sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Luiz Gama: um poeta da consciência negra

                                                                                                         Foto: Google
Luiz Gama (1830-1882), que ajudou a libertar 500 escravizados, era um valente lutador pelos direitos do homem 

Sabe-se que o debate acerca da consciência negra nasceu com o sul-africano Steve Biko e os americanos Martin Luther King e Malcolm X, na segunda metade do século XX. Eles foram sucessores teóricos de uma turma pra lá de conscientes, brilhantes, como Frantz Fanon e W.E.B. Du Bois, mas sem ainda tornear o termo consciência negra.

Mas bem antes de todos eles, nos Estados Unidos e no Brasil, já havia homens discursando ou fazendo literatura com a carga genealógica desse discurso. No Brasil do século XIX, Luiz Gama era um deles.

Gama não estava à altura de Cruz e Souza, seu quase contemporâneo, na poesia. Sua linguagem direta, no entanto, com versos claros de resistência que serviam como instrumento de conscientização, era muito apreciada pelo movimento abolicionista, e atingia em cheio seu propósito.

Embora a luz de Gama tenha se apagado bastante na lembrança literária – e Cruz e Sousa, mesmo abaixo do que merece estar (porque é um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos), continua a ecoar com seus Violões que choram –,  não se pode desprezar a memória de um homem que, autodidata, estudou as leis e conseguiu alforriar mais de 500 escravos.

Menos o poeta, mais o homem de atitude. “O que faz dele um tipo extraordinário”, diz Fernando Góes, organizador de sua obra completa (Trovas burlescas e Escritos em prosa) em 1944, “é o homem mesmo, pela sua vida, pela suas ações, por tudo o que fez e realizou”.

Qualquer um que se ache fora da realidade histórica brasileira, branco, negro ou de qualquer outra cor, pode se dar ao luxo de dizer não a Gama, mas os brasileiros, principalmente os negros de consciência, precisam manter viva a memória de um cidadão que dedicou toda a existência à libertação do corpo e da alma do negro nascido ou feito escravo no Brasil.

Contra o discurso embranquecedor

No plano jurídico, as ações de Gama eram voltadas para a libertação de escravos. Mas sua poesia voava num espaço mais complexo e polêmico desde aquela época. Ele procurava constatar o disparate do discurso embranquecedor já no século XIX, conforme se vê no trecho abaixo do poema Quem sou eu?:

“Aqui, nesta boa terra,
Marram todos, tudo berra;
Nobre condes e duquesas,
Ricas Damas e Marquesas,
Deputados, senadores,
Gentis-homens, vereadores;
Belas damas emproadas,
De nobreza empantufadas,
Orgulhosos fidalgotes,
Frades, Bispos, Cardiais,
Fanfarrões imperiais,
Gentes pobres, nobres gentes,
Em todos há meus parentes.”

É verdade que seus versos – quase todos na toada tetrassílaba ou em cadência hexassílaba, próximos da verve satírica de Gregório de Matos, mas sem o gênio poético daquele – são limitados. Todos os que usavam a poesia como arma de combate, nessa luta corporal do cotidiano, os negros especialmente, mantinham as letras ao rés do chão. Só um preferiu voar alto, e das alturas, disparar os mais agudos versos contra o racismo. Mas ninguém entendeu: era Cruz e Sousa.

Outro exemplo de combate e deboche poético daqueles tempos foi Inácio da Catingueira, retratado por Orígenes Lessa, num livrinho que também traz o autor das Trovas burlescas, intitulado Inácio da Catingueira e Luiz Gama: dois poetas negros contra o racismo dos mestiços. É claro que o ‘mestiços’ do título está ligado a todos os não-negros do Brasil que negavam e vilipendiavam a identidade afro-brasileira.

Catingueira era um repentista genial. Não sabia ler, e todos os seus versos conhecidos hoje foram registrados por admiradores de seu talento. Sua memória era a mãe e o pai da poesia que criava. Catalogava cada fibra fonética, usando o vocabulário corriqueiro, e fazia rimas engraçadas e cheias de verdade, como estas:

“O senhô me chama negro
Pensando que me acabrunha,
O senhô de home branco
Só tem os dente e as unha ...
Sua pele é mui queimada
Seu cabelo é testemunha.”

Nesse cenário, que é a gênese da consciência negra brasileira, Luiz Gama, como Catingueira, também deixou sua poesia, que era forte, mas recitada muito menos pelo valor estético do que pelo valor de luta. A vida que teve e a energia que dispensou aos seus, no entanto, valem por uma epopeia inteira.

Vendido pelo pai

Luiz Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador, Bahia em 1830. Filho de mãe negra africana livre, vinda da Costa do Marfim, e de pai supostamente branco – “não ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste país constituem grave perigo perante à verdade” –, de origem portuguesa e rico, Gama teve uma vida regular até os dez anos de idade.

Em 1837, no entanto, sua mãe fez uma viagem ao Rio de Janeiro e nunca mais voltaria. Provavelmente fora aprisionada e vendida como escrava por um dos vários traficantes da região, mesmo sendo ela uma mulher livre. Depois disso, seu pai perdeu todo o dinheiro em jogatinas e acabou vendendo o filho num cassino para mercadores de um navio, em 1940. Ele foi parar em São Paulo. A partir dali, Gama começou a se virar sozinho, trabalhar e aprender as primeiras letras até conseguir comprar sua própria alforria antes dos 18 anos.

Percurso, curso e racismo

Ao longo dessa aventura, Gama foi-se fazendo o homem que seria mais tarde. Do menino inteligente que era formou-se um espírito libertário, que conseguiu ingressar na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, a futura Faculdade de Direito da USP, mas não pôde concluir o curso por ser hostilizado pelos colegas. 

Segundo Sud Mennucci, no livro O precursor do abolicionismo no Brasil (1938), “Gama quis ser bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela nossa Faculdade de Direito. Teve a ilusão de que seria recebido senão com simpatia, pelo menos com indiferença, e que poderia realizar o curso como qualquer cidadão livre.”

Ledo (e Ivo) engano. Sobre essa tentativa malograda de Gama, esse empreendimento intelectual pautada pela fé nas pessoas, em um artigo citado no livro de Mennucci, o escritor Raul Pompeia, diz o seguinte: “A generosa mocidade acadêmica daquela época entendeu que devia matar as aspirações do pobre rapaz, tratando-as com o suplício de Santo Estêvão e as apedrejaram com meia dúzia de dichotes lorpas. Luiz Gama excluiu-se revoltado da companhia dos moços, horrorizado pela benevolência dos eruditos.”

Daí então, Gama seguiu carreira no Exército, onde entrou em 1848, chegando à patente de cabo, mas em 1854 teve baixa por insubordinação (havia sido insultado por um oficial e respondeu à altura).

Último conselho

Morreu em 1882 e está sepultado no Cemitério da Consolação, em São Paulo, depois de ter servido a centenas de negros brasileiros, como ele, libertando-os do jugo da escravidão. Seu único filho Benedito Gama, no entanto, apoiando-se no lastro de respeito que seu pai construíra, cursou a Escola Militar e chegou ao posto de major de artilharia do Exército.

Numa carta ao filho, Gama deixou transparecer os sulcos de rancor e mágoa na memória, como gato escaldado. “Evita a amizade e as relações dos grandes homens; eles são como o oceano que aproxima-se das costas para corroer os penedos.” Até hoje, boa parte dos que aparecem como grandes homens se encaixa nesse perfil. Um perfil, diga-se de passagem, que não foi criado por Gama.

O filósofo francês, Jean-Jacques Rousseau, em suas Confissões, já alertava para a mesma cautela: “Se cada homem pudesse ler no coração dos outros, haveria mais pessoas que quereriam descer do que pessoas que quisessem subir.”


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