Foto: Gilberto G. Pereira
"O braço com a espada erguia-se como se tivesse recém se elevado, e em torno a sua figura sopravam os ares livres." |
Segundo Allain de Botton, em Como Proust pode mudar sua vida, o mundo do escritor francês Marcel
Proust, autor de Em busca do tempo
perdido, ou o mundo que Proust criou, se o lermos com acuidade, mostra-se
muito parecido com o nosso mundo real, “expandindo assim a gama de lugares nos
quais nos sentimos em casa.”
Tendo Proust como metonímia de sua obra e sua obra como
metonímia da literatura, faço minhas as palavras de Botton para dizer que Nova
York já era um lugar no qual me sentia em casa, por que para mim já era literatura.
No dia 12, pegamos o metrô (linha 1) e fomos para o
Battery Park, de onde partimos em um ferry boat para visitar a Estátua da
Liberdade e a Ellis Island, antigo porto de desembarque e ponto de quarentena
de quem chegava a Nova York.
Enquanto a barca deslizava sobre as águas da baía do
Hudson, a literatura se fez presente em mim na voz de Albert Camus. Lembrei-me
de suas anotações em Diário de viagem
(março a maio de 1946), suas impressões sobre a cidade que ele visitou numa
viagem de navio.
“Cansado. Minha
gripe volta. E é com as pernas bambas que recebo o primeiro impacto de Nova
York. À primeira vista, cidade horrenda e desumana. Mas sei que se muda de
opinião.” Nessa passagem, Camus parece fazer um rápido diálogo com Franz Kafka,
cujo primeiro romance (inacabado), intitulado O desaparecido ou Amerika, narra a história de um jovem rapaz, Karl
Rossmann, que está fugindo da Alemanha e chega a Nova York.
“A bordo do navio, que já diminuía sua marcha”, diz o
narrador de Kafka, “avistou a estátua da deusa da liberdade, que há muito vinha
observando, como que banhada por uma luz de sol que subitamente tivesse se
tornado mais intensa. O braço com a espada erguia-se como se tivesse recém se
elevado, e em torno a sua figura sopravam os ares livres.”
Há uma raspagem neste último período. Antes, o narrador de
Kafka havia dito o seguinte: “Ergueu os olhos para ela e descartou o que sabia
a seu respeito.” Ou seja, neste caso, o personagem teria mudado de ideia sobre
o que via agora mais de perto, como Camus também mudaria, oscilando entre o
vislumbre e o mal-estar intuitivo das perenes transformações da cidade.
Enquanto Camus rodeava a estátua para chegar a Ellis
Island, em seu cruzeiro, em um tempo bem anterior ao meu, eu aportava à ilha do
monumento ícone num ferry boat lotado de turistas. Olhei para a estátua e
achei-a um pouco rotunda. Uma silhueta cheinha se apoderava da imagem da
estátua famosa. Como seu modelo é uma senhora do século XIX, nada de se espantar com a
diferença em relação à ditadura da magreza dos dias atuais, cuja esbelteza e altura
vemos em cartazes gigantes na 5ª Avenida.
A estátua cairia
primeiro
De acordo com uma simulação apocalíptica sobre o
desaparecimento repentino e total da humanidade, presente no documentário Aftermath: population zero, de 2008, se
isso ocorresse, a Estátua da Liberdade não resistiria tanto quanto a Muralha da
China ou as Pirâmides do Egito.
Criada em 1886, erguida com estrutura de metal e coberta
com placas de cobre, 230 anos depois do fim repentino e definitivo da
humanidade, seu esqueleto de ferro enferrujaria (por causa das infiltrações) e
o braço levantado da estátua segurando a tocha cairia primeiro. Depois, a
escultura inteira viria abaixo sobre um tapete regenerado de floresta, quando
Manhattan também já teria se tornado selva.
Até lá, também estarei extinto. Até lá, o que me resta é
seguir adiante com a realização da viagem e do olhar sobre todas as coisas na
Big Apple, incluindo a jovem mãe liberdade e sua vizinha, a casa da ilha ao
lado.
Em Ellis Island, vimos os rastros da fundação de Nova
York, a chegada dos imigrantes fixada agora na memória. Fotos, telas, objetos,
documentos, móveis, textos impressos, registros de voz e de imagem em vídeos,
tudo.
Identidades e
identificações
Há um documentário de curta metragem chamado Ellis, com Robert de Niro, que nasceu
em Manhattan, narrando um drama fictício de um homem que não consegue entrar em
Nova York e fica escondido nas dependências da ilha. Dirigido pelo fotógrafo
francês que assina com o pseudônimo de JR, o filme é um deleite fotográfico.
Vemos o homem sofrer seu drama, enquanto o tenebroso inverno e a neve alvejam a
ilha, não tão distante da ilha maior de Manhattan, o alvo desejado.
Nossa visita angariou um desfecho de expectativa em mim,
que esperava olhar os sobrenomes famosos de artistas e escritores cujos pais ou
avós desembarcaram lá, como Bloom, Kubrick, Scorsese. Mas não houve tempo. Fiquei
mesmerizado com o acervo de coisas pra ver, e foi muito bom.
Voltando à ilha dos lenapes, procurei um show no Madison Square
Garden, ou uma boa partida de basquete, mas o melhor que a casa oferecia naqueles
dias era Justin Bieber. Declinei.
Fui para a Broadway e comprei ingresso do Rei Leão para
ver com minha filha. Ela sabe pouco inglês, mas adorou a performance visual, o
jogo de palco e os bichinhos falastrões, quase todos representados por humanos
caracterizados. Scar, o antagonista irmão do Mafusa, continua sendo o mais
interessante dos personagens, sustentado pela ótima interpretação de um ator de
teatro de Nova York que nunca vi antes na minha vida. O que me impressionou foi
a tecnologia utilizada no palco do Teatro Minskoff, que só faltou falar.
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