“Minha vida feita de decepções, fúria e despenhadeiros.
Minha fundação é conflito fluído de expectativas.
E a mansidão do vento pós-tornado.
Meus momentos de imersão em mim mesma,
Decorados com o espectro funerário
De meus antepassados.
Conflitantes disparates do que não posso dizer.
As palavras percorrem caminhos do esconderijo.
Joguei no lixo a palavra que poderia me salvar,
Esta atropelada, fugidia, afogada na garganta,
Labirinto de minhas fugas.”
Com um longo caminho ainda pela frente, muita coisa para dizer, a poeta goiana Claudia Machado, 46 anos, nos convida a pensar sobre o sentido poético da vida, e a entender por que a poesia é um elemento fundamental na realização do espírito. Sua obra ensina, ou faz lembrar, que a poesia nos ajuda a imprimir e a reconhecer os ritmos da alma e a topografia de desejos, de sonhos, de medos, de potencial de maldade e de esperança de bondade.
Sua poesia tem essa característica, de ser íntima, de sondar o interior da gente e das coisas, ao mesmo tempo que abre um clarão na paisagem exterior do mundo. Ela nos auxilia no mapeamento da nossa própria memória e na cartografia dos afetos.
Morando atualmente em Goiânia, Claudia nasceu e cresceu em Palmeiras de Goiás. Muitos de seus versos trazem a memória da cidade do interior e reestabelecem um espaço poético muito importante, o dos costumes que orbitam o campo e as pequenas urbes. Além de poeta, é psicanalista, formada em psicologia pela PUC-GO, ou seja, sabe bem por onde passam as palavras. Já escreveu seis livros, incluindo o infantil A invenção de João (2017).
Seus outros livros são Canções do meu amor (1999), Poemas de uma despedida (2001), Inventário de um amor (2007), Bordados e tantas outras costuras (2011) e O livro do depois (2015). Os três últimos são objetos diretos deste texto.
Pelo conteúdo e desenvolvimento temático, pela experimentação formal que se vai abrindo até chegar à liberdade destemida de misturar prosa e verso na composição poética, esses três livros formam uma espécie de trilogia, mas uma trilogia de amplos espaços, tão livre quanto o espírito esponjoso da poeta.
Os temas abrangem categorias como amor e morte, passando pela questão do corpo, indo da infância à vida adulta. Um dos eixos fundamentais de toda sua obra é a memória, e dentro da memória há o elogio da velhice e do perecimento físico.
Há também uma poética do espaço muito acentuada. Neste sentido, quem quiser estudar os costumes interioranos (comida, mobiliário, gestos), os rastros genéticos da cultura goiana pelo viés poético, sua poesia é uma boa fonte.
Paisagens
Em Inventário de um amor (UCG, 2007, 76 páginas), a poeta demonstra um repertório raro de beleza rítmica, de entonação vocal, usando a lírica memorialística para se expressar. É nele que está o poema que abre o presente texto, “Seca eterna”, que pulsa a existência de maneira absolutamente tensiva e ampla, alternando entre paisagens interiores e exteriores.
Além disso, organicidade e ritmo conferem a certos poemas uma tessitura sensual, uma presença viva, que respira junto com o leitor, ou melhor, convida o leitor a respirar de um modo particular.
Tudo é feito de maneira consciente. É um trabalho realizado na palavra, talhado na matéria do verbo, como diz o próprio poema de apresentação: “Teci palavras./ As coloquei uma a uma/ Nesta colcha de carne e sangue."
No poema “Origem”, há uma comoção genuína no modo como a poeta (ou o sujeito poético invocado pela autora) fala de sua infância. Sua vida é uma extensão de Palmeiras de Goiás. Neste sentido, os poemas “Centenário” – em que a cidade natal da poeta narra sua própria gênese – e “Origem” se completam, enquanto ela traça o itinerário do afeto.
Inventário de um amor reúne poemas e prosas (crônicas, que não entram nesta análise). Nele, o amor é o objeto central, e é um amor vasto, que nasce na ancestralidade dos progenitores da poeta, imagem metafórica da origem não só sua, mas da sua cidade, fazendo emergir do fundo da memória os elementos forjadores de sua identidade, como lugares (ruas, casas), pessoas (sentimentos, gestos, laços políticos), e atravessa a vida presente alcançando o fim comum a todos os corpos, a morte.
A morte é um legítimo dispositivo existencial na poesia de Claudia. É o último dispositivo a ser acionado, mas está lá, às vezes, à espreita, às vezes, solenemente à mostra, como no caso do carneiro (“lancelote de águas”), bombeador de água, que todos os dias, “escondido entre as mangueiras”, era visitado pela poeta menina.
Todos os dias, ela ia ver aquele carneiro no quintal, aquele objeto que devia ser fascinante diante de sua imaginação de criança, aquela coisa que deixou de ser útil para a família e foi abandonada, aquele artefato, “Antes solitário./ Agora, morto.”
A morte percorre a poesia de Claudia com naturalidade, como no caso de uma mulher que a poeta amava quando criança, em “Na fazenda”. Era alguém das relações de sua família, talvez uma tia, talvez uma madrinha (ou as duas coisas, talvez Hosana, que aparece em outro poema como “mulher honrada,/ solteira por convicção”), uma mulher que não pôde ter filhos e amava a menina de volta como a uma filha, uma mulher que um dia viu seus anéis indo “nos dedos de outra”, e que agora “Docemente teço uma oração em favor de seu descanso/ Ausente e repleto de solidão.”
A morte é meio que um tipo de musa, que sopra na alma da poeta o ímpeto da vida, mas que em troca exige estar presente nos versos, apresenta-se como necessária para se compreenderem o tempo e o vento da existência. “Todo dia é dia de morrer./(...) Todos os cemitérios vivem em mim”, diz.
Memória afetiva
Como se vê a partir do título, Inventário de um amor trata de um tipo de amor, uma singularidade. Não são todos os poços de afeto, mas apenas o que forma sua identidade primeira, constituído dos afetos primários, fundentes.
Como todo amor, sobretudo o aglutinante da base familiar, este vem carregado de afeto polissêmico, em que há experiências de ternura, rancor (“minhas costas encurvadas carregam/ Toneladas de indolência e ódio”), lutos (“Trago em mim todas as tumbas abertas”), prazer, beleza, carinhos, etc..
O livro divide o corpo de poesia em duas partes. O ritmo que é marcado pela memória afetiva na primeira parte, na segunda, torna-se fúria existencial, e de repente o sujeito lírico já é outro, sem concessão afetiva, como se tivesse se perdido entre a infância e a juventude, no mar tenebroso da adolescência.
Talvez por isso, ela diga “Sou o intervalo entre Palmeiras e a Relinquim./ Sou o que se perdeu no caminho das lembranças.” Sendo Relinquim a fazenda de seus avós. Em outro momento, confessa: “Carrego no peito uma dor morta/ um azedume estranho,/ Amanhecido na boca./ Arrastei um cadáver pelas ruas durante todas/ as vidas que tive.”
Há poemas em que o sujeito poético se afasta tanto de seu eu de partida que se dissolve na malha de verbo, que se torna apenas campo imagético, de simbolismo distante, ícone de mudanças, tanto de corpo – não mais a lembrança da criança, mas a mulher a caminho – quanto de alma, com inquietações e conflitos.
Neste sentido, os primeiros poemas têm mais vigor emocional, mais autenticidade. Mas há ainda um ritmo particular nessa segunda leva de poemas, que a vincula com os poemas anteriores. Além disso, há marcas verbais que demonstram uma consciência poética trabalhando, forjando uma unidade, como quando ela se diz “fugitiva de mim mesma.”
Desse modo, os ventos a levam para um plano alto de visões e de construção de eus. Os ventos a transportam pelo tempo até ser velha, carregam-na da Palmeiras da infância, vivida, sentida, pensada, lembrada, até a Palmeiras do futuro imaginado. E depois, no poema “A minha casa”, a devolvem ao lugar da memória, para uma Palmeiras na figura do lar. É aí que fica visível a viagem simbólica através do tempo que a poeta faz.
Ferramentas de carinho
Já os poemas de Bordados e tantas outras costuras (PUC Goiás/Kelps, 2011, 104 páginas) evocam um conceito da poética clássica, de “Ut Pictura poesis(poesia é como pintura), pois a imitação (das imagens) do mundo só existe através da sua tradução”, como diz Márcio Seligmann-Silva, na introdução de Laocoonte – ou sobre as fronteiras da pintura e da poesia, de G. E. Lessing.
Só que em vez dos moldes da pintura, os poemas deste livro de Claudia se fazem ao modo do bordado, forjado em versos livres. Traz um alinhavar de imagens poéticas, às vezes com menos tensão e com um ritmo mais frouxo em relação ao Inventário de um amor, mas, ao mesmo tempo, é sua continuação.
Na primeira parte de Bordados, a poeta cultiva os gestos como dutos de afeto. As mãos, por exemplo, aparecem em seus poemas como ferramentas de carinho, de cuidado, e como metáforas do elemento movedor da vida, que por necessidade e desejo de continuar movendo-se, ao mesmo tempo que nos tece com amor para existirmos, empurra-nos para a morte. Neste ponto, o livro dialoga com os outros dois.
Em “Tecido”, a poeta diz: “Poemas são pequeninos vestidos que brotam das lágrimas/ laterais nas manhãs guardiãs do tecer a vida.../ Mulher velha na cadeira de balanço./ Os filhos foram-se,/ as mãos ficaram./ Companheiras.”
Em “Tessituras em linho branco”, ela começa falando “Carrego imensas e absurdas mãos,/ Tricô da vida”, para na penúltima estrofe, jogar luz de afeto sobre a figura avita, a afetiva imagem da avó:
“Não seria eu carne avoenga impregnada de mãe...?
Crochê, filhos, netos, a fazenda,
Os calores dos ventos,
O amor.
A cadeira de balanço,
Abrigo da morte”.
Parece que a única coisa que ela está vendo de fato é a cadeira de balanço, que evoca a lembrança e a faz sentir dentro dela mesma a própria avó, que é uma concentração existencial, é ela, a avó e a morte, da avó, já consumada, e dela mesma, como potência.
Alinhavos trilógicos
Em Inventário de um amor, também há invocações neste sentido, pois ao lembrar da infância, a poeta recupera a figura da avó, mas fazendo um jogo metafórico interessante, quase que uma montagem, partindo do universal – a fazenda Relinquim, a Serra da Jiboia – para o particular, passando pelas pessoas, até chegar a Otacílio Cassiano “com sua barba enorme”, provavelmente o avô, surgindo entrelaçado à memória afetiva da avó:
“Montado em seu cavalo tocando as vacas de todo dia.
Estrada de construção da infância nascida de parto natural.
Estrada dos tijolos da minha feitura.
Das mãos de unhas arredondadas
E dedos cobertos de anéis solitários de minha avó.”
Esses tropos enfileirados pela poeta, em “Lira da infância”, têm muito a dizer, e seu duto aí, sem dúvida, é a estrada. Mas as mãos é que regem os significados metafóricos. A poeta observa a estrada, e vê a avó viúva (de novo, universal-particular), as mãos, os anéis e o avô nos dedos da avó. Ou seria o contrário?
Em outro poema, ainda em Inventário de um amor, justamente sob o título “Inventário”, ela faz uma referência bem direta ao avô: “Hoje ando pelas ruas do Centro Velho,/ Em meio a palmeiras.../ À procura de cheiros familiares,/ Das verdades exatas de meu avô,/ Das mãos de fazendeiro que tanto amei.”
Em o Livro do depois, que fecha a trilogia, as mãos surgem de novo como ferramentas de afeto, não mais calcadas na memória de infância. Aparecem agora como metáfora de afago e deveres, de entrega e obrigação, entre o sonho e o sol da realidade, em “O amor que amou Tereza”, no heterônimo de Tereza Amanheceres, presa pelo casamento e pelo “homem cheirando à capim”: “Na madrugada ele se levanta e carrega/ Com ele as mãos/ E peito ardentes.”
Fazer poético
Voltando a Bordados, trata-se de uma estética da cesura. A poeta vai costurando as palavras como quem tece a vida dentro do poema. Para tanto, ela também usa a técnica da lírica memorialística.
E fica tudo mais rico porque, ao resgatar a memória, ela resgata o interior, onde cresceu, e o funde com o interior da alma, a subjetividade. Uma coisa está muito ligada à outra. Essa tríplice intenção enriquece o fazer poético de Claudia.
Muitos poemas de Bordados são metalinguagem, à medida que a poeta pretende mostrar um modo de fazer poesia. É o caso do já citado “Tecido”. Mas podemos citar de igual modo o autorreferencial “Bordados”, que diz: “Carrego um rosto marcado./ Talvez pela vida.../ Ou tanto mais pela palavra não dita.../ Vincos iniciados, ruas de minha alma.”
Em “Guardados”, ao mesmo tempo que registra as figuras quase fossilizadas pela pressa da pós-modernidade – “As pequenas cidades afogadas pelo novo”), as figuras sovadas na realidade cotidiana, não das metrópoles, mas das cidadezinhas e do campo, sob ameaça constante de extinção –, a poeta oferece também uma imagem do próprio poema e de seu construto.
“Guardo nas páginas dos poemas pequenos agrados”, (...), “Guardo na alma as curvas do rio que fundeia minha vida”, diz a poeta, como se só a poesia fosse capaz de salvar essas relíquias. E talvez seja assim mesmo. Daqui a algumas décadas, talvez os interessados só encontrem essas paisagens na poesia de Claudia Machado e em literaturas afins.
A vida necessita da memória como a memória necessita do registro. Na poesia de Claudia Machado, tudo isso vem entrelaçado, e de braços dados com a morte (existencial e esteticamente falando), a morte como último registro da memória ou como sua feroz caçadora e aniquiladora.
Há um senso de resistência na sua poesia que é quase direto, como quem ameaça apontando uma arma. Palmeiras resiste. Ela surge em nomes de ruas, de pessoas, de praças, de bares, de festas, de instituições, de fazendas. “A Palmeiras que amo mora ali no Larguinho da Praça da/ Mangueira”, diz, em “Larguinho”.
“No santíssimo” é outro poema fulcral, porque denota um marco do qual a poeta partirá para mares distantes:
“O quintal sempre fora um mundo à parte da casa
Lá descobri a vida e rastejei, e brinquei, e cisquei
E ruminei, e miei.
Fui a vida da selva inteira que cabia ali naquele instante.”
Este poema é a ponte para o que virá depois. Aqui, a poeta usa a imaginação na conformidade com a natureza, tão próxima dela ainda, metamorfoseando-se em bichos, alargando os horizontes da sua existência, exercitando as diversas vozes.
Sua poesia – tanto em Inventário de um amor quanto em Bordados – tem uma multidão de vozes, pelas quais a poeta não responde, que se misturam no fundo da sua memória, sem nomes. E esta característica é tão moderna, pois na modernidade cada poeta se multiplica em várias personaelíricas, e o eu poético já não é mais um, e já está tão distante da pessoa do próprio poeta.
Outros mundos, outros espaços
Na publicação que fecha a trilogia, Livro do depois (Kelps, 2015, 216 páginas, edição parcial bilíngue português-italiano), a poeta será muito mais plural, porque agora, ela se multiplicará em heterônimos. Todas mulheres. Cada uma com seus microdramas, cada uma com seu modo de ver o mundo, seu pathos.
Além da própria Cláudia Machado, há Dora Machado, Romana Rosa, Nilta Sapucaia, Arminda Cruz Alta, Maria da Conceição, Dorotéa Amado, Rosa Entremeios, Jacinta Cruz Alta, Tereza Amanheceres, Jandira, Walkiria, e uma “mulher sem nome, a mãe”, que diz “marido morto... Fazer o quê? Tem umas dez malas de roupa para lavar.”
O título Livro do depois remete à ideia do tempo que passa para a menina que sente o mundo poetizado pela autora. Tanto é assim que seu conteúdo já versa sobre outro tempo, outros mundos, outros espaços, que vão além de Palmeiras de Goiás e da fazenda, explorando outros interiores.
Isso explica o fato de a autora começar o livro com um poema sobre Portugal (“Porque Portugal existe”), que evoca Fernando Pessoa (assinado com o heterônimo de Dora Machado), e colocar “Vesuvianas” entre os últimos poemas, falando da Itália.
Depois de “Vesuvianas” vêm ainda poemas do heterônimo Jandira, e por último um texto em prosa poética assinado por Walkiria. Esses textos finais, os versos de Jandira e a proesia de Walkiria, não deixam de ser uma espécie de deslocamento em relação ao antes, figurado pela menina. São, portanto, outra encarnação do depois.
A referência ao depois é a manifestação pura da memória e da imaginação (dois elementos caros à poesia). É uma metáfora muito engenhosa que a poeta encontrou, porque tanto pode se referir ao futuro (o não ainda), quanto ao presente olhando para o passado (o não mais).
Livro do depois marca uma riqueza simbólica importante. O escritor e crítico cultural Nilson Jaime, autor de livros de história de Goiás, membro das Academias de Letras de Palmeiras (Apla) e de Pirenópolis (Aplam) e do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG), comenta, entre outras coisas, o caráter da personalidade múltipla da poesia de Claudia Machado.
Segundo Jaime, em artigo publicado no Jornal Opção, intitulado “Em livro bilíngue, escritora goiana despe-se, ‘lambe as palavras’ e faz ‘ménage’ com a literatura” (21/10/2017), “as mulheres em Claudia configuram arquétipos de Medeia, Helena, Maria Madalena, Frida, Bartira, Janaína, Iemanjá, Carmem, Anaïs Nin, Leocádia e dezenas de outras que ‘se apresentam’ com outros nomes, mas todas Claudia Machado”.
Essa voracidade, essa imensidão deglutida pela poeta, para depois regurgitar com outras vozes, enriquece de fato sua obra. Ela usa o cinzel imaginário para forjar na sua poesia a pluralidade, e ao olhar para trás, lembra da criança que foi, que já era assim, tal como continua sendo, vivendo, degustando a alteridade, sendo ela mesma: “Sou ainda aquela mesma menina de pernas curtas/ E olhos no alto”, diz ela em “Origem”.
Jaime enxergou bem esse processo de ampliação de um livro para o outro, que ao meu ver vem desde Inventário de um amor, ou seja, formando a trilogia. “A talentosa escritora goiana primeiro saltou o rio de Santa Rita do Paranaíba. Por fim, o Oceano Atlântico”, diz o crítico. E é isso mesmo.
Toda a obra poética de Claudia é uma refeição de símbolos, de palavras, um diálogo interno, um rufar de tambores que repercute os sons e os sentidos. Toda sua obra segue comunicando. O novo olha para trás sem se petrificar, assimilando o velho, redizendo o dito, renovando as impressões do mundo e de si.
É importante ressaltar que, como todo poeta, Claudia faz isso com o material que ela encontra em seu universo de palavras, de símbolos, de imaginação, de assimilação da experiência do outro e de si mesma. Portanto, que não venham dizer coisas como “falando desse jeito, até parece que ela é o novo Drummond”.
De fato, Claudia soube assimilar poetas como Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade (sobretudo o Drummond de Boitempo), Cora Coralina, Adélia Prado. Assimilou, como assimilou uma série de outros poetas, e construiu seu mundo. Em Livro do depois, isso fica claro. Assimilou também o discurso psicanalítico. Claudia chegou ao lugar que é seu. Ela agora expressa seu mundo de modo amplo, erige o estado de coisas que existe dentro dela.
Sua obra perpassa a evocação da memória e da imaginação, ressaltando o amor, o desejo, a sensualidade, o erotismo diáfano e suave, sem ser escancarado, o erotismo provocativo, como quem se despe diante de alguém, tirando peça por peça (“Meus seios em suas mãos são sinos antigos./ Ressoam horas.”), mas repassa sobretudo a vida como ponte entre nadas, a vida como trânsito, cujo rastro é a memória, e seu agente de propulsão é a infância, seu guardião é a velhice.
Vida e morte
A poeta está entre esses dois nós (infância e velhice), e faz do amor a liga entre um ponto e outro: “Agora, sou eu, aqui./ Velha. Criança. Mulher”. A vida, portanto, é amor, atravessado pela morte. No poema “Dias de noite escura”, isso fica claro (com o senso da contradição, para o merecido valor de sua poesia):
“Penso no fim da vida...
Naquele dia que traz consigo
O fechamento das esperanças,
O ranger dos dentes
E a consagração de que nada
E ninguém nos pertence.
Hora do sol no entardecer...
(...)
A Grande Dama...
Ela sim, ela sabe como amo.
Amo silenciosamente,
Assim como ela me permeia.”
Aqui vê-se como a vida é amor, passagem, e que quando acaba o amor, acaba a vida, e para tornar a viver é preciso voltar a amar. Neste poema em particular percebemos o quanto a morte está intrinsecamente ligada à vida, permeando-a, e de certo modo, amando-a também.
O poema “Desconserto” parece ir na mesma direção, embora seja mais complexo (o leitor terá de lê-lo). Já o poema “Labirinto” (que finaliza com o dístico: “Eu sei: estou de passagem pelo mundo./ Nasci ontem e vou-me amanhã.”) é uma espécie de encarnação da consciência existencial. Entre outras coisas, este poema nos diz que a vida e o amor são passagens, e que o tempo presente é sua casa por excelência. Por isso, urge-se viver agora.
A poesia de Claudia é um corpo vibrante. Há poemas que primam pela sensualidade, outros pela densidade rítmica, e outros ainda pela condensação, como este de um verso só: “As coisas são como gente: gemem”, ou este que nasce de Bandeira: “Faço livros como quem morre.” Ambos são do Livro do depois, onde tudo se potencializa.
Há um jogo de desejo (Eros), entrega e gozo, afastamento e novo desejo, em meio à liberdade, por um lado, e à permissividade, por outro, que faz desta publicação uma peça carregada de significado.
Fenômeno transitório
Muitas coisas ficam por dizer neste texto de caráter introdutório. Muitos alinhavos, como a religiosidade presente, e seu contraponto, exigem outra leitura. Mesmo o amor, apontado no Livro do depois, se amplia na forma. Mas um significado se impõe, o de fenômeno transitório, como a própria vida. O amor não fica. Passa. Fica a memória. “Acho que aprendi a amar dizendo adeus”, diz a poeta.
Em outro poema (“Claridade”), ela reforça: “O amor?/ Dura um piscar de olhos.” Em “Fortuna”, poema de sete versos, a poeta crava textualmente: “Todo amor é adeus.” O caráter menos fugaz do amor carnal que o leitor encontrará na poesia de Claudia é este, em que ela lhe confere um senso de aventura, em “Vesuvianas”: “Amar é desencontrar,/ É arriscar/ E estar onde somente se deseja estar.” Neste sentido, para Claudia, onde há amor, há uma entrega, e uma despedida.
Mas isso não significa, absolutamente, que a vida perca sentido, ao se perder um amor. Em “Becos”, ela vaticina: “Estar só?/ Impossível./ Há tantas em mim.”
Prosa e verso
Livro do depois é onde Claudia Machado mais trabalha o sentido poético na malha textual da prosa, aquilo que se convencionou chamar de prosa poética. Outros chamam de proesia, proema etc. A poesia moderna é, sobretudo, uma questão de ritmo, usando-se métricas variáveis e rimas internas, até chegar-se ao terreno da prosa, sem perder a carga compacta de significado.
Por outro lado, mesmo num poema forjado em sua casa tradicional, o verso, pode-se ficar muito próximo da prosa, a ponto de se perder a densidade poética. No conjunto da trilogia comentada aqui, há momentos (poucos) em que a poesia de Claudia se aproxima dessas marcações sintáticas muito prosaicas. Mas em outros, ela atinge um patamar altíssimo de condensação, ritmo e tensão.
Não dá pra dizer se isso é uma diálogo intencional ou se é simplesmente uma fraqueza autoral (fraqueza autoral para certo ponto de vista, diga-se de passagem, porque a poesia de Adélia Prado é marcada por esse tom prosaico, a ponto de Wilson Martins ter dito que não é poesia; mas o é, ou não?).
O poema “Desvarios”, por exemplo, tem essa marcação prosaica feita em versos. Mas lá na frente, em um dístico muito bem sacado, Claudia afirma: “Poesia proseada é reverência ante a/ poiêsis que me atinge.” Ela está falando de seus poemas em prosa, ou prosa poética, mas não deixa de ser um comentário ambíguo, que atinge a essência da poesia pelo que ela é, seja em prosa com tensão poética, seja em verso com elementos prosaicos.
Mais adiante ainda, há um poema que ilumina sua postura crítica ao cânone, “Verdugo”, em que a poeta faz louvor à poesia, execrando os eruditos:
“Na literatura não me interessa o que digam seus
desditosos donos...
Não busco entendedores, tradutores, doutores
E suas rimas
Dissonantes à vida.
Não me importa quantidade
De informações acumuladas,
A boca estúpida,
O riso fácil do entendido-estudado-conhecedor-
sabedor.
O intelectual vertido.
Transvertido.
A esses que pensam ser detentores da literatura
Desejo a morte a esses que dela são,
A navalha,
A palavra morta.”
Como leitor crítico de sua obra, eu poderia me incomodar com este poema. Mas, na verdade, até por ler a autora, e por ela trazer em sua poesia a morte como presença inexorável, sinto-me à vontade. Ela mesma nos diz o que a morte é, diz-nos que a morte nos deseja tanto quanto a desejamos. Então, tudo isso faz parte de um mesmo bailado. Afinal, “O homem ama a morte e a ela se dá”, diz a poeta em “Vesuvianas.”
A poesia de Claudia Machado é esse corpo vibrante como sói ser a boa poesia, que nos convida para dentro, e a partir dali nos leva para outros foras, outros mundos, mesmo que seja no exercício interminável de explorar o nosso próprio mundo (outros dentros). Afinal, é como ela diz em “Giro”: “O povo é um sítio arqueológico que guarda as/ marcas de cada humano.”
Essas marcas, ela, como poeta, consegue demarcar com as palavras, em estranhamentos. “O poeta é um estranho./ Vive com a alma à flor da língua”, diz ela. Ao dizer isso, estranha o senso comum, põe-no em outro patamar, poeticamente, e nos convida para a beira do precipício, onde está a vida e seu sentido poético.
Quando entramos nesse reino, passamos a entender a poesia como um elemento fundamental na realização do espírito. A isso também podemos chamar de compreensão do mundo. Não é toda a compreensão, mas é uma compreensão possível, necessária e urgente.