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Luiz Gama (1830-1882), que ajudou a libertar 500 escravizados, era um valente lutador pelos direitos do homem
Sabe-se
que o debate acerca da consciência negra nasceu com o sul-africano Steve Biko e
os americanos Martin Luther King e Malcolm X, na segunda metade do século XX. Eles
foram sucessores teóricos de uma turma pra lá de conscientes, brilhantes, como Frantz
Fanon e W.E.B. Du Bois, mas sem ainda tornear o termo consciência negra.
Mas
bem antes de todos eles, nos Estados Unidos e no Brasil, já havia homens
discursando ou fazendo literatura com a carga genealógica desse discurso. No
Brasil do século XIX, Luiz Gama era um deles.
Gama
não estava à altura de Cruz e Souza, seu quase contemporâneo, na poesia. Sua
linguagem direta, no entanto, com versos claros de resistência que serviam como
instrumento de conscientização, era muito apreciada pelo movimento
abolicionista, e atingia em cheio seu propósito.
Embora
a luz de Gama tenha se apagado bastante na lembrança literária – e Cruz e
Sousa, mesmo abaixo do que merece estar (porque é um dos maiores poetas
brasileiros de todos os tempos), continua a ecoar com seus Violões que choram –, não se
pode desprezar a memória de um homem que, autodidata, estudou as leis e
conseguiu alforriar mais de 500 escravos.
Menos
o poeta, mais o homem de atitude. “O que faz dele um tipo extraordinário”, diz
Fernando Góes, organizador de sua obra completa (Trovas burlescas e Escritos
em prosa) em 1944, “é o homem mesmo, pela sua vida, pela suas ações, por
tudo o que fez e realizou”.
Qualquer
um que se ache fora da realidade histórica brasileira, branco, negro ou de
qualquer outra cor, pode se dar ao luxo de dizer não a Gama, mas os
brasileiros, principalmente os negros de consciência, precisam manter viva a
memória de um cidadão que dedicou toda a existência à libertação do corpo e da alma
do negro nascido ou feito escravo no Brasil.
Contra o discurso embranquecedor
No
plano jurídico, as ações de Gama eram voltadas para a libertação de escravos.
Mas sua poesia voava num espaço mais complexo e polêmico desde aquela época.
Ele procurava constatar o disparate do discurso embranquecedor já no século
XIX, conforme se vê no trecho abaixo do poema Quem sou eu?:
“Aqui,
nesta boa terra,
Marram
todos, tudo berra;
Nobre
condes e duquesas,
Ricas
Damas e Marquesas,
Deputados,
senadores,
Gentis-homens,
vereadores;
Belas
damas emproadas,
De
nobreza empantufadas,
Orgulhosos
fidalgotes,
Frades,
Bispos, Cardiais,
Fanfarrões
imperiais,
Gentes
pobres, nobres gentes,
Em
todos há meus parentes.”
É
verdade que seus versos – quase todos na toada tetrassílaba ou em cadência
hexassílaba, próximos da verve satírica de Gregório de Matos, mas sem o gênio
poético daquele – são limitados. Todos os que usavam a poesia como arma de
combate, nessa luta corporal do cotidiano, os negros especialmente, mantinham
as letras ao rés do chão. Só um preferiu voar alto, e das alturas, disparar os
mais agudos versos contra o racismo. Mas ninguém entendeu: era Cruz e Sousa.
Outro
exemplo de combate e deboche poético daqueles tempos foi Inácio da Catingueira,
retratado por Orígenes Lessa, num livrinho que também traz o autor das Trovas burlescas, intitulado Inácio da Catingueira e Luiz Gama: dois
poetas negros contra o racismo dos mestiços. É claro que o ‘mestiços’ do
título está ligado a todos os não-negros do Brasil que negavam e vilipendiavam
a identidade afro-brasileira.
Catingueira
era um repentista genial. Não sabia ler, e todos os seus versos conhecidos hoje
foram registrados por admiradores de seu talento. Sua memória era a mãe e o pai
da poesia que criava. Catalogava cada fibra fonética, usando o vocabulário
corriqueiro, e fazia rimas engraçadas e cheias de verdade, como estas:
“O
senhô me chama negro
Pensando
que me acabrunha,
O
senhô de home branco
Só
tem os dente e as unha ...
Sua
pele é mui queimada
Seu
cabelo é testemunha.”
Nesse
cenário, que é a gênese da consciência negra brasileira, Luiz Gama, como
Catingueira, também deixou sua poesia, que era forte, mas recitada muito menos
pelo valor estético do que pelo valor de luta. A vida que teve e a energia que
dispensou aos seus, no entanto, valem por uma epopeia inteira.
Vendido pelo pai
Luiz
Gonzaga Pinto da Gama nasceu em Salvador, Bahia em 1830. Filho de mãe negra
africana livre, vinda da Costa do Marfim, e de pai supostamente branco – “não
ouso afirmar que fosse branco, porque tais afirmativas neste país constituem
grave perigo perante à verdade” –, de origem portuguesa e rico, Gama teve uma
vida regular até os dez anos de idade.
Em
1837, no entanto, sua mãe fez uma viagem ao Rio de Janeiro e nunca mais
voltaria. Provavelmente fora aprisionada e vendida como escrava por um dos
vários traficantes da região, mesmo sendo ela uma mulher livre. Depois disso,
seu pai perdeu todo o dinheiro em jogatinas e acabou vendendo o filho num
cassino para mercadores de um navio, em 1940. Ele foi parar em São Paulo. A
partir dali, Gama começou a se virar sozinho, trabalhar e aprender as primeiras
letras até conseguir comprar sua própria alforria antes dos 18 anos.
Percurso, curso e racismo
Ao
longo dessa aventura, Gama foi-se fazendo o homem que seria mais tarde. Do
menino inteligente que era formou-se um espírito libertário, que conseguiu
ingressar na Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, a futura Faculdade
de Direito da USP, mas não pôde concluir o curso por ser hostilizado pelos
colegas.
Segundo
Sud Mennucci, no livro O precursor do
abolicionismo no Brasil (1938), “Gama quis ser bacharel em Ciências
Jurídicas e Sociais pela nossa Faculdade de Direito. Teve a ilusão de que seria
recebido senão com simpatia, pelo menos com indiferença, e que poderia realizar
o curso como qualquer cidadão livre.”
Ledo
(e Ivo) engano. Sobre essa tentativa malograda de Gama, esse empreendimento
intelectual pautada pela fé nas pessoas, em um artigo citado no livro de
Mennucci, o escritor Raul Pompeia, diz o seguinte: “A generosa mocidade
acadêmica daquela época entendeu que devia matar as aspirações do pobre rapaz,
tratando-as com o suplício de Santo Estêvão e as apedrejaram com meia dúzia de
dichotes lorpas. Luiz Gama excluiu-se revoltado da companhia dos moços,
horrorizado pela benevolência dos eruditos.”
Daí
então, Gama seguiu carreira no Exército, onde entrou em 1848, chegando à
patente de cabo, mas em 1854 teve baixa por insubordinação (havia sido
insultado por um oficial e respondeu à altura).
Último conselho
Morreu
em 1882 e está sepultado no Cemitério da Consolação, em São Paulo, depois de
ter servido a centenas de negros brasileiros, como ele, libertando-os do jugo
da escravidão. Seu único filho Benedito Gama, no entanto, apoiando-se no lastro
de respeito que seu pai construíra, cursou a Escola Militar e chegou ao posto
de major de artilharia do Exército.
Numa
carta ao filho, Gama deixou transparecer os sulcos de rancor e mágoa na
memória, como gato escaldado. “Evita a amizade e as relações dos grandes
homens; eles são como o oceano que aproxima-se das costas para corroer os
penedos.” Até hoje, boa parte dos que aparecem como grandes homens se encaixa
nesse perfil. Um perfil, diga-se de passagem, que não foi criado por Gama.
O
filósofo francês, Jean-Jacques Rousseau, em suas Confissões, já alertava para a mesma cautela: “Se cada homem
pudesse ler no coração dos outros, haveria mais pessoas que quereriam descer do
que pessoas que quisessem subir.”
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