Leituras do Giba
Não há espaço para ódio neste blog. Eventualmente uma ranzinzice crítica. Mas o amor às narrativas é o grande juiz aqui, a peneira vigente desta plataforma. Este é o lugar da paixão movedora de interesses afetivos.
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025
O fechamento da Cosac Naify
terça-feira, 16 de janeiro de 2024
JOÃO GUIMARÃES ROSA E A EXPANSÃO DO ESTÉTICO
Essa relação leitor/texto, no entanto, é diferente na leitura da poesia, porque entra em jogo a questão da sonoridade, do ritmo, do encantamento dos versos, além do teor central, que é a condensação, a alta voltagem concentrada nas linhas poéticas.
Mas em Guimarães Rosa, as convenções de leitura em prosa vão por terra. Em seus contos e romances, o texto é um mar de poesia. São águas poéticas em ondas revestidas de prosa. Tudo está ali: a condensação, o jogo de palavras, a musicalidade finamente trabalhada, o máximo no mínimo e a expansão do estético.
Basta a leitura de um conto de Primeiras Estórias, de um trecho de Grande Sertão: Veredas, ou de qualquer outro livro de Rosa, para o leitor se deixar mergulhar na poeticidade do texto e surgir de lá como quem traz ricos tesouros de linguagem, pronto para sentir-pensar.
sábado, 24 de dezembro de 2022
A noite de Elie Wiesel
O contexto era o do nazismo, da perseguição aos judeus, da violência brutal, dos assassinatos misturados em ódio e diversão. O que um menino podia fazer? Como você reagiria?
O trecho abaixo é parte da introdução de Night (1958), livro de memórias de Elie Wiesel (1928-2016), Prêmio Nobel da Paz de 1986, sobrevivente dos campos de concentração nazistas. (A tradução do trecho é minha).
“Lembro-me daquela noite, foi a mais hedionda de minha vida:
‘…Eliezer, venha aqui, quero te dizer uma coisa... Só você... Venha, não me deixe só... Eliezer…’ [dizia, em ídiche].
Ouvia sua voz, captava o sentido de suas palavras e a trágica dimensão do momento, mas fiquei quieto.
Era seu último pedido, desejando que eu estivesse do seu lado em sua agonia, no momento que sua alma era arrancada de seu corpo dilacerado – e ainda assim não atendi seu desejo.
Eu estava com medo.
Com medo das porradas.
Foi por isso que fiquei mudo para seus gritos.
Em vez de sacrificar minha vida miserável e correr para junto dele, segurando sua mão, confortando-o, mostrando que ele não fora abandonado, que eu estava com ele, que eu sentia sua dor, fiquei quieto e mudo, pedindo a Deus que fizesse meu pai parar de chamar meu nome, que o fizesse parar de gritar. De tanto medo que eu tinha de me submeter à ira da SS.
Meu pai, de fato, não estava mais consciente. Apesar disso, sua voz assustadoramente suplicante continuava rompendo o silêncio e clamando por mim, por ninguém mais além de mim.
‘E então?’ O soldado da SS tinha irrompido em fúria, e acertava meu pai na cabeça: ‘Fique quieto, velho! Fique quieto!’
Meu pai não sentia mais o impacto das bastonadas. Eu sim. E apesar disso, eu não reagia. Deixei a SS espancar meu pai. Eu o deixei sozinho, nas garras da morte. Pior: eu estava zangado com ele por fazer barulho, por ter gritado, por provocar a ira da SS.
‘Eliezer! Eliezer! Venha, não me deixe só...’
Sua voz tinha me alcançado de tão longe e de tão perto. Mas não me mexi.
Nunca vou me perdoar por isso.
E também jamais perdoarei o mundo por ter-me empurrado contra o muro, por ter feito de mim um estranho, por ter despertado em mim os instintos mais baixos, mais primitivos.
Sua última palavra foi meu nome. Uma súplica. E não fui capaz de atendê-lo.”
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quarta-feira, 23 de novembro de 2022
Freud deveria voltar
Em 2020, a Netflix lançou uma minissérie intitulada Freud. Foi uma das melhores coisas de streaming daquele ano que viria a ser assolado pela pandemia. Fiquei esperando uma segunda temporada, mas não apareceu até agora. Enquanto espero, escrevo sobre o que vi.
É sintomático que a primeira cena da série é de charlatanismo. Não deixa de ser um chiste interessante (eu morri de rir). Aliás, o primeiro episódio intitulado Histeria é pródigo em chistes, ao mesmo tempo que a trama vai mergulhando no lado sombrio do humano. Será que o roteirista chefe dessa bagaça faz análise? Claro que sim.
Freud é um thriller psíquico em que a investigação dos atos violentos, de assassinatos, estupros e tais, no meio de um problema político envolvendo os laços de poder do império austro-húngaro, se intercala à investigação dos negócios da alma e a busca de um lugar ao sol pelo jovem psiquiatra.
Num ambiente de mães corajosas e pais repressores, Sigmund Freud (Robert Finster), com dificuldade para pagar o aluguel, tomando chá de cocaína o tempo inteiro, tenta se estabelecer como psiquiatra, buscando um diferencial na careira como médico de comportamento.
Ele se apresenta para a anfitriã de uma festa, a condessa Sophia (bela e perigosíssima vilã) como um judeu médico visto pelos seus pares como desajustado, louco e charlatão.
Tem um roteiro deliciosamente atrevido. Mexe e remexe com as teorias do dr. Freud. A trama vai sendo costurada dialogicamente, como num conto de Dostoiévski, fazendo uso também da estética de Arthur Schnitzler (que não por acaso aparece na trama), autor de Breve romance de sonho, em que Stanley Kubrick se baseou para fazer o filme De olhos bem fechados.
Toda a atmosfera da série, a fotografia, o cenário, a tonalidade dos mistérios, tudo, advém da estética de Schnitzler, cuja obra literária tem muito a ver com o universo da psicanálise.
Na vida real, Freud também era amigo de Schnitzler. Numa carta, o pai da psicanálise chegou a dizer que ambos tratavam do mesmo tema, com propósitos diferentes. Na série, o roteirista achou um jeito de unir as duas mentes. E ficou fantástico.
Os tormentos (como o do inspetor Kiss, que obedecera a ordem de seu superior - Georg von Lichtenberg – de matar inocentes na guerra austro-prussiana), os desejos reprimidos, a homossexualidade clandestina (Lichtenberg é amante do jovem tenente Riedl), as taras, as pulsões se manifestando nos corpos, sonhos e pesadelos povoam as noites de Viena.
Vemos a atmosfera sombria do que viria a ocorrer no século vindouro. Quase todos os homens têm cicatrizes no rosto, resultantes de duelos de esgrimas, mas que servem como metáfora dos traumas.
Em uma das cenas, Joseph Breuer, orientador de Freud (na série e na vida real), diz ao aluno: “Nos mapas antigos quando não se conheciam os limites do mundo, desenhavam-se quimeras assustadoras e escreviam ‘Hic sunt dracones’, ‘aqui há dragões.’ Um perigo do desconhecido que não compreendemos. Mantenha distância.”
“E se eu quiser ser um cartógrafo? Um pioneiro?”, pergunta Freud.
Numa apresentação para doutores, ele expõe seu pensamento e demonstra o quanto era brilhante para criar metáforas, para puxar do abismo insondável de seu objeto de estudo as imagens mais significativas, embora ali, naquele momento, suas palavras não correspondessem ao que tinha para oferecer como prática.
“A histeria é uma emanação daquilo que chamo inconsciente. Eu sou uma casa. Está escuro dentro de mim. Minha consciência é uma luz solitária, uma vela ao vento, que cintila às vezes aqui, às vezes acolá. Todo o resto está nas sombras. Todo o resto reside no inconsciente. Mas as outras salas estão lá. Nichos, corredores, escadarias, portas, o tempo todo. Tudo que vive dentro de nós, tudo que perambula dentro de nós está lá, operando e vivendo dentro da casa que somos. Instinto, desejos, tabus, pensamentos proibidos, desejos proibidos, memórias que não queremos que as encontrem. Elas dançam à nossa volta na escuridão, nos atormentam e nos atiçam, interferem, assombram e sussurram. Elas nos assustam, nos adoecem, nos deixam histéricos.”
Se ignorarmos o fator histeria, que deixou de ser importante nas linhas de investigação psicanalítica, a imensa casa como metáfora do inconsciente ainda vale.
Freud, como série de ficção, é um grande achado da Netflix. Dizem por aí que psicanalistas não curtiram muito a produção. Danem-se os psicanalistas (sintoma)! Eu, que não sou psicanalista nem porra nenhuma, fiquei fissurado nela.
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quarta-feira, 19 de janeiro de 2022
A arte de imitar folhas (poema)
Eu também fico assustado
Eu também tenho medo do mundo
Às vezes
Tenho medo do espaço infinito
Às vezes
Tenho medo dos astros
Dos pastos
Da gravidade
Do vento
Do ar
Das areias
Das águas
Do tempo
Tenho medo das coisas invisíveis
E das coisas que só eu vejo e não posso descrevê-las
Porque eu seria louco
Tenho medo da loucura
Da carne e da solidão
Tenho medo quando a sombra da terra engole a lua e o sol
E quando o céu soturno produz cores no escuro
Cores que não sei distinguir das que matizam meus olhos
Como se viessem de dentro de mim
Como se fossem luzes galácticas que iluminariam o mundo
Tenho medo de ser o sol de alguém
E se eu apagar?
Olhe
Assustar-se por ter medo é normal
Também me assusto
Às vezes
O primeiro susto é quando a gente nasce
A alma dá um pulo dentro da gente e a gente passa a existir
A gente nasce como quem brota
Toda mãe é uma primavera
Todo pai é um tenebroso outono de chuvas ácidas
Imagine
Um broto saindo da terra na selva, entre pés e bichos
Existindo
Imagine
A selva que é viver
Para além do mato
Na fauna humana, inventora de mundos
Na fauna humana, inventora de choques
Na fauna humana, inventora de toques
E lembranças dentro de lembranças
Dentro de sonhos
E restos de sensações que triscam a alma
E ela pula
E sabemos
Lembramos
Da existência
Tememos, e trememos, e bebemos, e dizemos só a verdade
A verdade é a única coisa que existe de verdade
A verdade foi criada por nós que criamos a nós mesmos
Antes de criar o mundo sobre o mundo já criado
Criamos a nós mesmos
Antes de criar o mundo sobre o mundo já criado
Cheio de bichos e pés e asas e nadadeiras e raízes sugadoras de seiva
Criamos a nós mesmos
E viscosidade e lama
E chamas e pingos
Criamos a nós mesmos
De líquidos que nos dissolvem e nos evaporam
E desaparecemos
Sem o medo, porque o medo fica
E desaparecemos
Sem o medo
E o susto é o prenúncio de quem vai nascer (como grilos)
E desaparecemos
Sem o medo, com susto
E desaparecemos
Sem o medo, porque o medo fica
A preparação para o medo
Às vezes
Porque há também a força que nos impulsiona para o destemor
Porque há também a força que governa o medo
Às vezes
Enquanto flutuamos como flocos e féculas
Enquanto flutuamos como seres helicoidais
Seres que se entrepenetram e se eternizam
Enquanto flutuamos como seres sempre com medo e assustados
Como se um sopro no ouvido
Como se um sussurro
Um urro baixinho, infrassônico
Como se a existência toda pelos espaços vazios
Entre os astros
Dissessem
Num susto
Eu também sou
Somos
Cromo
E quando me assusto, eu mudo de cor
Mudo, mudo
Mudo de cor
(Gilberto G. Pereira)
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sexta-feira, 4 de dezembro de 2020
Lourival Belém Jr. disponibiliza seus filmes no YouTube
Lourival Belém Jr. é um cineasta documentarista de curta metragem daqui de Goiânia, que sempre esteve antenado com a renovação da linguagem do cinema. Geograficamente distante do main stream, ele nunca se afastou das inovações narrativas.
Seu filme mais recente, O Turista no Espelho (2018, 26 min., colorido), é um exemplo disso. Sua obra vem sendo baixada no canal que leva seu nome no YouTube. Quem quiser apreciar, já estão lá filmes como Concerto da Cidade (Prêmio Fica 2005), Recordações de Um Presídio de Meninos (2009) e o belíssimo Quinta Essência (1982/2014), o mais poético de todos (em parceria com Ronaldo Araújo).
Na próxima quinta-feira, 10 de dezembro, será a vez de O Turista no Espelho ser lançado no canal, filme experimental com uma onda dialógica que vai tecendo junto literatura, releitura cinematográfica, jornalismo, pajelança como protesto, turismo, discurso político, denúncia, num processo que se identifica com a estética relacional, em que ele vai juntando outras narrativas à sua própria, criando um universo crítico, novo e rico.
É assim que ele dialoga com a literatura de Milton Hatoum, com o cinema de Jorge Bodanzky e Orlando Senna, Iracema – Uma Transa Amazônica, de 1975, com linguagens publicitárias que, recriadas no escopo do cinema de Belém, denunciam com sarcasmo a voracidade do consumismo e das marcas registradas.
Há cenas que se estendem às cidades grandes como Rio de Janeiro, Goiânia e Brasília, para mostrar o fruto da desigualdade e da expulsão das pessoas da zona rural para as periferias urbanas. E a luta. O Turista é sobretudo a revelação das lutas, de suas preparações, como instrumento de sobrevivência, mais do que de conquistas.
Como todos os outros filmes de Belém Jr, a estética é sinônimo de interferência política, que é a alma das artes contemporâneas, sobretudo as plásticas, a fotografia e o cinema documentário, além de um certo nicho da literatura e do cinema de ficção.
Estética e política
Lourival Belém Jr., cineasta goianiense |
A linguagem experimental de O Turista oferece as perspectivas documentaristas de seu tempo, e o roteiro perfaz o mergulho do cineasta e sua mulher nas ramagens da sociedade profunda da Amazônia, comos os índios, os ribeirinhos e os sem-terra (marginalizados pelo poder e pela elite econômica, mas de fato fixados no coração da floresta).
Eles viajam para esses lugares com uma câmera amadora na mão e mil sentimentos na cabeça (de indignação, de admiração, de dó, de impotência, de espanto, de integração, de reconhecimento, de distanciamento).
Como turista, o cineasta não é mais aprendiz, como o fora Mário de Andrade, que também viajou pelos Norte e Nordeste brasileiros, registrando narrativas e informações sobre o Brasil profundo. Como turista, Belém vê a si mesmo nas pessoas que ele filma, embora sinta-se separado delas pela linguagem e pelos costumes que foram sendo alijados do Brasil oficial ao longo dos séculos.
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quinta-feira, 4 de junho de 2020
Georges Bataille sobre museu
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Três músicos, óleo sobre tela, de Pablo Picasso, (1921): acervo da Fundação Mrs. Simon Guggenheim, em exposição no Museu de Arte Moderna, NY, em 2016.
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