e perigosíssima vilã) como um judeu médico visto pelos seus pares como desajustado, louco e charlatão. 

 

Tem um roteiro deliciosamente atrevido. Mexe e remexe com as teorias do dr. Freud. A trama vai sendo costurada dialogicamente, como num conto de Dostoiévski, fazendo uso também da estética de Arthur Schnitzler (que não por acaso aparece na trama), autor de Breve romance de sonho, em que Stanley Kubrick se baseou para fazer o filme De olhos bem fechados.

 

Toda a atmosfera da série, a fotografia, o cenário, a tonalidade dos mistérios, tudo, advém da estética de Schnitzler, cuja obra literária tem muito a ver com o universo da psicanálise. 

 

Na vida real, Freud também era amigo de Schnitzler. Numa carta, o pai da psicanálise chegou a dizer que ambos tratavam do mesmo tema, com propósitos diferentes. Na série, o roteirista achou um jeito de unir as duas mentes. E ficou fantástico. 

 

Os tormentos (como o do inspetor Kiss, que obedecera a ordem de seu superior - Georg von Lichtenberg – de matar inocentes na guerra austro-prussiana), os desejos reprimidos, a homossexualidade clandestina (Lichtenberg é amante do jovem tenente Riedl), as taras, as pulsões se manifestando nos corpos, sonhos e pesadelos povoam as noites de Viena.

 

Vemos a atmosfera sombria do que viria a ocorrer no século vindouro. Quase todos os homens têm cicatrizes no rosto, resultantes de duelos de esgrimas, mas que servem como metáfora dos traumas. 

 

Em uma das cenas, Joseph Breuer, orientador de Freud (na série e na vida real), diz ao aluno: “Nos mapas antigos quando não se conheciam os limites do mundo, desenhavam-se quimeras assustadoras e escreviam ‘Hic sunt dracones’, ‘aqui há dragões.’ Um perigo do desconhecido que não compreendemos. Mantenha distância.”

 

“E se eu quiser ser um cartógrafo? Um pioneiro?”, pergunta Freud.

 

Numa apresentação para doutores, ele expõe seu pensamento e demonstra o quanto era brilhante para criar metáforas, para puxar do abismo insondável de seu objeto de estudo as imagens mais significativas, embora ali, naquele momento, suas palavras não correspondessem ao que tinha para oferecer como prática.

 

“A histeria é uma emanação daquilo que chamo inconsciente. Eu sou uma casa. Está escuro dentro de mim. Minha consciência é uma luz solitária, uma vela ao vento, que cintila às vezes aqui, às vezes acolá. Todo o resto está nas sombras. Todo o resto reside no inconsciente. Mas as outras salas estão lá. Nichos, corredores, escadarias, portas, o tempo todo. Tudo que vive dentro de nós, tudo que perambula dentro de nós está lá, operando e vivendo dentro da casa que somos. Instinto, desejos, tabus, pensamentos proibidos, desejos proibidos, memórias que não queremos que as encontrem. Elas dançam à nossa volta na escuridão, nos atormentam e nos atiçam, interferem, assombram e sussurram. Elas nos assustam, nos adoecem, nos deixam histéricos.” 

 

Se ignorarmos o fator histeria, que deixou de ser importante nas linhas de investigação psicanalítica, a imensa casa como metáfora do inconsciente ainda vale.

 

Freud, como série de ficção, é um grande achado da Netflix. Dizem por aí que psicanalistas não curtiram muito a produção. Danem-se os psicanalistas (sintoma)! Eu, que não sou psicanalista nem porra nenhuma, fiquei fissurado nela. 

 

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quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

A arte de imitar folhas (poema)


Eu também fico assustado

Eu também tenho medo do mundo

Às vezes

Tenho medo do espaço infinito

Às vezes

Tenho medo dos astros

Dos pastos

Da gravidade

Do vento

Do ar

Das areias

Das águas

Do tempo

Tenho medo das coisas invisíveis 

E das coisas que só eu vejo e não posso descrevê-las

Porque eu seria louco

Tenho medo da loucura 

Da carne e da solidão

Tenho medo quando a sombra da terra engole a lua e o sol

E quando o céu soturno produz cores no escuro

Cores que não sei distinguir das que matizam meus olhos

Como se viessem de dentro de mim

Como se fossem luzes galácticas que iluminariam o mundo

Tenho medo de ser o sol de alguém

E se eu apagar?

Olhe

Assustar-se por ter medo é normal

Também me assusto

Às vezes

O primeiro susto é quando a gente nasce

A alma dá um pulo dentro da gente e a gente passa a existir

A gente nasce como quem brota

Toda mãe é uma primavera

Todo pai é um tenebroso outono de chuvas ácidas

Imagine

Um broto saindo da terra na selva, entre pés e bichos

Existindo

Imagine

A selva que é viver

Para além do mato

Na fauna humana, inventora de mundos

Na fauna humana, inventora de choques

Na fauna humana, inventora de toques

E lembranças dentro de lembranças

Dentro de sonhos

E restos de sensações que triscam a alma

E ela pula

E sabemos

Lembramos

Da existência

Tememos, e trememos, e bebemos, e dizemos só a verdade

A verdade é a única coisa que existe de verdade

A verdade foi criada por nós que criamos a nós mesmos

Antes de criar o mundo sobre o mundo já criado

Criamos a nós mesmos

Antes de criar o mundo sobre o mundo já criado

Cheio de bichos e pés e asas e nadadeiras e raízes sugadoras de seiva

Criamos a nós mesmos

E viscosidade e lama

E chamas e pingos

Criamos a nós mesmos

De líquidos que nos dissolvem e nos evaporam

E desaparecemos

Sem o medo, porque o medo fica

E desaparecemos

Sem o medo

E o susto é o prenúncio de quem vai nascer (como grilos)

E desaparecemos

Sem o medo, com susto

E desaparecemos

Sem o medo, porque o medo fica

A preparação para o medo

Às vezes

Porque há também a força que nos impulsiona para o destemor

Porque há também a força que governa o medo

Às vezes

Enquanto flutuamos como flocos e féculas

Enquanto flutuamos como seres helicoidais

Seres que se entrepenetram e se eternizam

Enquanto flutuamos como seres sempre com medo e assustados

Como se um sopro no ouvido

Como se um sussurro

Um urro baixinho, infrassônico

Como se a existência toda pelos espaços vazios

Entre os astros

Dissessem

Num susto

Eu também sou

Somos

Cromo

E quando me assusto, eu mudo de cor

Mudo, mudo

Mudo de cor

(Gilberto G. Pereira)

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sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Lourival Belém Jr. disponibiliza seus filmes no YouTube

Lourival Belém Jr. é um cineasta documentarista de curta metragem daqui de Goiânia, que sempre esteve antenado com a renovação da linguagem do cinema. Geograficamente distante do main stream, ele nunca se afastou das inovações narrativas. 

Seu filme mais recente, O Turista no Espelho (2018, 26 min., colorido), é um exemplo disso. Sua obra vem sendo baixada no canal que leva seu nome no YouTube. Quem quiser apreciar, já estão lá filmes como Concerto da Cidade (Prêmio Fica 2005), Recordações de Um Presídio de Meninos (2009) e o belíssimo Quinta Essência (1982/2014), o mais poético de todos (em parceria com Ronaldo Araújo). 


Na próxima quinta-feira, 10 de dezembro, será a vez de O Turista no Espelho ser lançado no canal, filme experimental com uma onda dialógica que vai tecendo junto literatura, releitura cinematográfica, jornalismo, pajelança como protesto, turismo, discurso político, denúncia, num processo que se identifica com a estética relacional, em que ele vai juntando outras narrativas à sua própria, criando um universo crítico, novo e rico. 

 

É assim que ele dialoga com a literatura de Milton Hatoum, com o cinema de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, Iracema – Uma Transa Amazônica, de 1975, com linguagens publicitárias que, recriadas no escopo do cinema de Belém, denunciam com sarcasmo a voracidade do consumismo e das marcas registradas.

 

Há cenas que se estendem às cidades grandes como Rio de Janeiro, Goiânia e Brasília, para mostrar o fruto da desigualdade e da expulsão das pessoas da zona rural para as periferias urbanas. E a luta. O Turista é sobretudo a revelação das lutas, de suas preparações, como instrumento de sobrevivência, mais do que de conquistas. 

Como todos os outros filmes de Belém Jr, a estética é sinônimo de interferência política, que é a alma das artes contemporâneas, sobretudo as plásticas, a fotografia e o cinema documentário, além de um certo nicho da literatura e do cinema de ficção.

Estética e política


Lourival Belém Jr., cineasta goianiense

A linguagem experimental de O Turista oferece as perspectivas documentaristas de seu tempo, e o roteiro perfaz o mergulho do cineasta e sua mulher nas ramagens da sociedade profunda da Amazônia, comos os índios, os ribeirinhos e os sem-terra (marginalizados pelo poder e pela elite econômica, mas de fato fixados no coração da floresta). 

 

Eles viajam para esses lugares com uma câmera amadora na mão e mil sentimentos na cabeça (de indignação, de admiração, de dó, de impotência, de espanto, de integração, de reconhecimento, de distanciamento). 

Como turista, o cineasta não é mais aprendiz, como o fora Mário de Andrade, que também viajou pelos Norte e Nordeste brasileiros, registrando narrativas e informações sobre o Brasil profundo. Como turista, Belém vê a si mesmo nas pessoas que ele filma, embora sinta-se separado delas pela linguagem e pelos costumes que foram sendo alijados do Brasil oficial ao longo dos séculos.


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quinta-feira, 4 de junho de 2020

Georges Bataille sobre museu

                                                                                                                                                          Foto: Gilberto G. Pereira
Três músicos, óleo sobre tela, de Pablo Picasso, (1921): acervo da Fundação Mrs. Simon Guggenheim, em exposição no Museu de Arte Moderna, NY, em 2016.

De acordo com a Grande Enciclopédia, o primeiro museu no sentido moderno da palavra (significando o primeiro acervo público) foi fundado na França pela Convenção de 27 de Julho de 1793. A origem do museu moderno está, portanto, ligada à invenção da guilhotina.

O museu é como os pulmões de uma grande cidade. Todo domingo, o público mergulha como sangue dentro do museu e emerge purificado e fresco. As pinturas não são outra coisa senão superfícies mortas. 

É dentro do público que o jogo de fluxo de luzes e radiação, tecnicamente narrado pelos críticos autorizados, é produzido. É interessante observar o fluxo de visitantes, visivelmente guiado pelo desejo, se assemelhar às visões celestiais que arrebatam aos olhos.

O museu é o espelho colossal no qual o homem, finalmente se contemplando de todos os lados e se encontrando literalmente num objeto maravilhoso, abandona a si mesmo ao êxtase expresso na imprensa literária.

Georges Bataille, “Museum,” Outubro, no. 36 (1986), p. 25; tradução para o inglês de Annette Michelson; publicado primeiramente no Documents 2, no. 5 (1930), p. 300. (Tradução para o português: GGP). 

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quarta-feira, 3 de junho de 2020

Inglês renovado: “Memórias póstumas de Brás Cubas” ganha nova tradução nos EUA




O escritor americano Dave Eggers, aquele de livros como Uma comovente obra de espantoso talento e O círculo (que virou filme com a hermiônica Emma Watson), escreveu o prefácio da nova tradução de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês (“The Posthumous Memoirs of Brás Cubas”, por Flora Thomson-DeVeaux), cuja edição saiu agora em junho nos EUA, pela Penguin Classics.

O prefácio foi publicado na revista The New Yorker desta semana. Se há algo que Eggers não tem é medo de adjetivos. São muitos jogados sobre o romance do Bruxo do Cosme Velho: sagaz, um dos mais brilhantes, mais divertidos, mais vivos atemporais, cintilante, absoluto, presente glorioso, muito engraçado, inimitável, mordaz, melancólico, autodilacerante e romântico. Isso só nos primeiros parágrafos.

Trata-se de um texto brilhante, entusiasmado, laudatário até, mas muito verdadeiro, que chama o leitor anglo-saxônio para a arena das leituras novamente de um autor sem igual, conforme ele diz. O título do artigo é Redescobrindo um dos livros mais brilhantes já escritos (leia o texto no original). 

Eggers começa falando assim: 

“O talento sagaz pula séculos e hemisférios. Não fica empoeirado, e, quando acerta a mão, não envelhece. “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Joaquim Maria Machado de Assis, é um desses casos. Esquecido por muitos, é um dos livros mais brilhantes, mais divertidos e, por isso mesmo, um dos mais vivos e atemporais já escritos.

É uma história de amor – muitas histórias de amor, na verdade – e é uma comédia de classes e de costumes, e de ego, e é uma reflexão sobre um país e um tempo, e um olhar pleno sobre a mortalidade, e ainda por cima é uma exploração íntima e arrebatadora da arte de narrar.

É uma cintilante obra-prima, e uma alegria absoluta como leitura, mas que, por alguma razão obscura, quase nenhum falante de inglês no século 21 a leu (eu mesmo só vim ler pela primeira vez recentemente, em 2019).

Mas ele sobrevive, e deve ser lido, pela música de sua prosa e, mais do que qualquer coisa, por seu gracejo formal. A nova tradução, feita por Flora Thomson-DeVeaux, é um presente glorioso para o mundo, porque ela cintila, porque ela canta, porque é muito engraçada e procura captar o estilo inimitável de Machado, a um só tempo mordaz e melancólico, autodilacerante e romântico.”

Breves e lúcidos capítulos

Em seguida, contextualiza a trama, tece comentários sobre o personagem, sobre os capítulos e a sagacidade do narrador.


“Seu narrador, Brás Cubas, está morto. Ele conta a história de sua vida do túmulo, e, talvez porque não tenha nada a perder – estando morto e tudo -, narra a história exatamente do jeito que quer, a convenção que se exploda. O romance se desdobra em breves e lúcidos capítulos, elucidado além disso com infindáveis referências do narrador e dúvidas de si mesmo.

‘Começo a arrepender-me deste livro’, escreve Brás Cubas em um capítulo chamado O senão do livro (‘The Flaw in the Book’). ‘Não que ele me canse”, continua. “Eu não tenho que fazer; e, realmente, expelir alguns magros capítulos para esse mundo sempre é tarefa que distrai um pouco da eternidade.’

A história, no seu fulcro, é quase convencional, um triângulo amoroso aristocrático do século 19. Brás Cubas flutua pelo meio das classes endinheiradas do Rio de Janeiro, mas não tem vontade de se casar (obsessão da irmã), nem tem ambição de fazer carreira no funcionalismo público (desejo do pai).

Ele deixa passar a chance de se casar com a bela Virgília e assim ser catapultado para a vida pública com a influência do poderoso pai dela. Em vez disso, um honrado homem chamado Lobo Neves é que ganha a mão de Virgília e o apadrinhamento do sogro. E só então Brás Cubas começa a se interessar por ela. 

Eles iniciam um caso e tentam – sem dificuldade – manter a relação às escondidas do assaz despreocupado marido. Logo, todo mundo na sociedade carioca parece saber, e o perigo da descoberta só faz os amantes se aproximarem ainda mais.

Enquanto isso (do túmulo), Brás Cubas contempla o significado da vida, auxiliado pelo amigo Quincas Borba, que tenta popularizar um sistema filosófico chamado Humanitismo, destinado, escreve Machado, ‘a arruinar todos os demais sistemas.’ No centro da doutrina está a crença na retidão de todo ser humano. 

Brás Cubas admite que a doutrina é panglossiana, mas encontra um certo conforto na noção radical de que os humanos deveriam ser permitidos a fazer qualquer coisa que eles naturalmente fazem, de que devemos fazer qualquer coisa que queremos fazer – com uma reverência especial ao ato de fazer mais humanos. 

‘O amor, por exemplo’, escreve, ‘é um sacerdócio, a reprodução um ritual. Como a vida é o maior benefício do universo... segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora suprema da missa. Porquanto, verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.’

Machado meneia entre a história de amor do livro e seus interlúdios metafísicos com facilidade, em parte porque, embora o livro seja sobre coisas sérias – amor, a vida em si, a finalidade da morte –, nunca se leva a sério.

No capítulo IV, A ideia fixa, Machado inicia uma grande analogia comparando menos esforços humanos para aqueles que ecoam através das eras. ‘Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou. Verdade é que se fez graúda e castelã... Não, a comparação não presta.’

Os títulos dos capítulos em si já são desconcertantes. Um capítulo, habilmente chamado de Triste, mas curto, é seguido de outro chamado Curto, mas alegre, o que ambos são. Há um capítulo dedicado às botas, um outro às pernas do autor, enquanto outro é chamado de Que não é sério.

O capítulo CXXX é intitulado Para intercalar no capítulo CXXIX, e no seu final, o autor pede que o leitor o coloque entre a primeira e a segunda frase do capítulo anterior. Há também uma longa alucinação envolvendo hipopótamos.

De alguma forma, nenhuma das gags e diversão intertextual faz diminuir a força da história. O romance entre Brás Cubas e Virgília é convincente e selvagemente lírico. O sentimento que temos pelo ignorante Lobo Neves é verdadeiro, e o crime cometido pelo narrador e Virgília contra ele nunca é punido – nem na vida, nem na morte.

E esta é a chave. Este é um livro ateísta, em que não há julgamento que não seja o da consciência, e no qual o ofensor mente sozinho, num caixão permeado de vermes, recontando sua vida e seus fracassos sem qualquer consequência pesada. É engraçado também. É completamente original e diferente de todos os livros que vieram depois dele e que possam, conscientemente ou não, ter se influenciado por ele.”

Experimentar

E aí, Eggers segue seu texto avaliando o quadro geral dos clássicos, mostrando o quanto Machado está inserido nesse bojo de gênios, o quanto ele não está só, mas apontando sempre para o passado. Para frente de Machado, não há nada igual, como ele já disse. 

O que temos nos dias de hoje são romances de autores que se levam a sério demais, diz Eggers, e não conseguem experimentar nem na forma, nem no conteúdo. Na sua avaliação, na contemporaneidade, só temos autores que não experimentam a linguagem. 

Segundo o autor, ele participou de um concurso literário alguns anos atrás e havia mais de 400 romances para ler. Desses 400, algumas dúzias eram engraçados, mas apenas alguns eram divertidos de ler, e desses, apenas dois, exatamente dois, “eram, de modo significante, experimentais.”

“Se isso não for a indicação de um generalizado medo do novo, uma hesitação em aproveitar oportunidades, e uma assustadora e mal-orientada autosseriedade sobre o romance, não sei bem o que é”, diz ele.

“Não se trata de dizer que todos os romances, ou a maioria deles, deveriam ser, ou podiam ser, tão divertidos quanto este. Mas não ia doer ter mais alguns que permitissem os humanos – personagens, leitores, autores também – rirem. Negar as piadas na vida, e a piada da vida em si, é muito triste”, finaliza.

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Dave Eggers é autor de livros como O que um cidadão pode fazer? e O monge de Mokha (em tradução livre). Ele é o co-fundador do Congresso Internacional das Vozes da Juventude.

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quinta-feira, 28 de maio de 2020

Breve história da humilhação: fragmento do livro México, de Erico Verissimo


Em seu livro de viagem México (1957), Erico Verissimo (1905-1975) conta a história (à qual ele dá o título irônico de O Herói) de um coronel do exército legalista na Revolução de 1910, que foi pego pelos revolucionários comandados por Emiliano Zapata, julgado sumariamente e condenado à morte por fuzilamento.

E aí, o que Verissimo narra é digno de nota justamente por mostrar como nenhuma bravura consegue superar a capacidade humana de criar mecanismos de humilhação e maldade. Às vezes, a operação é simples, como esta, mas eficaz. Verissimo ouviu o relato do grande pintor mexicano David Alfaro Siqueiros (1896-1974).

Ao ser feito prisioneiro, “o coronel não se defendeu, não pediu clemência, não pronunciou uma palavra durante o julgamento. Recebeu a sentença sem mover sequer um músculo da máscula face. Saiu da sala pisando firme, a cabeça erguida, o porte ereto. Na prisão, onde aguardava com outros condenados a execução da sentença de morte, recusou-se a receber a esposa, que, tendo sido informada do acontecido, viera desesperada e em pranto pedir aos revolucionários que poupassem a vida do marido. ‘Retire-se!’, gritava este sem a mirar. ‘Não peço, nem quero clemência. Volte para casa!’

Numa dada madrugada, os guardas levaram os priosoneiros para o local de fuzilamento. Na porta da prisão, estavam as mães, as mulheres e os filhos dos condenados, inclusive a mulher do coronel. Quando eles passaram, o clamor começou e os acompanhou até o local do fuzilamento. 

“A esposa do coronel caminhava ao lado do marido, pendurava-se-lhe nos braços, no pescoço, beijava-lhes as mãos, que ele tinha amarradas às costas, mas o homem continuava a caminhar imperturbável, como se ela não existisse.”

A caminhada, no entanto, era longa, e a postura do coronel foi mudando aos poucos no percurso. “O homem agora não caminhava teso; a cabeça lhe caía sobre o peito e seus passos eram menos firmes. Ele já olhava para a esposa com um misto de ternura e pena.”

Ali, ele já estava quebrado. Talvez haja valentões que suportem mais, ao saberem que vão morrer. Mas ali o bravo coronel já estava partido ao meio. “Sua expressão transformou-se em terror quando, no alto do cerro, ele viu o primeiro companheiro cair diante do muro, crivado de balas. Haviam-no deixado para o fim, e ele tinha de olhar ou pelo menos ouvir o fuzilamento dos outros, em meio aos gritos de desespero das mulheres.”

“Clareava a barra do horizonte. Galos amiudavam. Soprava um ventinho frio. Ouviu-se nova descarga. O fuzilado tombou. Seu sangue respingou o muro. O tenente aproximou-se do corpo, tirou o revólver e deu o tiro de misericórdia na cabeça do agonizante.”

“Nesse momento, o orgulhoso coronel soltou um urro e atirou-se no chão, chorando como uma criança, e começou a pedir em altos brados que não o matassem. Beijou, babujou a mão do comandante do pelotão, enlaçou-lhe as pernas como uma fêmea desprezada e louca de paixão, e acabou rolando na poeira, o corpo dobrado, os joelhos contra o peito, a cabeça entre as mãos, recusando a erguer-se e marchar para o muro como um bravo.”

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sábado, 2 de maio de 2020

A gastronomia segundo Brillat-Savarin


Jean-Anthelme Brillat-Savarin (1755-1826) foi um juiz francês que viveu num dos períodos mais conturbados de seu país, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira do XIX. A Revolução Francesa quase lhe tirou a cabeça, mas não foi por isso que ele entrou para a história.

Quem o colocou lá foi seu livro A fisiologia do gosto (Companhia das Letras, 2005, 384 páginas), um tratado bem-humorado e cheio de verdades sobre a gastronomia, que o colocou na boca de personagens de cinema e nas conversas de chefs de cuisine no mundo inteiro.

Para o autor, todos os campos do conhecimento humano acabam tangenciando o universo gastronômico, desde a física, a história natural, a química, a própria culinária até o comércio e a economia política. Para falar de gastronomia, ele usa todas essas referências, e seu texto enriquece com isso.

“A influência da gastronomia se exerce em todas as classes da sociedade; pois se é ela que dirige os banquetes dos reis reunidos, também é ela que calcula o número de minutos de ebulição necessários para que um ovo fresco seja cozido ao ponto”, diz.

Sinceridade e graça

Segundo Brillat-Savarin, os conhecimentos gastronômicos são necessários a todos os homens, embora os mais ricos sejam os que mais precisam deles em função de suas relações amplas dentro da sociedade, seus encontros políticos, posturas diplomáticas e reuniões de negócios. Mas são úteis também ao homem simples, pelos laços de amizade que esse conhecimento proporciona, ao saber fazer uma boa comida.

Publicado originalmente em 1825, um ano, portanto, antes de o autor falecer, A fisiologia do gosto é um livro peculiar do gênero pelo fino senso de humor de Brillat-Savarin. As definições de cada sensação ou de determinadas posturas são sinceras, mas escritas de forma graciosa. 

Ele define o apetite, por exemplo, como o monitor do corpo que avisa quando a contínua perda de nutrientes ameaça parar o funcionamento orgânico: “O apetite se anuncia por um certo langor no estômago e uma leve sensação de fadiga”, comenta.

Cegos gastronômicos

Nesse ritmo de conversa e ensinamento, o autor vai pontuando a complexa engrenagem da gastronomia. Fala dos sentidos, incluindo um sexto, que ele chama de ‘genésico’ ou ‘amor físico’, cujo estímulo pela boa comida é responsável por grande parte do prazer que o homem tem ao se alimentar, chegando próximo ao prazer do orgasmo. Mas adverte que nem todos são dotados de boa língua.

A língua de alguns desafortunados, diz ele, “é mal provida de terminações nervosas destinadas a absorver e apreciar os sabores. Estes suscitam-lhes apenas uma sensação obtusa; em relação aos sabores, são como cegos em relação à luz”, finaliza. 

Como exemplo de ‘cegos’ gastronômicos, Brillat-Savarin cita Napoleão Bonaparte, que “comia depressa e mal”. Neste caso, o autor demonstra aqui a vocação da gastronomia para a slow food em contraposição à fast food, que se tornou quase padrão no mundo veloz de hoje.

O livro passeia pelas dicas e receitas de como escolher um bom restaurante, os tipos de bebidas e suas combinações, fala de especialidades, da sede, da fritura, do prazer da mesa, da digestão, do sono, dos sonhos, da obesidade, da magreza, do jejum, da morte, da gastronomia clássica e até do fim do mundo. 

O que não se sabe é o que ele tinha comido quando lançou sua filosofia sobre os últimos dias sobre a terra. Em todo caso, nessas reflexões, ele diz que não vale a pena imaginar grandes catástrofes sobre o mundo, porque nada nesse universo conspiraria tão grandiosamente sobre nós, pois “não valemos tamanha pompa”.


Aforismos

O autor abre seu livro com uma série de aforismos que servem como trilha rumo ao que o leitor poderá encontrar nas páginas seguintes. 

1) O universo nada significa sem a vida, e tudo o que vive se alimenta.

2) Os animais se repastam; o homem come; somente o homem de espírito sabe comer.

3) O destino das nações depende da maneira como elas se alimentam.

4) Dize-me o que comes e te direi quem és.

5) O criador, ao obrigar o homem a comer para viver, o incita pelo apetite, e o recompensa pelo prazer.

6) A gastronomia é um ato de nosso julgamento, pelo qual damos preferência às coisas que são agradáveis ao paladar em vez daquelas que não têm essa qualidade.

7) O prazer da mesa pertence a todas as épocas, todas as condições, todos os países e todos os dias; pode se associar a todos os outros prazeres, e é sempre o último para nos consolar da perda destes.

8) A mesa é o único lugar onde jamais nos entediamos durante a primeira hora.

9) A descoberta de um novo manjar causa mais felicidade ao gênero humano que a descoberta de uma estrela.

10) Os que se empanturram ou se embriagam não sabem comer nem beber.

11) A ordem correta do comer é dos pratos mais substanciais aos mais leves.

12) A ordem correta do beber é dos vinhos mais suaves aos mais capitosos e perfumados.

13) Afirmar que não se deve mudar de vinhos é uma heresia; o paladar se satura; e, depois do terceiro copo, o melhor vinho não provoca mais que uma sensação obtusa.

14) Uma sobremesa sem queijo é uma bela mulher a quem falta um olho.

15) Aprende-se a ser cozinheiro, mas se nasce assador.

16) A qualidade mais indispensável do cozinheiro é a pontualidade: ela deve ser também a do convidado.

17) Esperar muito tempo por um conviva retardatário é falta de consideração para com os que estão presentes.

18) Quem recebe os amigos e não dá uma atenção pessoal à refeição que lhes é preparada não é digno de ter amigos.

19) A dona da casa deve sempre ter certeza de que o café é excelente; e o dono, de que os licores são de primeira qualidade.

20) Entreter um convidado é encarregar-se de sua felicidade durante o tempo todo em que estiver sob nosso teto.

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