Todo apreciador de música deve ter em casa um exemplar de História social do jazz, do historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012). É um livro formidável. Publicado originalmente em 1961, não é a grande fonte histórica do gênero (nunca teve essa pretensão), mas é um clássico sobre como se cultiva o jazz desde sua criação.
As tiradas analíticas feitas por um apaixonado pelo assunto, e grande conhecedor da conjuntura que fez nascer um dos gêneros mais instigantes do século XX, ainda são o diferencial deste livro, que no Brasil só seria traduzido 25 anos depois, em 1986. Mas em 1989, já estava na terceira edição no mercado editorial tupiniquim. Em 2011, a Paz e Terra lançou a 6ª edição, com prefácio de Luís Fernando Verissimo.
Mais conhecido pela série histórica sobre as grandes revoluções que deram ao Ocidente a hegemonia política e econômica do mundo (as eras das revoluções, do capital, dos impérios e dos extremos), Hobsbawm escreveu História social do jazz como um hobby. E sua leitura deve ser feita assim também, como quem ouve música.
Aliás, agora dá para fazer isso, sem problema. Praticamente tudo sobre o qual fala Hobsbawm neste livro está no Youtube. O leitor pode ir lendo enquanto vai curtindo as vozes originais dos astros e das grandes divas do jazz desde a década de 1920.
Uma das primeiras estrelas do gênero é Bessie Smith, que o autor definiu como “mulher grande, bela, rouca, bêbada e infinitamente triste.” Hobsbawm também cita um guitarrista que trabalhou com Bessie, que disse:
“Você nem mexia a cabeça enquanto ela estivesse se apresentando. Ficava só olhando para Bessie. Não se liam jornais em nightclub onde ela se apresentasse. Ela só deixava você triste.”
Comoventes, deliciosos ou interessantes
A lista de grandes artistas do jazz é imensa, e uma das características do livro é justamente “guiar o leitor através do labirinto de estilos orquestrais e instrumentais de jazz”, seguindo o curso desse rio caudaloso de nomes como Lester Young, Ethel Waters, Billie Holliday, Ella Fitzgerald, Sara Vaughan, Duke Ellington (1899-1974, “o talento mais importante produzido pelo jazz até hoje”).
São muitos nomes. Entre os talentos mais admirados do jazz, há também Charlie Parker (1920-1955), “o Rimbaud do jazz moderno”, Count Baise (1904-1984), Chico Hamilton, Thelonius Monk, Oscar Peterson e Miles Davis.
Para quem está começando a apreciar o jazz, este livro é ainda mais precioso, porque seu objetivo, segundo o autor, é esse mesmo: “Ajudar o principiante a se localizar, mencionando alguns discos mais característicos, vistos pelos entusiastas de um ou outro estilo como comoventes, deliciosos ou interessantes.” Neste caso, é só seguir as dicas, jogar no Youtube e ir ouvindo os caras.
O jazz são tantas coisas. No fluxo das palavras que desenham a inventividade vocal e instrumental do jazz, há também espaço para sua base, o blues. “O blues não é um estilo ou uma fase do jazz, mas um substrato permanente de todos os estilos”, observa o autor.
E aí, ele cria uma analogia perfeita para falar dessa base. “O blues está para o jazz como a terra estava para Anteu, do mito grego.” Anteu é um personagem mitológico grego, filho de Geia, um gigante que bastava entrar em contato com a mãe terra para recuperar suas forças. O jazz, de igual modo, quando está definhando, volta ao blues e suga novas energias.
Linhas de influência
Apesar dessa relação íntima e dependente com o blues, a construção estética do jazz não é feita apenas da música negra. Com data de surgimento fixada em 1900, o jazz tem várias outras tradições inseridas no bojo de sua criação. Uma espécie de protojazz, por exemplo, já era ouvida nas últimas décadas do século XIX, o ragtime, tocado por solistas de piano, ainda num estilo musical europeu.
“O jazz surgiu no ponto de intersecção de três tradições culturais europeias: a espanhola, a francesa e a anglo-saxã. Cada uma delas produziu um tipo de fusão musical afro-americana característica: a latino-americana, a caribenha e a francesa (como a da Martinica), e várias formas de música afro-anglo-saxã, das quais, para as nossas finalidades, as mais importantes são as canções gospel e os country blues”, diz Hobsbawm.
Um entendimento dessa fusão se faz melhor quando olhamos para New Orleans como o berço das bandas de jazz, justamente a cidade americana que possui a maior tradição de carnaval, festa móvel do calendário cristão europeu, todos atolados na areia movediça do blues.
E assim, o autor vai descrevendo as linhas de influência do jazz, chegando inclusive ao rock, como influenciador, a partir da década de 1960. Segundo Hobsbawm, “por três motivos, o rock iria influenciar o jazz.” O primeiro é o ambiente, a atitude do estilo que nascia também a partir do blues.
O segundo motivo era o fato de o rock não se importar em aprender fazendo. A partir disso, os jazzistas, que também eram autodidatas, foram mergulhando na música e nas fusões com mais liberdade. A terceira razão era o fator da inovação, que no rock era patente.
Na questão das bandas, por exemplo, os roqueiros podiam criar sons, experimentar batidas com os vários instrumentos, e o jazz foi emulando isso, a ponto de sua identidade se tornar exatamente essa capacidade de improvisar.
Com o exercício da improvisação, os jazzistas mudaram o rumo da música. Para se diferenciarem do jeito de tocar dos brancos, aprenderam a “tocar trompete com a fluidez de um saxofone, um trombone com o esplendor e a rapidez de um trompete, fazer a bateria ‘tocar música’ além de acompanhar o ritmo.”
Mas assimilavam tudo. Até Os Beatles, cujos integrantes eram fãs de blues, foram inspiração para os jazzistas, diz Hobsbawm. “Arranjos sofisticados de rock, como Sergeant Pepper, álbum dos Beatles de 1967, que foi rotulado – não sem razão – de ‘rock sinfônico’, não podiam deixar de dar aos músicos de jazz algumas ideias.”
E por aí, vai. Mas, afinal, o que é o jazz? “Não existe uma definição precisa ou adequada de jazz, a não ser em termos muito genéricos ou não musicais”, diz o autor. Bem sabemos que hoje, em tantos festivais de jazz pelo mundo, há uma profusão de estilos e linguagens musicais que se encaixam perfeitamente nesse gênero. Ou seja, é uma espécie de caos organizado, de festa, de originalidade e improvisação.
Linhas gerais
Por outro lado, há sempre um modo de descrevê-lo. Há linhas gerais que nos colocam no cerne do gênero, que nos fazem sentir se é jazz ou não, toda vez que ouvimos uma música. Se não há “linhas divisórias precisas”, diz Hobsbawm, o jazz ao menos pode nos dizer o que é em cinco características:
-1 “Uso de escalas originárias da África Ocidental (influência do blues), não comumente usada na música erudita europeia”, mas com peculiaridades decorrentes também “da mistura de escalas ditas europeias e africanas”.
Em todo caso, é a escala blue (terceira e sétima abemoladas) a expressão mais conhecida do jazz. Falar mais que isso é entrar em linguagem técnica demais.
-2 “O jazz se apoia grandemente, e talvez de maneira fundamental, em outro elemento africano: o ritmo. (...) O ritmo é essencial para o jazz: é o elemento da organização da música”, diz Hobsbawm. Neste sentido, o gênero se aproxima da poesia, cujo elemento dominante é o ritmo.
-3 “O jazz emprega cores instrumentais e vocais próprias. Essas cores derivam, em parte, do uso de instrumentos incomuns em música erudita”, observa o autor.
-4 “As duas formas principais usadas pelo jazz são o blues e a balada, a música popular típica, adaptada da música comercial comum.”
-5 E por fim, diz Hobsbawm, “o jazz é uma música de executantes. Tudo nele está subordinado à individualidade dos músicos.” Daí, a incrível capacidade de improviso, os movimentos desconcertantes que surgem da bateria, dos instrumentos de sopro ou do piano.
Quando ouvimos John Coltrane, por exemplo, em Blue train, sentimos um balanço que vai se aproximando com certa quentura, e eis que de repente, as notas vão se multiplicando e variando no espaço. E tudo é festa.
“O efeito mais poderoso do jazz”, argumenta o autor, “está na comunicação da emoção humana de forma intensificada.” Por isso, músicos o adoram, porque fomenta em suas almas uma vontade de fazer música, e assim sentem vontade de instigar na alma dos outros uma emoção semelhante, mesmo que em outro estilo, em outro ritmo.
História social do jazzé mais que um tratado musical, é um farol que ilumina a cultura. A parte social dessa história é interessante porque vemos o jazz nascer nas camadas mais pobres e menos erudita da sociedade. E por isso sofreu preconceito, como sofreu o samba, no Brasil, como sofre o funk, no Brasil.
Traço inferior do gosto humano
Quando o jazz começou a tomar forma e a encantar as pessoas nas cidades americanas, era tido como ritmo da indecência, da imoralidade. “Os moralistas, é claro, declararam-lhe guerra imediatamente.” Hobsbawm cita o trecho de um editorial venenoso contra o jazz do jornal Times-Picayune, de New Orleans, publicado em 1918, que começa assim:
“Por que então a música de jass e a banda de jass? Pergunte-se, igualmente, o porquê da novela barata ou do doughnut engordurado. São todas manifestações de um traço inferior do gosto humano, que ainda não foi consertado pelo processo civilizatório.”
A palavra jazz passou a se referir como gênero musical justamente por causa do preconceito, do racismo. Guardadas as devidas proporções, de etimologia e de semântica, ocorreu mais ou menos como ocorre, até hoje, com a palavra gafieira (termo usado para um tipo de forró que se dança com o par agarradinho, roçando as pernas um no outro, nas regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste do Brasil).
Jazz (jass, ou jaz), portanto, segundo Hobsbawm, “era um termo de gíria africana para a relação sexual”, que “passou a ser usado como um rótulo genérico para a nova música de dança.” O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa também registra esta mesma acepção.
No romance Jazz, de Toni Morrison, a descrição do gênero é de uma música e uma dança sensuais demais, subversivas ao extremo que faziam as pessoas temerem e amarem sua verve, ao mesmo tempo.
No romance, a narradora vai descrevendo o caráter mágico e atraente do jazz, que faz as mulheres se sentirem hipnotizadas na dança com seus pares, e diz: “Elas acham que eles sabem antes da música o que suas mãos e pés têm de fazer, mas essa ilusão é o impulso secreto da música.”
Apesar de ter conquistado ambientes diversos e sofisticados, o jazz é arte popular. E, como diz Hobsbawm, “a arte popular é mito e sonho, mas também é protesto, pois o comum das pessoas tem sempre alguma razão para protestar.”
Talvez por isso “o mundo do jazz era, e ainda é, até certo ponto uma rebelião contra os valores da cultura de minoria.” Esta observação foi feita, obviamente, entre 1959 e 1961, mas, de certo modo, ainda vale para hoje, embora o ritmo genuíno de protesto hoje seja o rap. Talvez o jazz seja ouvido como guia revolucionário da subjetividade, algo como modificador da alma.
Vida cheia de livros e de música
Segundo Hobsbawn, o jazz passou por uma série de evoluções, e de modo muito veloz. Em questão de décadas, ele saiu do gosto médio de um grupo social marginalizado, como os negros americanos, para uma seara de elite intelectual em todo o mundo, o jazz moderno.
Apesar dessas mudanças, algo na essência do jazz permaneceu como característica ímpar, que é sua verve de protesto, seu ânimo de inquietação. “O jazz moderno não é tocado apenas por divertimento, por dinheiro, ou por requinte técnico: também é tocado como um manifesto – seja de revolta contra o capitalismo e a cultura comercial, seja de igualdade do negro ou qualquer outra coisa”, diz Hobsbawm.
História social do jazznos dá a oportunidade de refletir e de aprender sobre os cruzamentos de culturas. Muito mais coisas são faladas neste livro, como a relação do jazz com as outras artes (a literatura e o cinema, por exemplo), ou a indústria do jazz, a formação do público, o uso dos instrumentos, e o surgimento dos grandes nomes. É um deleite para quem se encontra no torvelinho da vida cheia de livros e de música.
Nenhum comentário:
Postar um comentário